ABAIXO TEXTOS - CRÍTICAS - ENSAIOS - CONTOS - ROTEIROS CURTOS - REFLEXÕES - FOTOS - DESENHOS - PINTURAS - NOTÍCIAS

Translate

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Cinema Brasileiro

O BRAVO GUERREIRO
Geraldo Veloso (27/6/2011)

O sentimento de tempo passando e o sentimento de perda são aqueles sinais que nos trazem a sensação de envelhecimento. Ou amadurecimento para amenizar um pouco o termo. A pontuação, pelas perdas, vai nos dando uma sensação progressiva de solidão, de vazio de referências e, ao mesmo tempo, uma carga de responsabilidade que aponta o fato de que de agora em diante, não temos mais referências ou “endereços” para o nosso trabalho, nossas opiniões e demarcações de território.
Como todos nós, estou perdendo muitos desses pontos de referências. Pessoas, opiniões, idéias, fatos, cenários, hábitos, valores vão se esfumando de forma progressiva e interminável. Agora Gustavo Dahl partiu. Já comecei a me habituar com a administração dos vazios que estas perdas nos provocam. Mas ainda é muito difícil.
A primeira grande transformação em minha vida deu-se há cerca de quase cinqüenta anos. Quando saí de casa para assumir uma trajetória no metiê de cinema meu pai chamou Joaquim Pedro de Andrade em seu escritório (autor do convite para a extensão do trabalho no filme “O Padre e a Moça”, no Rio de Janeiro) e conversou, como pai, com ele sobre o que significava a minha partida para longe do “berço”. Joaquim foi e ficaram amigos. E me recebeu muito bem em minha nova geografia de vida. Naquele momento, a pedido de Joaquim, Eduardo Escorel me acolheu em sua casa, em Botafogo, ocupada por Eduardo e seu irmão Lauro, ainda um garoto de seus quinze anos (seus pais encontravam-se em missão profissional de diplomacia, em Lima, no Peru e com eles estava a filha, Silvia). Morei com Eduardo por uns dois meses. Ali começava uma nova fase de vida que teve alguns personagens fundamentais na minha formação e trajetória: além de Joaquim e Eduardo, conheci, imediatamente, Paulo Cezar Saraceni, Júlio Bressane (que tinha acabado de colaborar em seu primeiro trabalho com Waltinho Lima Jr. “Menino de Engenho”) e Davi Neves. Durante as filmagens de “O Padre e a Moça”, em São Gonçalo do Rio das Pedras, distante trinta quilômetros de Diamantina, uma “delegação” foi visitar as filmagens: Luiz Carlos Barreto com Lucy e seus dois filhos Bruno e Fábio (ambos com menos de dez anos de idade – Paula era muito pequena e não foi), Davi Neves, Marília Carneiro, mulher de Mário Carneiro (o diretor de fotografia do filme e meu querido amigo), Clara (irmã de Joaquim) e seu marido, o poeta/diplomata, Chico Alvim e um casal exuberante (belo, inteligente, brilhante, carismático): Gustavo Dahl e sua mulher, Maria Lúcia (irmã de Marilia Carneiro). Todos ciceroneados por D. Gracyema, mãe de Joaquim e Clara e Sarah, mulher de Joaquim.
Além do impacto provocado pelo deslumbramento de estar conhecendo e convivendo com pessoas tão especiais havia um sentimento de que aquele era um momento especial para o cinema brasileiro e no qual, eu começava a me sentir incluído.
Gustavo Dahl já era conhecido, pois lia o Suplemento Literário do Estado de São Paulo, todos os sábados, quando alternava textos com Paulo Emílio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet, Maurice Capovilla, neste espaço jornalístico.
Logo que cheguei ao Rio, conheci a sua casa na rua São João Batista, dentro de uma vila modesta que, recuperada pela habilidade de seu cunhado, Mário Carneiro (arquiteto e artista plástico, entre outras coisas), tornara-se num cantinho extremamente acolhedor e requintado em pleno bairro de Botafogo, no Rio.
Logo Escorel e Daví Neves “conspiraram” e me colocaram na equipe do filme que Gustavo iria realizar, em seguida. O Dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade havia, algum tempo antes, encomendado um roteiro sobre Aleijadinho a seu grande amigo e conhecedor da arte barroca colonial mineira e seus personagens, Lúcio Costa.
A crônica deste projeto é complicada: Davi havia sido chamado por Dr. Rodrigo para produzir o filme que teria apoios diversos (UNESCO, Itamaraty, SPHAN, etc.). No processo de produção seria utilizado o equipamento que o “Patrimônio” (o SPHAN) havia “herdado” das funções da oficina que Arne Sucksdorf aplicou no Rio, alguns anos antes. Sucksdorf trouxe para o Rio o top tecnológico em termos de equipamento cinematográfico (uma câmera Arriflex II-B, um Nagra III, um jogo de lentes com uma 18,5 mm e uma teleobjetiva poderosa, de 400 mm, entre outras, uma moviola “flat bed”, Steenbeck, um fotômetro Spectra Combi, um kit de iluminação Colortran e outros “luxos”). Este equipamento foi levado por Joaquim para Diamantina para ser utilizado nas filmagens de “O Padre e a Moça”. Mas havia sido descoberta, antes das filmagens, nos porões do Palácio da Liberdade, de Belo Horizonte, uma unidade de filmagem igualmente sofisticada, importada pelos auxiliares de JK (José Silva?) e nunca utilizada: uma Cameflex (uma câmera desenhada pelo M. Coutant, para a Éclair, francesa) que foi devidamente restaurada para a utilização no filme de Joaquim. Gustavo estava em São Gonçalo, durante a excursão do grupo às filmagens, para levar o equipamento que seria utilizado nas filmagens do “Aleijadinho”, em Ouro Preto.
Por razões que só Davi e Gustavo poderiam esclarecer, foi realizado um filme de curta metragem (uma pequena obra prima), com um tom poético e elegante e que acabou por ser o primeiro filme de Gustavo, no Brasil (tinha já um trabalho de formação, realizado em Roma, para o Centro Sperimentali de Cinematografia), “Em Busca do Ouro”, com fotografia de Pedrinho Moraes. Dr. Rodrigo não ficou satisfeito e cobrou de Davi o filme sobre o Aleijadinho. Davi teve de mobilizar outros recursos e mandou Gustavo para Minas para realizar o projeto comprometido. E neste momento, Davi me chamou para ser o diretor de produção do filme. Fomos para Ouro Preto (primeira e mais longa escala da produção) acompanhados por João Carlos Horta (posteriormente o fotógrafo de meu filme, “Perdidos e Malditos”), Dib Lutfi e dois auxiliares (Lídio, eletricista e o maquinista, “Pé de Chumbo”). Ali ficamos por quase um mês numa vivência que nos aproximou para sempre. Ouro Preto era uma cidade ainda calma e com menos assédio turístico. Ficamos hospedados na casa na estrada das Lajes, de Lili Corrêa de Araújo. Eram os tempos do Calabouço, um bar instalado num porão da rua Direita, de uma canadense (a Jerry) e sua sócia, Ninita.
Ali nos tornamos muito próximos e amigos. Nossa comunicação cinematográfica foi se descortinando em direção a muitas afinidades. Inclusive com um grande aprendizado de minha parte. O filme se frustrou: filmamos muito, mas num determinado momento, um impasse técnico impediu que Gustavo continuasse o filme, decidindo interromper o trabalho para retomá-lo, adiante. Isso nunca aconteceu. Joaquim Pedro, anos depois, realizou o filme sobre o roteiro de Lúcio Costa, com dinheiro do Departamento do Filme Cultural, da Embrafilme. Um belíssimo trabalho, igualmente com Pedrinho Moraes como fotógrafo.
Desse momento em diante, Gustavo me “adotou”. Começou a preparação para as filmagens de “O Bravo Guerreiro” e me convidou para ser seu assistente. Naquele mesmo tempo, Paulo Cezar Saraceni já contava comigo como seu assistente em “Capitu” (na preparação). Começava, igualmente, a ação da Tekla Filmes Ltda. (minha produtora com Maurício Gomes Leite) na produção de alguns projetos nossos. Não dei conta de continuar como assistente de Gustavo e Paulo Cezar.
No ano passado o CTAv me convocou para dar um depoimento sobre Alberto Cavalcanti e a produção de seu último filme, “Um Homem e o Cinema” (duas partes), que está sendo preparado para lançamento em DVD. Passei uma tarde inesquecível com Gustavo e Joãozinho (João Carlos Rodrigues), entre as gravações. Uma atualização das nossas existências parecia antecipar uma despedida. João me encomendou, por sugestão de Gustavo, um artigo sobre a “minha” cinefilia. Tive o prazer de colaborar na Filme Cultura falando sobre a trajetória da minha matriz de formação cinematográfica: o CEC (Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais).
Na mesma publicação, um primoroso artigo de Gustavo (uma primeira parte, que foi completada, no número de Filme Cultura, subseqüente), sobre Gervásio Rubem Biáfora, me fez rever uma histórica antipatia pelo Biáfora e sua “turma”. Como estamos falando do efeito dos anos sobre as nossas cabeças, nada mais próprio que reexaminarmos as causas de idiossincrasias que foram tão intensamente vividas. E o artigo de Gustavo, brilhante como sempre, me apresentou, sem nenhuma complacência, o perfil desconhecido (embora suspeitado) de um homem que havia vivido o cinema intensamente. Desde cedo tinha uma resistência forte às preferências cinematográficas de Biáfora (mas não eram tantas, pois várias de suas paixões cinematográficas eram admiradas por mim, na matiz de uma formação clássica do cinema) sobretudo naquilo que se referia ao cinema brasileiro (o cinema de Walter Hugo Khoury, o dele próprio e de seus discípulos). Ao nos apresentar Biáfora, Gustavo revela a sua trajetória formacional no cinema que perpassa grandes tendências críticas e estéticas que formaram o cinema contemporâneo (sobretudo o brasileiro, do qual, Gustavo foi protagonista naquilo que veio a se denominar “Cinema Novo”). Suas afinidades com Paulo Cezar Saraceni, de quem foi “irmão” e companheiro na “aventura” romana, do Centro Sperimentali, vão além de uma leitura metodológica da obra de cada um. Como Paulo Cezar, Gustavo vem de uma cinefilia “visceral” (mas não menos consciente e intelectual) moldada por Biáfora (e depois aproximada a Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, o “Presidente”, entre outros). Paulo Cezar é a ligação entre o grupo do Cine Clube Chaplin (Octávio de Faria, Plínio Sussekind da Rocha, Vinícius de Moraes, Saulo Pereira de Melo e seu grane colaborador e amigo, Lúcio Cardoso) e o neo realismo rosselliniano (onde os dois, Paulo e Gustavo) foram buscar a influência que os tornou realizadores com uma personalidade definida. Companheiros de uma geração que detonou o Cinema Novo (sob a influência das propostas neo realistas de Nelson Pereira dos Santos ou da irmandade de Glauber Rocha) estavam nos lugares estratégicos onde o fenômeno começou a se estruturar: Roma, início dos anos sessenta do século passado, com Arnaldo Carrilho trabalhando na embaixada brasileira, na Piazza Navona e dando cobertura aos sonhos de um novo projeto para o cinema brasileiro. O grupo, do qual Gustavo era um “delfim”, era formado por Paulo Cezar, Geraldo Magalhães, Gianni Amico, Marco Bellochio e um menino, protegido por Gianni Amico, que começava a despontar, Bernardo Bertolucci. Gianni e suas relações com o Padre Arpa (o “guru” do Fellini, cujas relações com a Santa Madre Igreja eram complexas) levaram à Europa,, pela primeira vez, a primeira fornada do Cinema Novo, em Gênova. Daí surge o famoso manifesto da “Estética da Fome”, de Glauber. Joaquim andava por perto (no IDHEC ou no Museu do Homem, com Rouch, em Paris). Aí surge o “pacto fatal” que cria o Cinema Novo. A cabeça analítica, sofisticada e brilhante de Gustavo é o ponto de inserção teórica da nova proposta para o cinema. A Nouvelle Vague também estava explodindo em sua busca de caminhos (Chabrol, Truffaut, Godard, Rivette, Rohmer, Rozier, Brocca, Molinaro, erc.) em paralelo com a “Rive Gauche” (Resnais, Marker, Démy, Varda, etc.), antecedidos por Becker, Melville, Vadim e Malle (para não dizer Clément, em seu “Sol Por Testemunha”,, onde tenta exorcizar os ataques dos “jovens turcos” dos Cahiers du Cinema, ao seu cinema). Lá estava Gustavo Dahl, no “olho do furacão”.
Mas o que mais impressiona em Gustavo foi o seu desprendimento em deixar para o segundo plano sua trajetória de realizador, a meu ver extremamente competente (“O Bravo Guerreiro” é uma obra prima, seguida por “Uirá”, “Tensão no Rio” e muitos curtos rigorosos, talentosos e, sobretudo, inteligentes). Gustavo virou um quadro executivo do cinema brasileiro: assumiu a Superintendência de Comercialização da Embrafilme e liderou, com Roberto Farias, a grande revolução de mercado do Cinema Novo. Provou o óbvio: o cinema brasileiro precisava de investimento e um tratamento diferenciado para chegar ao seu público. Sua equipe se desdobrou em figuras que passaram a conhecedores profundos do mercado brasileiro e dos segredos do cinema (Marco Aurélio Marcondes, Aurelino Machado, Jorge Pellegrino, entre outros). E Gustavo não voltou àquilo que, a meu ver estava mais preparado: o processo criativo.
Mas o cinema brasileiro agradece. Gustavo sempre esteve no protagonismo das ações políticas do nosso cinema (CONCINE, CNDA, etc.). Mas Gustavo fez um “projeto de cinema”. Contribuiu para a sua construção, decisivamente.
Em 1999, tentávamos discutir novas estratégias para o cinema e criamos, em Belo Horizonte, durante o Panorama Mundial do Cinema Independente (sugestão do grande amigo José Carlos Avellar, então na Riofilme), um foro de debates sobre a situação da produção no país, recém saído do vácuo da extinção da Embrafilme/CONCINE. Gustavo estava ausente do grande debate do cinema brasileiro daquele momento. Tive então uma idéia: vamos buscar Gustavo e chamá-lo para capitanear um novo processo reflexivo para os novos tempos. Fui descobri-lo (o Diogo, seu filho adotivo, me deu o seu telefone) em Trancoso, na Bahia, retirado em um “exílio” prazeroso (quem diria que ele iria morrer justo lá). Gustavo topou na hora e, convidado para ficar por dois dias, acabou por ficar a semana inteira, numa convivência prazerosa e rica de trocas de informações.
Pouco depois o pessoal do Rio Grande do Sul, tomou a iniciativa de realização do III Congresso Brasileiro de Cinema, de onde Gustavo ressurgiu como a liderança que criou a ANCINE, dirigida e implantada sob a sua liderança.
Os pais vão indo, as afinidades próximas vão partindo (Joaquim, Davi, Leon, Glauber, Rogério, Jacques do Prado Brandão, Maurício e Ricardo Gomes Leite, Guará, Schubert Magalhães, Geraldo Magalhães e muitos outros) e vamos ficando sem referências. Os tempos mudam e as missões se cumprem. Há outros personagens na cena. Que venham. Os tempos passam. Mas não percamos de vista exemplos e modelos que deram as deixas para o que está acontecendo por aí. Gustavo Dahl vai e deixa um exemplo de ação e militância generosa, potente e inteligente, no cinema brasileiro. Mas a lacuna pessoal da impossibilidade de não mais conviver com a sua inteligência e seu brilho, seu humor, seu charme, é muito grande. Que assim seja. Vamos ter de viver com isso. Até quando? Meu micro chip já está programado. Só não sei decodificá-lo. É melhor assim.

Nenhum comentário: