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terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O Século Analógico

Tempera sobre papel ano 2002


ENTREVISTA COM JOSÉ SETTE
Mario Drumond
2003

Quem conhece o cineasta José Sette tem a impressão que ele já nasceu com uma câmera na mão e uma porrada de idéias na cabeça. Não se sabe como (e é mesmo um mistério, ele não é rico, não tem “peixadas” e nem os famosos “incentivos”), mas desde o final da década de 60 ele filma sem parar - e sempre muito bem equipado com o melhor que a tecnologia do momento pode dar ao cinema. Por sua conta e risco construiu, um a um, seus próprios edifícios de arte cinematográfica, e, à maneira de um Gaudy do cinema, vem produzindo uma obra de estilo e qualidade, cujo numeroso conjunto realiza um dos mais sólidos e ricos acervos da nossa produção para as telas (ver box - cinematografia completa). Seus filmes conquistaram premiações e destaques em vários e importantes festivais como os de Brasília, Rio de Janeiro, Fortaleza, Berlim e Oberhausen, além de aclamações da melhor crítica nacional e internacional. Mas o conhecimento de sua obra é praticamente restrito aos estudiosos e especialistas. Nessa entrevista exclusiva ele nos concede algumas de suas visões de experiente artista do audiovisual e nos fala das batalhas que tem enfrentado pela resistência cultural brasileira em sua longa carreira de cineasta independente, nessa bagdá-babel em que se transformou o cinema brasileiro das três últimas décadas.


- Apesar de o cinema ser conhecido como a “Sétima Arte”, um dos seus maiores mestres, Fritz Lang, já afirmou que “cinema não é Arte”. Para você o Cinema é o quê?

- Lang tem razão: o cinema não é arte, mas um produto feito a partir das diversas Artes: a pintura, o teatro, a música... tem origens distintas, puras, pré-históricas, misturadas, organizadas e desorganizadas em infinitas experiências estéticas. Mas, para mim, fazer cinema é fazer literatura, poesia, é transmitir um sentimento pessoal e constante que excita a platéia fazendo-a vivênciar a mesma experiência particular do autor ou do artista. Assim, quando se faz cinema, o homem, o artista, consegue, à semelhança dos deuses, ser um mago, criar o seu universo, dominar a luz em um determinado espaço de tempo, e fazer nascer um mundo vivo, aberto, irreal, conflitante, dramático, livre e revolucionário, na vanguarda ou na retaguarda de todas as histórias e de todos os personagens e cenários que passam a existir a partir da nossa imaginação. Tal como o livro, o cinema, por si só, não é Arte, talvez seja uma técnica, uma indústria, mas será sempre um registro histórico. Mas, pelo menos para mim, só terá força e magia se feito por um artista; um artista que tem de se transcender num demiurgo, pois precisa dominar as várias linguagens e expressões da Arte, além das técnicas e indústrias envolvidas. Então é um produto cujo principal valor está no domínio da linguagem cinematográfica utilizada. Já o poder deste domínio estará diretamente relacionado ao valor do artista que elabora o produto; pois “o resultado final é obra de um só artista: o diretor do filme” – e isso não fui eu quem falou, foi o próprio Fritz.

- Acho que podemos dizer que o século 20 foi o “Século do Cinema”, pois sua história se confunde e interage com a do próprio cinema. Na sua opinião, quais teriam sido os mais valiosos legados que o cinema nos concedeu à história e ao novo milênio, no mundo e no Brasil?

- Sim, o cinema nasceu, floresceu e se perdeu neste século passado. Mas, repito o que disse Eisenstein: "...dessa reserva inesgotável de possibilidades não se viu serem aproveitadas senão migalhas". Das primeiras exibições dos irmãos Lumière até hoje, pode-se dizer que o cinema enriqueceu, de maneiras diferentes, todos os que dele se utilizaram ou se aproveitaram. Mas, a meu ver, poucos o alcançaram como instrumento da verdadeira expressão artística, pela realização de obras imortais. No primeiro estágio, ainda mudo, Griffith, Murnau, Dziga Vertov, Dreyer, Gance, Jean Vigo, Chaplin, Artaud, Eisenstein, etc. Eles transformaram o simples registro da imagem em movimento no que hoje é o mal conhecido dito cinema de autor, independente, experimental, udigrude, de invenção, de arte, etc, alcunhas que não formalizam escola ou movimento cinematográfico - a maioria são obras independentes, experimentais, de invenção; algumas, em menor número, filmes de arte. A minha grande descoberta, ainda na adolescência, foi a escola expressionista - assisti a todos esses estranhos filmes quando morei na França em 70, de Caligari à Leni Riefenstahl. Foram os que me mostraram o caminho a seguir. No Brasil, dois gênios incompreendidos: Mário Peixoto e o fotógrafo Edgar Brasil, e, pouco depois, o nosso Humberto Mauro, nomes que dispensam comentários. Na sequência, Alberto Cavalcanti, a quem conheci pessoalmente no hotel Castro Alves do Rio de Janeiro, e que fez questão de assistir ao meu filme sobre o paleontólogo P.W. Lund. Ele me fez entender a criação da música na construção de um filme. Do cinema em geral e universal, gosto dos xenófobos John Ford e Kazan, artistas sem coloração partidária. Admiro os rebeldes, de Truffaut ao inesquecível Roger Corman, do ágil e iconoclasta Cassavetes ao kabuki Kurosawa, do samurai Mizoguchi ao atormentado Buñuel, do apavorante Hitchcock aos apaixonantes Rosselini e Fellini, do anárquico Pasolini ao introvertido Kubric, do aristocrático Luchino Visconti ao enigmático Jean-Marie Straub. Mas os meus favoritos, os únicos que talvez eu devesse citar, são Welles e Godard. No Brasil, a “chanchada” dos anos 50 e sua liberdade de linguagem no tratamento dos signos populares da época. Vejo também com simpatia a rebeldia de alguns filmes neo-realistas e cinema-novistas dos anos 60. Deles, Glauber foi o que transcedeu em direção à Arte. Mas os que mais me influenciaram foram o novo cinema brasileiro achado por Sganzerla, Bressane, Sarraceni, e as raridades do cinepop Neville, do debochado Tonachi, do hermético Sylvio Lanna, do assombroso Elyseu Visconti e do panfletário Veloso, meus contemporâneos. Essas são, para mim, algumas das preciosas “migalhas” que nos sobraram do que você chamou “século do cinema”.

- Pela sua resposta e pelo que sabemos, o Cinema de autor vinha num crescendo até a década de 60 e aí parece ter encontrado uma pedra no caminho. Me lembro de ter enfrentado filas enormes nos anos 60 para ver “Pierrot, le fou” de Godard e, na década de 90, fiquei praticamente só numa sessão de “Helá, por moi”. Essa pergunta me vem por que a sua geração começou a filmar justamente naquele embalo e com muito sucesso de público no início. Mas desde que a mídia passou a ignorar o cinema de autor, nos meados dos anos 80, o grande público foi se distanciando cada vez mais de um Glauber, de um Welles, o que dizer então das novas gerações... Essa pedra no caminho teria sido a televisão?

- Vamos tentar resumir a história: nas décadas de 50, 60 e 70, surgiram jovens cineastas que, com base nas experiências bem sucedidas dos mestres do passado, queriam transformar e revolucionar a estética cinematográfica, criar um cinema de pensamento - um filme onde não se via: tinha-se visão. Um cinema que queria mexer com a inteligência do público. Eram artistas, intelectuais, poetas, filósofos, músicos, estudantes de arte, que, com pouco dinheiro e muita resistência, conseguiram furar o bloqueio da indústria do cinema roliudiano, realizando seus filmes e conquistando mais espaço à cada dia. Em todo o mundo e aqui no Brasil esse cinema conseguia as melhores bilheterias, os filmes eram exibidos, a crítica aclamava, o público comparecia, aplaudia, consagrava. Isso de fato preocupou os bigboses de Hollywood. Em uma reunião no Pentágono, o Sr. Jack Valenti, da Motion Pictures, discutiu com generais e poderosos de plantão as estratégias para inverter a situação. Posso citar algumas das que atingiram diretamente o nosso cinema: a compra da grande imprensa nacional e o desmantelamento da imprensa independente e de opinião, o fornecimento de generosos pacotes de filmes aos exibidores e à televisão em troca do nosso café, a intervenção política nos bastidores das produções, o sucateamento da nossa incipiente indústria cinematográfica, massacrando sua infra-estrutura... E muitos dos nossos cineastas, que eram mais negociantes que artistas, se venderam a esses interesses e se embrenharam no atoleiro da mentira, dando ouvidos aos representantes das distribuidoras internacionais, que os conclamavam à conquista de um mercado inexistente através do cinemão. Olha! não sou contra as grandes produções, mas sou contra um cinema que procura imitar o que de pior se faz lá fora! O cinema feito assim no Brasil é o mesmo que uísque do Paraguai – não desce! Aí, é claro, o público, que acabou ficando emparedado entre as mediocridades falsas e as autênticas, vai preferir essas últimas. Pelo menos são autênticas! E foi nessa onda de mediocridade que o nosso mercado de audiovisual se transformou em mercado de cinema feito nos EUA. Hoje cinema brasileiro no Brasil, aos olhos de um público massacrado por tão poderoso bombardeio, parece mais coisa de “estrangeiro”. E é óbvio que a TV faz a sua parte. Talvez seja ela a estrela principal dessa abominável história. E cumpre o seu papel, direitinho, em todos os sentidos. Seja contribuindo para debilitar a inteligência do público com suas novelinhas execráveis, seja veiculando o cinemão classes “c” e “d” de roliúde nos chamados “horários nobres”, seja dando força total de audiência aos das classes “a” e “b” em seus lançamentos lá e cá. Às vezes, e muito de-vez-em-quando, as nossas produções ditas como “a”, mas que se eqüivalem as “e” de lá, pegam um pontinha ou outra nas “grades” das grandes. Na TV Globo, por exemplo, o verdadeiro cinema brasileiro - que é sempre um cinema de classe para todas as classes e portanto não pode ser classificado ou desclassificado mercadologicamente - nunca foi exibido em horário decente. A situação chegou a tal ponto que hoje no Brasil muito pouca gente sabe o que é cinema.

- Mas o verdadeiro cinema continuou a ser produzido, não é? Nem todos os cineastas se venderam e você está entre os que ainda resiste. E quando você começou a filmar a coisa já estava preta. O que o levou a acreditar na sua carreira de cineasta, sabendo que ela começava dentro de uma realidade tão negativa e tão pouco promissora?

- Meu pai, que queria que eu fosse médico e depois político, não entendia a minha opção pelo mundo artístico, sempre me dizia: - Meu filho, "cinema é salário de fome em negócio de débeis mentais"... e eu! Ficava revoltado, queria fazer cinema. Tinha 16 anos quando escrevi o meu primeiro roteiro de cinema - Cidade Sem Mar - sobre Belo Horizonte e sua juventude - José Aparecido de Oliveira, amigo do meu pai, me incentivava, mas queria que eu aceitasse primeiro ser o assistente de direção do filme: A Vida Provisória do cineasta, já falecido, Maurício Gomes Leite, que ele estava ajudando na produção pelo BDMG. Não deu nem uma coisa, nem outra. Meu pai foi cassado pela ditadura. Eu, perseguido pela família e polícia mineira, enlouquecido, perdido, frustrado, envolvido com política estudantil, fui morar no Rio de Janeiro e depois, sem saída, fui morar em Londres, sem ter conseguido realizar o meu primeiro filme. Na Europa, respirei um pouco da liberdade perdida, abrandei a paranóia adquirida e conheci o cinema expressionista alemão, pelo qual me apaixonei nas sessões intermináveis da cinemateca de Paris. Depois, resumindo, conheci o catalão Rogério Lagostera, que veio morar no Brasil e, a meu pedido, trouxe de Barcelona um equipamento completo de se fazer cinema. Quando voltei à terra do sem fim, foi ele o meu primeiro produtor, quem acreditou nas minhas idéias e pude assim, finalmente, realizar o meu sonho acalentado durante 8 anos - fazer e viver de cinema. Não foi o falso glamour da carreira de cineasta que me proporcionou realizar os 16 filmes de arte nestes 32 anos de vida cinematográfica, sempre vivi com o mínimo necessário, nunca fui um burguês, o que eu conseguia com o meu trabalho de fotógrafo de publicidade, era revertido em negativos e os filmes foram surgindo. Só tive um título produzido com o dinheiro do estado, ou melhor, da extinta Embrafilme - Um filme 100% brazileiro - a menor verba liberada pela Empresa em toda a sua existência. Não reclamo - fiz o que fiz - vivo o cinema com alma limpa - paguei o preço - faço arte de vanguarda brasileira, em conflito constante ao movimento acadêmico, roliudiano, que se pretendia e que até hoje se pretende como meta de conquista de um mercado fantasma, dominado pela ganância burra de quem está escravo das distribuidoras internacionais, do péssimo cinema, com raras exceções. Que fique claro: - não sou contra ao lazer, ao divertimento, a uma boa história, a um bom roteiro, a uma produção requintada no cinema, se ele for brasileiro, se ele falar da nossa terra, de nossas tradições, da nossa cultura com respeito para todo o nosso povo, mesmo que não me identifique com a estética, o tratamento do tema e sua linguagem, respeito o realizador e o público, mas peço o mesmo respeito ao cinema de arte, de invenção, de vanguarda e poético, ao qual me apego e no qual me realizo, sou pela arte e não sei fazer de outra maneira, nunca me preocupei com o capital, com o mercado, mesmo recebendo sempre um salário de fome - é que sempre me encantou a magia da imagem em movimento, me fazia sonhar, o cinema puro, filmes onde pudéssemos exercitar, criar, um mundo novo. Os débeis mentais sempre existiram e, talvez, neste mundo de quinta grandeza sempre existirão. Hoje as coisas, também, estão pretas: o meu primeiro filme de longa metragem "Bandalheira Infernal", fala um pouco disso; filmado em 1975, censurado, nunca foi distribuído e nem aceito pelos críticos da época. Quando voltei do velho continente, a resistência era continuar realizando um cinema de busca poética, livre, que queria ser visto, mas sem ter o compromisso estético com o atual mercado. Pensei que depois de tanto tempo poderia ser reconhecido como um bom cineasta investigativo sobre os nossos brasis mas continuo sendo recusado pela crítica oficial e pela mídia. Nada mudou para mim e isto comprova, depois de 33 anos de atividade e de resistência, o meu compromisso com a vanguarda da arte cinematográfica. Acredito que os meus filmes, o meu cinema, mexe com a cabeça de muita gente e que só não é visto pelo grande público, com sucesso, porque não tem distribuição. Foi esse o motivo que me levou a exibir o meu último filme de longa metragem "O Rei do Samba" em pré-estréia nas televisões educativas e de cultura, em rede, por todo país atingindo a mais de 4 milhões de espectadores em uma única exibição. Não é um sucesso popular? Portanto não sou eu que sou a resistência - eles, a mídia, os críticos débeis mentais, o sistema e o poder é que me resistem. O que posso fazer?

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