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terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

AMAXON

A descoberta de uma grande atriz.

A atriz Vera Barreto Leite distinguiu-se de outras atrizes com quem já trabalhei pela sua maneira de andar, de ir de um canto ao outro da ação com os passos firmes e cuidadosos no domínio do movimento de seu corpo esbelto de manequim.
Andar cinematográfico e no tempo certo. Conhecimento perfeito das possibilidades dos gestos. Força dramática e espontânea nas expressões do rosto marcado pelo tempo. Rosto que guarda ainda todo esplendor de vida e beleza de quando a conheci.

Reencontrei Vera no Teatro Oficina representando, muito mais com o corpo do que com a voz, os espetaculares Sertões do Euclides revistos pelo genial José Celso.
Vera sempre foi uma guerreira, uma mulher de fibra, que viveu entre castelos e palácios da moda européia e hoje se entrega de corpo e alma no trabalho e experimento de uma arte maior. Ela é transformadora, rebelde e revolucionária, mensageira da paz e da liberdade, conselheira dos perseguidos e dos massacrados por um sistema ainda selvagem e belicista. Vera é antes de tudo amiga de verdade, companheira de todas as horas.
Eu sabia de tudo isso quando acabei de escrever o roteiro de AMAXON. O que eu não sabia é se ela encararia o texto literário, poético, cinematográfico, na interpretação dificílima e no domínio dramático da sua voz em um monólogo de mais de uma hora.
Mas o pior de tudo é que quando ela chegou aqui em Cabo Frio eu havia modificado grande parte dos textos que lhe apresentei quando conversamos sobre o filme. Texto que seria novamente modificado, nos dias subseqüentes, tornando-o mais coloquial e menos barroco. Um tratamento final, um último corte, dado por mim e por Emiliano, meu assistente de direção e co-autor da trilha musical juntamente com o músico Jose Luiz Vieira.
O que já era difícil ficou mais ainda sinistro com a total falta de tempo que ela dispunha para entender e interpretar páginas de textos totalmente modificados. No cinema independente, de autor, de invenção, trabalhamos com o casual, com a poesia da arte, quando tudo tem e precisa acontecer. Até um milagre! Vivemos eles todos os dias da semana em que filmamos com Vera.
Ela surpreendentemente entre um truque e outro de mnemônica e magia, sabia de todos os textos na hora de gravarmos as cenas. Sua voz segura e sua interpretação dos sentimentos contidos nos arcabouços da história ela as tinha todas em perfeição absoluta guardadas na sua alma de atriz. De uma grande atriz!
Vera Barreto Leite é para mim hoje a melhor intérprete da arte de vanguarda que se faz neste país, uma mulher surpreendente e inesquecível, incansável e sem trégua no trabalho, encantamento sem o qual não existiria o filme AMAXON. Vera foi a melhor de todas as coisas ocultas que aconteceram durante a realização deste filme que em breve estará sendo exibido nas telas brasileiras.

Veja AMAXON e depois me diga se eu não tenho razão.


Você já assistiu o trailer do filme AMAXON?

http://video.google.com/videoplay?docid=-9048805111654506440

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O POETA E O SEM FIM

ALO! BUZINAI NAIF Tavinho Paes, eu acabei de ler o seu livro de poesia que você me presenteou na noite de meu aniversário. Não foi o poeta Murilo Mendes quem disse que um artista pinta sempre o mesmo quadro? Eu digo a você que um artista é todos os quadros pintados pelo poeta. Poeta transistor do caos moderno. Transgressor de todos os dogmas e conceitos. Mediador do absurdo. Poeta-fragmento de um cometa rastreador de palavras repletas de significados. Mnemônica dos deuses quando querem se lembrar dos homens. Linguagem aflita de quem corre grande perigo... O poeta é herói de fato! Mesmo que a fome do insignificante consiga alcançá-lo ele sobrevive. Não é fogo, nem cinzas, é luz. O Poeta não tem a vida, tem o verbo que é língua e dedos com dados lançados à sorte. O poeta anda o seu caminho de volta com passos largos para frente. Vive os contrários. Mundos diferentes. Quanto mais caminha um se distancia do outro. Um é um o outro são dois. Trilogia de mistérios. Um poeta é três! Quem deles pode duvidar? Transforma sempre o mesmo quadro em uma verdadeira obra de arte. Tavinho todo grande artista escreve sempre o mesmo livro em busca do seu fim. Você é um artista em busca da perfeição, do ser absoluto, de uma verdade que nunca vai existir, da combinação exata de todas as cores do universo, do negro total a luz que cega, do percorrer de todas as sombras a descobrir os labirintos até transpor todos os sistemas. O Poeta, lembre-se, vive a gênese de todos os textos, sempre retorna ao princípio para começar tudo novamente. Neste mundo só a ele é dado esse direito de ver e ouvir o eterno, ser homem e deus em um só tempo, em um só momento, nos pequenos intervalos da criação. Ora! Porque tudo é arte, tudo é cultura, nós não temos que diferenciar um bife a cavalo de uma moqueca de camarão? Perguntei ao Poeta sendo eu um homem comum... Só a antropofagia nos une, o resto é bobagem! Ele não me respondeu. Para a poesia não há resposta! Só assim, meu caro poeta, eu consigo te entender.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

AVA É VANGUARDA

Ava Rocha é a revelação - revolução musical e artística deste ano de 2009. Além do grande sucesso da sua banda AVA, formada pelos músicos Emiliano 7 (violão, guitarra, baixo), Daniel Castanheira (percussão, teclado), Nana Love (violoncelo, teclado), ela é uma excelente editora de cinema e fez de maneira única, com grande talento, a narração do meu novo filme Amaxon. Todos nós estamos ávidos para o lançamento do seu primeiro CD. Vai ser um sucesso!
(ouça uma prévia no link) - www.myspace.com/avamusyk

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

ACORDA MINAS!

OFICINA GOELDI II
É preciso e é urgente que os mineiros, os intelectuais e artistas de Minas, cobrem, exijam, reivindiquem, as Secretarias de Cultura, estadual e municipal, a realização de uma grande exposição do acervo da Oficina Goeldi, com a apresentação de tudo aquilo que foi produzido pelos artistas que por ali passaram e também das obras que foram criadas e executadas pelos seus talentosos diretores. Tenho certeza que será um acontecimento nas artes plásticas brasileiras e que muitos museus em todo território nacional adorariam exibir esta coleção de obras de tão grande significado artístico. Eu me proponho a ser o curador da mostra e ainda realizar um documentário a respeito. Acorda Minas!

A Grande Arte das Minas

Oficina Goeldi

Quando voltei a morar em Belo Horizonte, lá pelos idos de 1979, dez anos após ter saído de Minas e do Brasil, ao reencontrar os velhos amigos, conheci um pessoal mais novo de alma inquieta, rebeldes e repletos de criatividade. Trabalhavam as madrugadas desenterrando, na arte oculta dos taumaturgos, os enrolados cipoais da memória universal. Foi quando descobri, com alegria, que nem tudo estava perdido. Em verdade comecei a conhecê-los na praia de Ipanema - tenho uma prima no Rio que andava, naquela época, na companhia de um jovem e talentoso artista mato-grossense que vivia em BH. Ela e suas amigas passavam os dias quentes do verão carioca na praia que imediatamente passei a freqüentar. Ana, minha prima, me apresentou a todas suas amigas e ao artista Paulo Giordano, um simpático e engraçadíssimo sujeito que algum tempo depois se tornou um dos meus melhores amigos, embora eu tenha namorado a mulher que ele há muito cobiçava. Foi o Paulo Giordano que me apresentou ao produtor e artista gráfico Mario Drumond, que me apresentou a Oficina Goeldi, que me apresentou a quem eu considero o maior, o mais sensível e erudito artista plástico de minha geração, o surpreendente Fernando Tavares. Paulo Giordano e outro jovem e talentoso artista chamado Oswaldo Medeiros completava o quarteto que dirigiam a Oficina Goeldi. Foi neste ambiente modernista, repleto de boas cabeças pensantes, que produzimos os filmes Um Sorriso Por Favor e depois Um filme 100% Brazileiro. Nesta Oficina da arte de vanguarda mineira, eu conheci e convivi, ouvi e observei, o trabalho, a obra dos grandes artistas pintores do Brasil. Todos que ali passavam para realizar um trabalho eram, além de bem informados, possuidores de profundo conhecimento do nosso universo cultural. Cultivavam, experimentavam e comiam, atropofagicamente, os grandes mestres do modernismo, não só da pintura e da gravura, como também da música, do teatro, da literatura, da poesia, do cinema, enfim o que de melhor a história passada e contemporânea tinha a lhes oferecer. O cineasta Sylvio Lanna também estava em BH na mesma época produzindo o que julgo ter sido o acontecimento mais de vanguarda no Brasil naquela década. Falo do Cine Olho, do encontro de todos os movimentos da arte rebelde, do melhor que se fazia no país, dentro da lufada de liberdade que se espalhava por terras brasileiras. Mas trago essas pequenas lembranças a superfície para colocar aos leitores a minha convicção de que todas as obras criadas naquele período de tempo por aqueles jovens mestres da composição e da cor, da impressão e da corrosão, da gravura e da pintura, terão que ser melhores observadas pelos artistas, colecionadores, estudiosos e críticos que se interessam de verdade pela boa arte brasileira. Fernando Tavares se destacava entre todos com sua produção de qualidade indiscutível. É o Mario Drumond quem nos fala sobre Fernando: “Nascido em Belo Horizonte em 14 de março de 1950, começou um pouco tarde a sua carreira de artista-plástico, na cadeia de Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, onde estava como preso político. Eram os anos setenta e elaborava cartões de natal para os companheiros de cárcere. Saiu da cadeia com a saúde física e mental abalada, mas teve a sorte de ser encaminhado à Dra. Nise da Silveira, que percebendo sua inclinação para as artes, estimulou-o a frequentar a Escolinha de Arte do Brasil (EAB). Lá ele foi aluno do gravador José Altino e da pintora Maria Tereza Vieira, tornando-se depois assistente impressor da gravadora Marília Rodrigues, mestra responsável pela sua iniciação na Arte Maior da Gravura Brasileira. Em pouco tempo o aluno-assistente demonstrou suas notáveis qualidades e foi por Marília apresentado aos principais círculos do meio artístico do Rio de Janeiro, os quais não esconderam a admiração pelo novo talento: Edith Bhering, Anna Letycia, Carlos Scliar, Maria Leontina, Fayga Ostrower, Antonio Grosso e outros contemporâneos. Fernando era o diretor artístico da Oficina Goedi.

Nunes Pereira e Fernando Tavares durante as filmagens do UM FILME 100% BRAZILEIRO de Jose Sette

Foi o seu mais importante gravador e a maior autoridade em Arte da casa. Eu respondia pelos projetos gráficos e pautas editoriais, viabilizações financeiras e coordenação de produção"... A melhor notícia de hoje é que as máquinas estão sendo lubrificadas e que ele estará de volta em breve a produzir as suas gravuras e suas pinturas que tanto nos surpreendiam e nos encantavam. Palmas para Fernando Tavares!


sábado, 14 de fevereiro de 2009

2010 - O Século de Tancredo

Jose Sette filma Tancredo Neves em 1982
Jornaldo Brasil
14/02/2009
Aconteceu...
Conheci o advogado, jornalista e escritor D.Nonato Cruz na cidade de Cabo Frio. De cara a empatia foi total, conhecemos e convivemos durante os anos da abertura com muitos amigos comuns, mas nunca nos encontramos. Depois de muitas conversas sobre política, literatura e histórias do Brasil, apresentei para ele o meu filme produzido em 1982, chamado Liberdade, onde filmo o senador Tancredo Neves, então candidato pelo PMDB ao governo de Minas. Passado um tempo, ele me convidou para ser o diretor do filme documentário sobre o livro que estava escrevendo. Uma homenagem ao centenário de nascimento do grande político. Assim, qual não foi a minha surpresa ao acordar hoje, com essa matéria(ao lado) no Caderno B, do Jornal do Brasil, na coluna da Hildegard Angel. Espero que se tudo der certo possamos fazer um grande filme sobre este mineiro que ajudou a transformar a história política deste país.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O Século Analógico

Tempera sobre papel ano 2002


ENTREVISTA COM JOSÉ SETTE
Mario Drumond
2003

Quem conhece o cineasta José Sette tem a impressão que ele já nasceu com uma câmera na mão e uma porrada de idéias na cabeça. Não se sabe como (e é mesmo um mistério, ele não é rico, não tem “peixadas” e nem os famosos “incentivos”), mas desde o final da década de 60 ele filma sem parar - e sempre muito bem equipado com o melhor que a tecnologia do momento pode dar ao cinema. Por sua conta e risco construiu, um a um, seus próprios edifícios de arte cinematográfica, e, à maneira de um Gaudy do cinema, vem produzindo uma obra de estilo e qualidade, cujo numeroso conjunto realiza um dos mais sólidos e ricos acervos da nossa produção para as telas (ver box - cinematografia completa). Seus filmes conquistaram premiações e destaques em vários e importantes festivais como os de Brasília, Rio de Janeiro, Fortaleza, Berlim e Oberhausen, além de aclamações da melhor crítica nacional e internacional. Mas o conhecimento de sua obra é praticamente restrito aos estudiosos e especialistas. Nessa entrevista exclusiva ele nos concede algumas de suas visões de experiente artista do audiovisual e nos fala das batalhas que tem enfrentado pela resistência cultural brasileira em sua longa carreira de cineasta independente, nessa bagdá-babel em que se transformou o cinema brasileiro das três últimas décadas.


- Apesar de o cinema ser conhecido como a “Sétima Arte”, um dos seus maiores mestres, Fritz Lang, já afirmou que “cinema não é Arte”. Para você o Cinema é o quê?

- Lang tem razão: o cinema não é arte, mas um produto feito a partir das diversas Artes: a pintura, o teatro, a música... tem origens distintas, puras, pré-históricas, misturadas, organizadas e desorganizadas em infinitas experiências estéticas. Mas, para mim, fazer cinema é fazer literatura, poesia, é transmitir um sentimento pessoal e constante que excita a platéia fazendo-a vivênciar a mesma experiência particular do autor ou do artista. Assim, quando se faz cinema, o homem, o artista, consegue, à semelhança dos deuses, ser um mago, criar o seu universo, dominar a luz em um determinado espaço de tempo, e fazer nascer um mundo vivo, aberto, irreal, conflitante, dramático, livre e revolucionário, na vanguarda ou na retaguarda de todas as histórias e de todos os personagens e cenários que passam a existir a partir da nossa imaginação. Tal como o livro, o cinema, por si só, não é Arte, talvez seja uma técnica, uma indústria, mas será sempre um registro histórico. Mas, pelo menos para mim, só terá força e magia se feito por um artista; um artista que tem de se transcender num demiurgo, pois precisa dominar as várias linguagens e expressões da Arte, além das técnicas e indústrias envolvidas. Então é um produto cujo principal valor está no domínio da linguagem cinematográfica utilizada. Já o poder deste domínio estará diretamente relacionado ao valor do artista que elabora o produto; pois “o resultado final é obra de um só artista: o diretor do filme” – e isso não fui eu quem falou, foi o próprio Fritz.

- Acho que podemos dizer que o século 20 foi o “Século do Cinema”, pois sua história se confunde e interage com a do próprio cinema. Na sua opinião, quais teriam sido os mais valiosos legados que o cinema nos concedeu à história e ao novo milênio, no mundo e no Brasil?

- Sim, o cinema nasceu, floresceu e se perdeu neste século passado. Mas, repito o que disse Eisenstein: "...dessa reserva inesgotável de possibilidades não se viu serem aproveitadas senão migalhas". Das primeiras exibições dos irmãos Lumière até hoje, pode-se dizer que o cinema enriqueceu, de maneiras diferentes, todos os que dele se utilizaram ou se aproveitaram. Mas, a meu ver, poucos o alcançaram como instrumento da verdadeira expressão artística, pela realização de obras imortais. No primeiro estágio, ainda mudo, Griffith, Murnau, Dziga Vertov, Dreyer, Gance, Jean Vigo, Chaplin, Artaud, Eisenstein, etc. Eles transformaram o simples registro da imagem em movimento no que hoje é o mal conhecido dito cinema de autor, independente, experimental, udigrude, de invenção, de arte, etc, alcunhas que não formalizam escola ou movimento cinematográfico - a maioria são obras independentes, experimentais, de invenção; algumas, em menor número, filmes de arte. A minha grande descoberta, ainda na adolescência, foi a escola expressionista - assisti a todos esses estranhos filmes quando morei na França em 70, de Caligari à Leni Riefenstahl. Foram os que me mostraram o caminho a seguir. No Brasil, dois gênios incompreendidos: Mário Peixoto e o fotógrafo Edgar Brasil, e, pouco depois, o nosso Humberto Mauro, nomes que dispensam comentários. Na sequência, Alberto Cavalcanti, a quem conheci pessoalmente no hotel Castro Alves do Rio de Janeiro, e que fez questão de assistir ao meu filme sobre o paleontólogo P.W. Lund. Ele me fez entender a criação da música na construção de um filme. Do cinema em geral e universal, gosto dos xenófobos John Ford e Kazan, artistas sem coloração partidária. Admiro os rebeldes, de Truffaut ao inesquecível Roger Corman, do ágil e iconoclasta Cassavetes ao kabuki Kurosawa, do samurai Mizoguchi ao atormentado Buñuel, do apavorante Hitchcock aos apaixonantes Rosselini e Fellini, do anárquico Pasolini ao introvertido Kubric, do aristocrático Luchino Visconti ao enigmático Jean-Marie Straub. Mas os meus favoritos, os únicos que talvez eu devesse citar, são Welles e Godard. No Brasil, a “chanchada” dos anos 50 e sua liberdade de linguagem no tratamento dos signos populares da época. Vejo também com simpatia a rebeldia de alguns filmes neo-realistas e cinema-novistas dos anos 60. Deles, Glauber foi o que transcedeu em direção à Arte. Mas os que mais me influenciaram foram o novo cinema brasileiro achado por Sganzerla, Bressane, Sarraceni, e as raridades do cinepop Neville, do debochado Tonachi, do hermético Sylvio Lanna, do assombroso Elyseu Visconti e do panfletário Veloso, meus contemporâneos. Essas são, para mim, algumas das preciosas “migalhas” que nos sobraram do que você chamou “século do cinema”.

- Pela sua resposta e pelo que sabemos, o Cinema de autor vinha num crescendo até a década de 60 e aí parece ter encontrado uma pedra no caminho. Me lembro de ter enfrentado filas enormes nos anos 60 para ver “Pierrot, le fou” de Godard e, na década de 90, fiquei praticamente só numa sessão de “Helá, por moi”. Essa pergunta me vem por que a sua geração começou a filmar justamente naquele embalo e com muito sucesso de público no início. Mas desde que a mídia passou a ignorar o cinema de autor, nos meados dos anos 80, o grande público foi se distanciando cada vez mais de um Glauber, de um Welles, o que dizer então das novas gerações... Essa pedra no caminho teria sido a televisão?

- Vamos tentar resumir a história: nas décadas de 50, 60 e 70, surgiram jovens cineastas que, com base nas experiências bem sucedidas dos mestres do passado, queriam transformar e revolucionar a estética cinematográfica, criar um cinema de pensamento - um filme onde não se via: tinha-se visão. Um cinema que queria mexer com a inteligência do público. Eram artistas, intelectuais, poetas, filósofos, músicos, estudantes de arte, que, com pouco dinheiro e muita resistência, conseguiram furar o bloqueio da indústria do cinema roliudiano, realizando seus filmes e conquistando mais espaço à cada dia. Em todo o mundo e aqui no Brasil esse cinema conseguia as melhores bilheterias, os filmes eram exibidos, a crítica aclamava, o público comparecia, aplaudia, consagrava. Isso de fato preocupou os bigboses de Hollywood. Em uma reunião no Pentágono, o Sr. Jack Valenti, da Motion Pictures, discutiu com generais e poderosos de plantão as estratégias para inverter a situação. Posso citar algumas das que atingiram diretamente o nosso cinema: a compra da grande imprensa nacional e o desmantelamento da imprensa independente e de opinião, o fornecimento de generosos pacotes de filmes aos exibidores e à televisão em troca do nosso café, a intervenção política nos bastidores das produções, o sucateamento da nossa incipiente indústria cinematográfica, massacrando sua infra-estrutura... E muitos dos nossos cineastas, que eram mais negociantes que artistas, se venderam a esses interesses e se embrenharam no atoleiro da mentira, dando ouvidos aos representantes das distribuidoras internacionais, que os conclamavam à conquista de um mercado inexistente através do cinemão. Olha! não sou contra as grandes produções, mas sou contra um cinema que procura imitar o que de pior se faz lá fora! O cinema feito assim no Brasil é o mesmo que uísque do Paraguai – não desce! Aí, é claro, o público, que acabou ficando emparedado entre as mediocridades falsas e as autênticas, vai preferir essas últimas. Pelo menos são autênticas! E foi nessa onda de mediocridade que o nosso mercado de audiovisual se transformou em mercado de cinema feito nos EUA. Hoje cinema brasileiro no Brasil, aos olhos de um público massacrado por tão poderoso bombardeio, parece mais coisa de “estrangeiro”. E é óbvio que a TV faz a sua parte. Talvez seja ela a estrela principal dessa abominável história. E cumpre o seu papel, direitinho, em todos os sentidos. Seja contribuindo para debilitar a inteligência do público com suas novelinhas execráveis, seja veiculando o cinemão classes “c” e “d” de roliúde nos chamados “horários nobres”, seja dando força total de audiência aos das classes “a” e “b” em seus lançamentos lá e cá. Às vezes, e muito de-vez-em-quando, as nossas produções ditas como “a”, mas que se eqüivalem as “e” de lá, pegam um pontinha ou outra nas “grades” das grandes. Na TV Globo, por exemplo, o verdadeiro cinema brasileiro - que é sempre um cinema de classe para todas as classes e portanto não pode ser classificado ou desclassificado mercadologicamente - nunca foi exibido em horário decente. A situação chegou a tal ponto que hoje no Brasil muito pouca gente sabe o que é cinema.

- Mas o verdadeiro cinema continuou a ser produzido, não é? Nem todos os cineastas se venderam e você está entre os que ainda resiste. E quando você começou a filmar a coisa já estava preta. O que o levou a acreditar na sua carreira de cineasta, sabendo que ela começava dentro de uma realidade tão negativa e tão pouco promissora?

- Meu pai, que queria que eu fosse médico e depois político, não entendia a minha opção pelo mundo artístico, sempre me dizia: - Meu filho, "cinema é salário de fome em negócio de débeis mentais"... e eu! Ficava revoltado, queria fazer cinema. Tinha 16 anos quando escrevi o meu primeiro roteiro de cinema - Cidade Sem Mar - sobre Belo Horizonte e sua juventude - José Aparecido de Oliveira, amigo do meu pai, me incentivava, mas queria que eu aceitasse primeiro ser o assistente de direção do filme: A Vida Provisória do cineasta, já falecido, Maurício Gomes Leite, que ele estava ajudando na produção pelo BDMG. Não deu nem uma coisa, nem outra. Meu pai foi cassado pela ditadura. Eu, perseguido pela família e polícia mineira, enlouquecido, perdido, frustrado, envolvido com política estudantil, fui morar no Rio de Janeiro e depois, sem saída, fui morar em Londres, sem ter conseguido realizar o meu primeiro filme. Na Europa, respirei um pouco da liberdade perdida, abrandei a paranóia adquirida e conheci o cinema expressionista alemão, pelo qual me apaixonei nas sessões intermináveis da cinemateca de Paris. Depois, resumindo, conheci o catalão Rogério Lagostera, que veio morar no Brasil e, a meu pedido, trouxe de Barcelona um equipamento completo de se fazer cinema. Quando voltei à terra do sem fim, foi ele o meu primeiro produtor, quem acreditou nas minhas idéias e pude assim, finalmente, realizar o meu sonho acalentado durante 8 anos - fazer e viver de cinema. Não foi o falso glamour da carreira de cineasta que me proporcionou realizar os 16 filmes de arte nestes 32 anos de vida cinematográfica, sempre vivi com o mínimo necessário, nunca fui um burguês, o que eu conseguia com o meu trabalho de fotógrafo de publicidade, era revertido em negativos e os filmes foram surgindo. Só tive um título produzido com o dinheiro do estado, ou melhor, da extinta Embrafilme - Um filme 100% brazileiro - a menor verba liberada pela Empresa em toda a sua existência. Não reclamo - fiz o que fiz - vivo o cinema com alma limpa - paguei o preço - faço arte de vanguarda brasileira, em conflito constante ao movimento acadêmico, roliudiano, que se pretendia e que até hoje se pretende como meta de conquista de um mercado fantasma, dominado pela ganância burra de quem está escravo das distribuidoras internacionais, do péssimo cinema, com raras exceções. Que fique claro: - não sou contra ao lazer, ao divertimento, a uma boa história, a um bom roteiro, a uma produção requintada no cinema, se ele for brasileiro, se ele falar da nossa terra, de nossas tradições, da nossa cultura com respeito para todo o nosso povo, mesmo que não me identifique com a estética, o tratamento do tema e sua linguagem, respeito o realizador e o público, mas peço o mesmo respeito ao cinema de arte, de invenção, de vanguarda e poético, ao qual me apego e no qual me realizo, sou pela arte e não sei fazer de outra maneira, nunca me preocupei com o capital, com o mercado, mesmo recebendo sempre um salário de fome - é que sempre me encantou a magia da imagem em movimento, me fazia sonhar, o cinema puro, filmes onde pudéssemos exercitar, criar, um mundo novo. Os débeis mentais sempre existiram e, talvez, neste mundo de quinta grandeza sempre existirão. Hoje as coisas, também, estão pretas: o meu primeiro filme de longa metragem "Bandalheira Infernal", fala um pouco disso; filmado em 1975, censurado, nunca foi distribuído e nem aceito pelos críticos da época. Quando voltei do velho continente, a resistência era continuar realizando um cinema de busca poética, livre, que queria ser visto, mas sem ter o compromisso estético com o atual mercado. Pensei que depois de tanto tempo poderia ser reconhecido como um bom cineasta investigativo sobre os nossos brasis mas continuo sendo recusado pela crítica oficial e pela mídia. Nada mudou para mim e isto comprova, depois de 33 anos de atividade e de resistência, o meu compromisso com a vanguarda da arte cinematográfica. Acredito que os meus filmes, o meu cinema, mexe com a cabeça de muita gente e que só não é visto pelo grande público, com sucesso, porque não tem distribuição. Foi esse o motivo que me levou a exibir o meu último filme de longa metragem "O Rei do Samba" em pré-estréia nas televisões educativas e de cultura, em rede, por todo país atingindo a mais de 4 milhões de espectadores em uma única exibição. Não é um sucesso popular? Portanto não sou eu que sou a resistência - eles, a mídia, os críticos débeis mentais, o sistema e o poder é que me resistem. O que posso fazer?

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

NATUREZA TORTA

Naval - 1978 - Belém do Pará - Pilot sobre papel 49 /33 cm

Faz trinta anos que fui fotografar no Pará um documentário sobre uma grande figura, tão grande no tamanho quanto no talento. Ele se chamava Naval e estava voltando depois de muitos anos a sua cidade natal. Antes de se mudar para o Rio de Janeiro, ele, que era um homem alto, forte e decidido, tinha sido estivador e marinheiro, trazia em suas mãos calejadas o domínio e a delicadeza do vôo agitado de uma borboleta quando pintava uma tela. Durante os intervalos das filmagens caminhávamos juntos no Mercado Ver o Peso de Belém entre centenas de barraquinhas de seus compatriotas onde de tudo se vendia um pouco. Lembro-me que em cada barraca que parava, tentava me ensinar os valores curativos e afrodisíaca das ervas, com desenvoltura e conhecimento. Podia-se observar, por aonde íamos passando, uma explosão de cores nas bancadas repletas de coisas que eu nunca havia visto. Que belo filme eu deixei de fazer. Eram garrafadas, pedaços de peixes, sapos, cobras, tartarugas, olhos de botos, etc. Mas o que ele gostava mesmo de falar era das ervas que ele conhecia. Dissertava com prazer sobre os efeitos do alecrim, angélica, angico, arruda, cabacinho, catingueira, catuaba, cumaru, fedegoso, jucá, jurema, jurubeba, macela, malva, manacá, mastruz, mucuná, mulungu, sabugueiro, entre outras ali encontradas. Quando fomos tomar uma cerpinha gelada no boteco do próprio mercado ele me confessou que só estava vivo porque quando criança, muito doente, sem conseguir urinar, com muita dor, foi salvo por um chá de grilo. Chá de grilo! Exclamei com cara de nojo e ele respondeu: - Não há diurético que se possa medir com o chá de grilo... Esse era o Naval! Fiz um filme nos finais de semana sobre outro assunto matutado durante este mês que passei em um hotel na Praça da Paz de frente as suas centenárias mangueiras e o seu belo teatro. Fiz ali na companhia desta figura paradoxal, do gigante Naval, o filme de curta metragem que ele procurava seguir desenhando com traços rápidos de caneta pilot as cenas que eu ia filmando. Acompanharam também as filmagens e fizeram a trilha musical do filme dois jovens jornalistas de Belém. Foi um deles, o Nelson Pantoja, que me trouxe a idéia do filme Natureza Torta, um registro, um documento, sobre os posseiros de terras no sul do Pará muito antes do movimento dos sem terra. O tempo passou, nunca mais vi o Naval, nem o Nelson e só tempos depois é que tomei conhecimento do que era esse tal chá de grilo que havia salvado Naval, foi no livro Meleagro do Luís da Câmara Cascudo, vale a pena conhecer a receita dada pelo Cascudo: “... O grilo é poderosíssimo. Não há quem resista ao chá de um grilo inteiro. Tomam a terça parte dele, mesmo um adulto... Pega-se o grilo e cozinha-se a terça parte. Bebe-se esse caldo com açúcar, mas a força é o paciente ignorar de que espécie é o remédio tomado”.



quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Humor Negro

Flores do Quintal
- As flores estão murchando nos jardins do capital...
A América é a crise e nós é que vamos pagar a conta?
- O que é que você tem haver com isso?
Questionou o nobre inglês ao seu empregado.
- Meu filho morreu na guerra!
Exclamou o empregado.
- Boa jogada meu caro, falou o nobre se afastando,
estou falindo e você não me deve mais nada, boa jogada!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

ENTREVISTA

A Musica no Cinema

jose sette durante as filmagens de AMAXON com trilha sonora de Emiliano 7 e Jose Luiz Vieira


ENTREVISTA cedida ao músico José Luiz Viera em 2008

Você acha fundamental para um filme de autor possuir uma trilha sonora original no sentido de dar à obra como um todo um caráter único?

Um bom filme tem como fonte de inspiração toda criação artística. A música é no cinema tão importante quanto à história das artes plásticas é para um bom diretor de fotografia. Creio que sua pergunta já traz embutida uma resposta. No cinema tudo é possível, nada é fundamental. O autor de um filme é o seu diretor. Um diretor pode querer fazer um filme de autor todo em cima de um tema já composto e que lhe sensibilizou a produzi-lo. Um compositor pode criar com o diretor a trama por onde se desenrolara todos os papeis de um filme, mas o autor é sempre o diretor, o dono da idéia e do roteiro. Ele, no Brasil, pode optar por realizar o trabalho com baixíssimos orçamentos, ai na elaboração do seu plano de produção da música, a trilha original, a edição de som, o dolby, etc. passa a ser complemento – só se for possível - o que também não quer dizer que sairá dali um filme ruim. Enfim, eu sei que de cada cabeça nasce uma idéia, um pensamento, uma sentença e uma boa cabeça nem sempre quer dizer um bom filme. Um filme pode ser feito do silêncio... O que quero dizer é que no mundo da tecnologia digital, dos milhões de sons disponíveis, tudo é possível, mas nada é absoluto. Se a trilha de um filme estiver no desenho da produção, se houver inteira compatibilidade entre o criador e a criatura, pode-se realmente crescer muito. Ela pode ser composta na interpretação da imagem original, preparada e depois executada em função de um clima engrandecendo a dramaticidade da cena. Enfim, de tudo que possa ser feito para agradar ao diretor, ao produtor e ao espectador, que deve ser feito, mesmo que esse som seja um só – o silêncio do seu autor.

Você poderia citar três filmes onde a trilha musical desempenha um papel não secundário, mas sim assume o "papel principal” extremando as sensações causadas por uma determinada seqüência de imagens?

Sim... No cinema brasileiro - O Descobrimento do Brasil com musica de Villa-Lobos; no cinema americano – West Side History com música de Leonard Berstein; no cinema francês - Parapluies de Cherbourg de Jaques Demi; no cinema revolucionário soviético - Eisenstein – Alexandre Nevsk com trilha de Prokofiev.

O que você tem a dizer sobre esses filmes (brasileiros) de grande orçamento que em sua maioria utilizam sucessos da MPB em suas trilhas sonoras como já foi visto inúmeras vezes, como: músicas de Caetano Veloso e companhia. Você encara isso como sendo uma "jogada de marketing" ou algo semelhante?

Acho que o cinema brasileiro está derrapando na sua originalidade e na sua autenticidade, mesmo usando grandes nomes da MPB nacional. O importante é saber que uma boa trilha sonora não faz um bom filme existir. A questão fundamental do cinema brasileiro é a conquista de seu mercado. E para isso acontecer é preciso de que se tenha um cinema de qualidade, isto é: o filme precisa ser bem produzido, ter boa fotografia, boa trilha, original ou não, um bom roteiro, bons diálogos, cenários inteligentes e direção criativa e competente, além de uma estética nova e brasileira. Um cinema com linguagem nossa, que não pretenda reproduzir e nem copiar, a pretexto do mercado, o lixo que nos é imposto pela subcultura estrangeira.

Como foi a sua experiência em trabalhar com músicos na tarefa de desenvolver uma trilha para seus filmes?

Trabalhei com grandes nomes da música brasileira, do erudito Camargo Guarnieri ao popular Luiz Eça. Assim fico a vontade para dizer que o meu maior prazer é desfrutar ao lado de um conhecedor profundo da arte de compor, de arranjar e ainda de executar, como você José Luiz muitas vezes fez para mim, as trilhas sonoras de muitos dos meus filmes.

Você tem conhecimento sobre cursos ou escolas que formam músicos aptos a desenvolverem essa difícil arte de "musicar imagens"?

Há muitas escolas que ensina música no Brasil, nenhuma é específica com relação ao cinema, eu não conheço! Mas quando ouço a relação de escola com a arte criativa, lembro-me sempre do genial Noel Rosa quando canta que – O samba não se aprende na escola... Sambar é sofrer com alegria; é chorar a nostalgia dentro da melodia... assim é também no cinema.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Garrafas do Tempo IV

"O Cinema é a dança da luz" (Abel Gance)

Jose Sette e Vera Barreto durante as filmagens de AMAXON

Primeiro Amor
Belo Horizonte 1968

O AMOR

Parado no espaço. No tempo. Dentro do fim. Refletindo sobre as vinte mil linhas escondidas no labirinto feminino do ideograma desconhecido
A VIDA
No que pese a natureza do Eu
No templo ígneo de mulheres destemidas
Prepara-se a trama aflita
A LIDA
O corpo me dói com o medo
Tudo aquilo que devo dar
Passar certo segredo
O MAR
No dia que o sol for primeiro
Demore a lua no céu de Alá
Observando o cruzeiro ali
OFIR
Do sul para o norte sem direção
Um cometa de mil raios se via
No fim mil mundos em vão
AGADIR
No meu coração o céu
biblioteca das ilusões
minha razão me diria:
ALEXANDRIA
Nesta louca brincadeira
pantagruélico banquete
bem doloroso seria
se não fosse gostoso comê-la.


domingo, 1 de fevereiro de 2009

Garrafas do Tempo III

Um Filme 100% Brazileiro
Recebi de um leitor de Curitiba uma crítica que eu desconhecia a respeito do meu filme exibido na cidade em 1988.
Segue o artigo que me parece ainda bastante atual. .
Saverio Roppa e Guaracy Rodrigues
Uma obra experimental, difícil mas importante
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 28 de dezembro de 1988

... Seis anos depois, na presidência da Embrafilme, Calil (que aliás fez uma das melhores administrações naquela empresa, hoje reconhecida após os desastres que o sucederam) naturalmente apoiou o projeto do cineasta mineiro José Sette (Ponte Nova MG, 1948) em transpor o universo de Cendrars num filme extremamente criativo. Vindo de várias experiências na área de curta e longa-metragem, especialmente documentários (entre eles, "Um Sorriso Por Favor - O Mundo Gráfico de Goeldi", premiado em Brasília, 1981), Sette idealizou seu filme como um ensaio político, colocando em cena a trajetória do poeta Cendrars em contato com três personagens que o impressionara durante sua estada. Sobre dois deles - o coronel Bento, misto de fazendeiro rico, caipira e bárbaro nascido em Mato Grosso e que conheceu Paris tendo-o como anfitrião: e do Lobisomem de Minas (um trabalhador da Rede Ferroviária Oeste Minas, que assassinou um desafeto e comeu o seu coração) pouco se sabe. Mas sobre Febrônio Índio do Brasil, falecido a 27 de agosto de 1984, aos 89 anos, existem maiores informações. Místico (teria criado uma espécie de religião fanática, "Deus Vivo Ainda Que Com o Emprego da Força", cujas iniciais trazia tatuadas no peito - DCVXVF - com a frase "Eis o filho da luz"), este mineiro criolo faria sua carreira criminosa no Rio de Janeiro, onde após assassinar cruelmente várias crianças foi preso e internado em 1927 no Manicômio Judiciário, no qual permaneceria por 57 anos, até a sua morte.
Na época que Cendrars esteve no Brasil falava-se muito de Febrônio ele tentou, inutilmente, entrevistá-lo, não o conseguindo - mas criando um texto a respeito. Sílvio Da-Rin em 1984, pouco tempo antes de Febrônio morrer, realizou um premiado curta a seu respeito com o título de "O Príncipe da Luz" - nome do livro que o assassino escreveu na prisão mas do qual não restou nenhum exemplar, já que a polícia queimou toda a edição.
Com uma liberdade total na reelaboração da trajetória de Cendrars pelo Brasil - fazendo-o chegar num moderno transatlântico, para apenas quatro dias do Carnaval viver sua aventura, os personagens, naturalmente se confundem e há um difícil entendimento da trajetória, com dois atores (Savério Roppa e Paulo César Pereio) interpretando Cendrars e a pontuação de um personagem diabólico, às vezes, travestido de camelô (Wilson Grey, em ótima atuação).
Odete Lara, há anos afastada do cinema, aparece numa personagem mitológica, por poucos minutos na tela - confundindo-se dentro da ficção onírica que deliberadamente o diretor-roteirista José Sette empregou para este filme de invenção e que, em absoluto, pode ser recomendado a quem não esteja disposto e previamente informado de que se trata de uma obra especial. Como disse o pesquisador e montador José Tavares de Barros, sem nenhum compromisso com o chamado "cinemão" é uma experiência avançada e revolucionária, tanto no que diz respeito à releitura da obra de Cendrars, quanto às inúmeras facetas da transposição cinematográfica. Barros, vai mais além:
- "Um filme 100% Brazileiro" é uma espécie de divisor de águas, fazendo ponte entre certas heranças do Cinema Novo e alguns aspectos do cinema de (Julio) Bressane e (Rogério) Sganzerla, mas com total autonomia e independência da parte de seu autor".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Veiculo: Estado do Paraná
Caderno ou Suplemento: Almanaque
Coluna ou Seção: Tablóide
Página: 3
Data: 29/12/1988