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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

UM CONTO DE REIS

CANÇÃO ESTRATOSFÉRICA DO SUBMUNDO

                                                      Fabio Carvalho


Quando a vi pela primeira vez, Sylvia Klein tinha dezessete anos. Como nefelibata ela passava em frente à grade do Parque Municipal na direção contrária da minha, destacando-se de maneira cintilante em meio à multidão cinza. Foi recorrente minha visão, cheguei a marcar a hora para vê-la passar. Ali seu caminhar já era brilhante. Branca e rosa como uma boneca de porcelana, não disfarçava sua voluptuosidade de roqueira. Observei seu trajeto cantante, no coro, nos progressivos até chegar a metaleira, que mais a absorvia, sempre tomada de opinião. A dedicação ao canto lírico a transmutou para óperas, operetas e grandes concertos, ainda à parceria de sua voz e o piano voador do Wagner Sander, depois voou para o mimoso Caffeine Trio, melindrosas cantoras do rádio. Antes, no inicio dos anos noventa começamos a conversar no extraordinário Café Urrubú dos meus atores Hélio Zolini e Soraya De Borba. Fizemos nosso primeiro ensaio cinematográfico na Igreja da Pampulha, em um plano-sequência para o filme Encontro Com Bardem, onde canta sem edição Manuel de Falla, Dorival Caymmi e Pixinguinha, que para meu espanto já sabia de cor.  Foi exato no dia em que ela completava trinta anos. Passamos uma temporada de encontros casuais, na rua, em festas ou quando ela fez uma visita aos bastidores do filme O General, acompanhando uma amiga. Mais adiante já em Porta Do Palco, filme dedicado aos cinquenta anos de produção artística do nosso doce patrimônio Julinho Varella, ela voltou para frente da minha objetiva. No Rio, quando exibi Jimi Hendrix e a Fonoaudióloga que ela protagoniza, o cineasta Luís Rosemberg Filho me perguntou: onde você encontrou essa bela atriz de Moliére? Anos antes o mestre João Etienne tinha me dito que reconhecia o verdadeiro ator, quando este tinha uma boa vaidade, uma necessidade de exibição que começava na infância fazendo apresentações para os amiguinhos e para a família, que em geral o cômico revela um grande ator dramático, o contrário nem sempre acontece. O riso toca o especifico mágico humano para que se vertam as lágrimas da tragédia existencial.  Sua explosão expressiva de cantriz é indubitável, sob a luz da interpretação da natureza. Está claro que nada nasce pronto, é preciso um celestial esforço para o polimento, ela o fez.  Só conheci pessoalmente o Wagner Sander no início dos ensaios desse encantado Canção do Submundo. Ele fez contrariar a frase do Rogério Sganzerla, que utilizo como minha: não quero conhecer ninguém que não conheço. Jovem, exímio pianista, esse instrumento totalizante para a música como cinema para as artes, cinéfilo, conhecedor da filosofia, culto e radical, como todo artista deveria ser. Sempre fui wagneriano, hoje muito mais. Dirigir esses dois rebentos fulgurantes, tem sido um experimento, um aprendizado imensurável no sentido de dominar a arte de ser desnecessário, dominar a arte de colaborar sem atrapalhar, já que aqui, eles acendem as luzes num gabarito altíssimo. Dominar com carinho, das minas para o mundo. Ainda tive o prazer, com aquiescência da Sylvia, de convidar o Adyr Assumpção para fazer Glauber falando Brecht. Meu ator no O General e no Significações Amorosas, roteiro do Luís Rosemberg Filho, que por enquanto não reuni condições para realizar. Articulado, também diretor, dono de figura inclassificável e voz marcante, veio dar o tom mestiço ao recital. Somos todos afrodescendentes. O feminino, sensual, corrosivo discurso de Brecht e Weill, nos serve como uma metralhadora de esperanças em flor, como reação ao grave momento limítrofe das intolerâncias, que o Brasil e o mundo atravessam se ressentindo. Uma nova vida se descortina através da música. Nada é mais político do que a arte pela arte.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Origem do Nome



O PAU BRASIL
Armando Alexandre dos Santos 

Contrariamente ao que muita gente pensa, não foram os portugueses que praticamente extinguiram o pau-brasil da nossa mata atlântica. Nem foram eles que praticamente extinguiram essa mata. Os portugueses sempre tiveram uma preocupação preservacionista muito grande, com relação à natureza do Brasil. Foram, nessa matéria, verdadeiros precursores do moderno ambientalismo, numa época em que ninguém, absolutamente ninguém, tinha essa preocupação.
Os franceses levavam o pau-brasil, pagavam aos índios no sistema clássico dos espelhinhos e lantejoulas e voltavam para sua terra sem maiores preocupações ou escrúpulos de consciência.
Os portugueses, entretanto, agiam de forma bem diversa. Transcrevo trecho muito elucidativo a respeito, de artigo publicado no jornal “O Estado de S. Paulo” de 17-1-2007, pelo Prof. Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em Ecologia e chefe geral da Embrapa Monitoramento por Satélite: “Na maioria dos países, a defesa da natureza é fenômeno recente. No Brasil, vem de longa data. Desde o Século XVI, as Ordenações Manuelinas e Filipinas estabeleceram regras e limites para exploração de terras, águas e vegetação. Havia listas de árvores reais, protegidas por lei, o que deu origem à expressão madeira-de-lei. O Regimento do Pau Brasil, de 1600, estabeleceu o direito de uso sobre as árvores e não sobre as terras. As áreas consideradas reservas florestais da Coroa, não podiam ser destinadas à agricultura. Essa legislação garantiu a manutenção e a exploração sustentável das florestas de pau-brasil até 1875, quando entrou no mercado a anilina. Ao contrário do que muitos pensam e propagam, a exploração racional do pau-brasil manteve boa parte da Mata Atlântica até o final do Século XIX e não foi a causa do seu desmatamento, fato bem posterior”.
Numa conferência a que assisti, no Rio de Janeiro, o Prof. Miranda esclareceu que, quando o pau-brasil deixou de ser explorado, em 1875, com certeza havia mais árvores de pau-brasil em nosso território do que em 1500, porque se plantara mais do que se abatera.
Sei que essa idéia surpreende, porque vai na contra-mão do que todos imaginam e repetem, mas essa é a realidade.
No mesmo estudo, Miranda aponta outros documentos legais portugueses que revelam a preocupação ambiental. Em 1760, por exemplo, um alvará do rei D. José I procurou proteger os manguezais. Ainda no século XVIII, em 1797, várias cartas-régias do Príncipe Regente D. João (depois, rei D. João VI) consolidaram leis ambientais referentes às matas da costa. Foram, ainda, instituídos os Juízes Conservadores, encarregados de julgar e aplicar as penas em casos de atentados à vegetação. Eram severas as penas aplicadas aos infratores: multa, prisão, degredo e até, em caso de incêndios dolosos de florestas, pena de morte. Foi, ainda, promulgado um Regimento de Cortes de Madeira. No Império, a monarquia brasileira manteve essa mesma política preservacionista, conforme documenta Miranda em seu artigo, sustentando documentadamente que a política florestal adotada pelos Reis de Portugal e pelos Imperadores do Brasil conseguiu preservar a cobertura vegetal brasileira até à proclamação da República. Foi já no atual regime, mais precisamente ao longo do século XX, que se deu o triste fenômeno do desmatamento.
Vejo, com pasmo, a desinibição com que norte-americanos e europeus falam da nossa Amazônia como“patrimônio mundial”… Logo eles, que devastaram suas próprias florestas enquanto nós preservávamos muito das nossas! A esse respeito, passo novamente a palavra ao Prof. Miranda: “Há oito mil anos o Brasil possuía 9,8% das florestas mundiais. Hoje, o país detém 28,3%. Dos 64 milhões de km2 de florestas existentes antes da expansão demográfica e tecnológica dos humanos, restam menos de 15,5 milhões, cerca de 24%. Mais de 75% das florestas primárias já desapareceram. Com exceção de parte das Américas, todos continentes desmataram, e muito, segundo estudo da Embrapa Monitoramento por Satélite sobre a evolução das florestas mundiais. A Europa, sem a Rússia, detinha mais de 7% das florestas do planeta e hoje tem apenas 0,1%. A África possuía quase 11% e agora tem 3,4%. A Ásia já deteve quase um quarto das florestas mundiais (23,6%), agora possui 5,5% e segue desmatando. No sentido inverso, a América do Sul que detinha 18,2% das florestas, agora detém 41,4% e o grande responsável por esses remanescentes, cuja representatividade cresce ano a ano, é o Brasil”.
Assim sendo, apesar da devastação que nós próprios fizemos ao longo do século XX, o Brasil ainda pode ser considerado um bom exemplo mundial em matéria de preservação. Justamente o Brasil, agora tão acusado pelos verdadeiros campeões do desmatamento!
Quis recolher aqui essas informações porque são pouco divulgadas e têm o maior interesse. Recomendo vivamente que se leia na íntegra o próprio texto de Miranda, muito atual, aliás, neste momento em que nossa Amazônia é cobiçada por estrangeiros.
Armando Alexandre dos Santos é historiador, jornalista e diretor da Revista da Academia Piracicabana de Letras.


domingo, 20 de dezembro de 2015

REVISÃO SGANZERLA


O IDIOMA DE ROGÉRIO SGANZERLA E OS IDIOTAS DA TELENOVELA
Gilberto Felisberto Vasconcellos
Resumo: Nesse texto buscamos memórias de vida, leituras e imagens sobre o cineasta Rogério Sganzerla e buscamos situá-lo na dinâmica da arte e das letras brasileira.

Somente agora li os seus Textos Críticos, dois volumes publicados em 2004 pela editora da Universidade de Santa Catarina. Lembrei de meus encontros em São Paulo com Rogério Sganzerla, acompanhado às vezes por Jairo Ferreira, e no Rio de Janeiro junto com José Sette. Não me recordo do primeiro encontro, talvez tivesse sido entre 1977-1978, ambos escrevíamos crônicas para o jornal A Folha de São Paulo sob a direção de Cláudio Abramo. Também escreviam na mesma página Glauber Rocha, Paulo Françis e Hugo Celidonio. Uma noite jantamos eu e Rogério no filé do Morais, a certa altura ele meteu o sarrafo em mim dizendo que só tematizava meus amigos. Coisa de patotinha. Rogério era três anos mais velho do que eu. De Paris, artigo publicado no jornal, referi-me a uma frase de Oswald de Andrade: “o barbante não tem fim”, cujo assunto tocava de leve em seus filmes. De volta ao Brasil, um dia ele me disse que eu deveria continuar o lance do barbante. Falava sempre de maneira elíptica e metonímica. Olha o boné do Lula. Boné não dá pé. O cara usa boné. Boné é mau. No Rio eu lhe telefonava, ia em seu apê na Urca, depois saíamos para tomar uns tragos. De madrugada eu pegava o ônibus para Petrópolis, José Sette se dispôs a me levar até a rodoviária. Rogério: “não leve ele não, esse cara é do Partidão”. Eu achava engraçado, José Sette ria, manera Rogério. No entanto, isso não impedia que eu o procurasse numa boa, ainda que me intrigasse, Rogério não gosta de mim, pensava; porém não era bem assim, é que eu curtia mais os filmes de Glauber Rocha, nisso entrava o marxismo, daí identificar-me com o Partidão. Depois de sua morte evoquei essas e outras conversas com os meus amigos Gilberto Santeiro e Elyseo Visconti, que também já partiram, partiram primeiro, dizia Luis da Câmara Cascudo. Era Rogério Sganzerla anti-marxista? Tenho a impressão de que ele confundia marxismo com stalinismo. Não há em sua prosa alusão ao trabalhismo de Vargas ou de Jango. Em O Bandido da Luz Vermelha se aparece Vargas, é na pele de Adhemar de Barros; ademais esse belo filme é tecido linguisticamente com os romances de Oswald de Andrade (Miramar e Serafim) e o escritor modernista esteve às turras com o “anão Vargas” de 1930 a 1954. Não posso afirmar com certeza se a eclipse de Vargas no cineasta de Joaçaba deveu-se a influência da turma udenoliberal do jornal Estado de São Paulo (Ruben Biáfora e Flávio Tambellini); o golpe anti-trabalhista de 1964 surge apenas uma única vez em seus escritos até 1967. No kinobar do presidente Almeida Salles na Rua São Luiz eu lhe sugeri (tinha terminado de escrever meu livro Collor a Cocaína dos Pobres) para filmar o candidato marajá como o bandido anti-vermelho. Rogério Sganzerla, e não o melífluo Roberto D’Ávila, poderia ter dirigido na televisão a campanha eleitoral de Brizola em 1989, data desastrosa na história do Brasil. Lendo agora os seus artigos, observo que neles, junto com a metalinguagem sobre código do cinema, há alguma coisa meio existencialista centrada no amor e na morte, Godard é onipresente, mas não o Godard marxista. Digo abordagem um tanto quanto existencialista, o que não quer dizer psicologista, porque os personagens dos seus filmes carecem de psicologia. Nada de arroubos emotivos e subjetivistas. Quem tiver de sapato não sobra. Ele preferia o cinema “arte das aparências” refratário ao “complexo de seriedade”, o que não quer dizer que fosse anti-intelectual, como se diz erroneamente quanto às brigas e divergências com o Cinema Novo. Oswald de Andrade também foi pichado de inculto e chutador, que não lia um livro por inteiro. Começando como crítico de cinema muito jovem (17 anos), espécie de Rimbaud da crítica, Rogério era dotado de uma notável capacidade intelectual, sem deixar de aduzir que os seus filmes ainda hoje despertam o maior interesse por causa da mimese, embora subjetivamente declarasse contrário aos “enfatismos” e “simbolismos sociais”. Rogério Sganzerla estava, do ponto de vista linguístico, menos chegado à hipérbole do que à litotes. No Rio de Janeiro foi visto como um meteco, e não como um marginal. Quem melhor filmou São Paulo não retratou o boêmio ou o revolucionário e sim bandido insular, desorganizado, solipsista, e o fez de maneira tão física que se confunde com a polícia, o que dá margem a pensar que na São Paulo bandeirante a polícia é objeto de amor e admiração. Em um final de tarde, crepúsculo cinzento, boteco próximo à Rua da Consolação, estávamos eu, Jairo Ferreira e Rogério bebericando umas cervejotas. De repente Rogério chamou nossa atenção para um tipo alto, magro, terno e gravata, que acabara de entrar com passos lentos, olha só que delegado não daria esse cara. Segundos depois o bar ficou coalhado de policiais, era uma blitz pedindo documento sob as ordens do delegado esquálido. Nesse dia disse-lhe que estava a fim de fazer um livro sobre Gilberto Freyre. Sai dessa, retrucou, melhor é Oswald de Andrade. Em um artigo da década de 80 observou, no entanto que o autor de O Rei da Vela, teatro dedicado ao gaúcho Álvaro Moreira, não citou e não sacou Noel Rosa, que escrevia tão bem quanto outro Rosa, Guimarães Rosa. Explicitou que “o pieguismo meloso” de Chico Buarque não tinha nada a ver com o filósofo da Vila Isabel. Rogério me convidou para ver na moviola, estúdio Jean Manzon em frente à biblioteca Mário de Andrade, o filme que estava montando sobre Noel Rosa. Gal Costa canta, aí comentei que a voz da baiana estava mal, porque não sintonizava com os pulmões de Noel Rosa. Depois vi o filme pronto e, confesso, gostei mais da maneira com que ele filmou Luiz Gonzaga em Sem essa, Aranha. Neste filme estava o sertão, sanfona plebeia no Rio, assim como Copacabana Mon Amour trazia a superstição da estrada Rio-Bahia. O que não me agrada em seus filmes (Nem tudo é Verdade) é o excesso de música, o que subtrai o silencio e prejudica a fruição da imagem. Há João Gilberto demais; afinal, Rogério curtia o cinema mudo estudado por Orson Welles na feitura de Cidadão Kane. O moderno cinema brasileiro é vassalo da música popular, o enchimento sonoro surge sem razão de ser no andamento dos filmes, como se o cineasta estivesse inseguro diante daquilo que está mostrando, daí a música muleta para seduzir o que já foi ouvido. É o that’s it, é o isso aí, de que falava Theodor Adorno contra fetichismo da mercadoria radiofônica. A Bossa-Nova e a Tropicália, ao invés de salvarem, atrapalharam muitos filmes, não só os de Rogério como também os de Glauber, a exemplo de Jorjamado é Claro. Ironia da história, depois da morte de ambos, Glauber e Rogério estão mais próximos e irmanados esteticamente do que o cineasta baiano e os seus amigos do Cinema Novo, os quais converteram-se em ideólogos da telenovela, o principal instrumento do poder multinacional. Frederico Mendonça, o Fredera, escreveu sobre o pianista Tenório JR., O Crime contra Tenório. Com os festivais da canção houve um processo de “estupidez musical via Roberto Carlos ou da cancionalização da música brasileira via Festivais e emepebê, e este advento se deu concretamente a partir de 64”. Roberto Carlos parabenizou em 1986 José Sarney por ter proibido a exibição do filme Je Vous Salue Marie de Jean-Luc Godard. Os músicos instrumentistas tiveram de bater cabeça para a cancionística bundalelê. A canção converteu-se na semântica dominante popilantraroquitropicaliasertanejuniversitária. Jovem-Guarda. Pilantragem. Swingado. Bugalu. Roquipopi. Tudo gritando lovimiplis. O cinemão é feito pelos filhos da telenovela, a qual exibe o fascismo da sorte. Tudo por acaso, nada tem causa, tudo é aleatório. Dinheiro não falta para os filhos da telenova; o que inexiste no entanto, como anteviu Rogério, é talento no “Cinema Novo-Rico”, que é imoral e obsceno porque se regozija com o subdesenvolvimento. Estou em desacordo com o juízo superficial acerca de um Rogério tropicalista, porque o seu cinema é nítido, incisivo, apodítico, e não pusilânime e apologético a favor do arrivismo vencedor na dialética do desenvolvimento capitalista desigual. Em sua prosa o que se nota é a influência de Oswald de Andrade e da poesia concreta com seus jogos paranomásicos e os trocadilhos ásperos e com raiva analítica. A linguagem do cinema que se volta sobre si mesma não é diferente da função poética na linguística dos poetas concretos, ou seja, o caráter autorreflexivo da linguagem. Releva dizer o que passou até então despercebido: a entrevista que Rogério fez em 1966 com Glauber antes de ser realizado o filme Terra em Transe. Nesta entrevista Glauber afirmou que o Cinema Novo nasceu do concretismo, do “revisionismo” feito pela poesia concreta no suplemento literário do Jornal do Brasil. A única ressalva é que o nacionalismo não era presença forte na poesia concreta, então o Cinema Novo (leia-se: ele, Glauber) radicalizou o nacionalismo de 22, tornando-o de feição anti-imperialista: “a bomba e fome dividem a terra”. No idioma rogeriano, tal qual nos filmes de Glauber, não há ascensão social dos personagens. Em Rogério, à diferença de Glauber, está escancarada a espinafração, muitas vezes amarga. Em seus filmes não surge o devir histórico ou a ideia de revolução antiimperialista. Fato é que a vida de Rogério virou um inferno quando pegou na câmera para filmar, antes escrevia crítica em São Paulo e não lhe caíram de pau: “quem irá me defender a não ser eu mesmo?”, perguntava em 1981. Glauber, Rogério, poesia concreta, a florestas de signos, na qual o segredo está na música. Com que música? Em Contracomunicação Décio Pgnatari se empolgou com Caetano Veloso, superior a Villa-Lobos e Claudio Santoro. Em alguns textos de Augusto e Haroldo de Campos a estrela de Santo Amaro da Purificação refulge ao lado de James Joyce e Maikovski. Em termos de avaliação crítica, parece que nem o Espírito Santo é infalível. Excelentes musicólogos, os poetas concretos ergueram o axé da emepebexéu, e isso talvez tivesse ocorrido por causa do modo de produção auricular da sociedade brasileira. É preciso fazer o revisionismo crítico depois que a ditadura se foi sem ir, e que a máscara da democracia elide a realidade desastrosa, social e econômica do país. Vejamos um lugar comum veiculado pelas vozes que dão o lé com crê acadêmico: poesia concreta, indiferente ao nacionalismo anti-imperialista? Não é verdade, a julgar pelo livro de 1964 feito pelos irmãos Campos sobre Sousândrade, no qual “o câncer de Wall Street” é escancarado, a Comuna de Paris (o primeiro governo proletário) é elogiada e posta em destaque a “dinheirocracia” capitalista, para não mencionar a contradição colônia-metrópole, tal qual aparece no livro Re-operação do Texto de Haroldo de Campos. “Hoje se pode ver que o grande cantor revolucionário brasileiro – em conteúdo novo e forma nova – não foi exatamente Castro Alves, que celebrou em versos bombasticamente retóricos temas que já estavam de certo modo consciencializados por seu tempo (a abolição da escravatura, por exemplo), mas Sousândrade, cuja consciência antecipadora apanhou em cheio o conflito fundamental da América Latina subdesenvolvida e submetida a um estatuto colonial, no mundo do capitalismo que se transforma em imperialismo”. Em 1971, em seu livro Contra-comunicação Décio Pgnatari alertou para a metamorfose do guaraná à Coca-Cola. “O lucro exige um tempo linear”. No país bacharel dos bolhas machadopenumbrando no Supremo Tribunal Federal, a contenção da linguagem concretista é luta de classes. Injuriado com a sociologia do “juste milieu”, Oswald de Andrade abriu o jogo: afinal, sou cinematográfico ou gongórico? No mundo acadêmico foi montada a lenda de que o lastro participante da literatura estava com a crítica sociológica, enquanto a poesia de Perdizes era formalismo alienado. Algo similar sucedeu no Cinema Novo carioca, que lidava com os temas sociais, filmes de denúncia da miséria, cujos cineastas foram entregando o time para a televisão coadjuvante de Wall Street. O curioso é que até mesmo “o marxismo” do PC stalinista deu alpiste para a patota liberal do Cinema Novo qualificar Rogério de “direita”, o qual tinha paixão pela forma (um filme é um filme é um filme) mas não negligenciava o referencial cognitivo do cinema. Enfim, venceu o triunvirato Roberto Campos, Roberto Marinho e Fernando Henrique Cardoso. O ex-Cinema Novo passando por cima do legado de Glauber Rocha justificará (com adesão da Tropicália anti-comunista) o golpe de 64.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A VOZ DA AMÉRICA DO SUL



Evo Morales na Europa!!!

Presidente boliviano intima Chefes de Estado europeus a quitarem a dívida estratosférica que a Europa possui com a América Latina.
Com linguagem simples, que era transmitida em tradução simultânea a mais de uma centena de Chefes de Estado e dignitários da Comunidade Européia, o Presidente Evo Morales conseguiu inquietar sua audiência quando disse:
"Aqui eu, Evo Morales, vim encontrar aqueles que participam da reunião.
Aqui eu, descendente dos que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar os que a encontraram há somente quinhentos anos.
Aqui pois, nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e é o bastante. Nunca pretendemos outra coisa.
O irmão aduaneiro europeu me pede papel escrito com visto para poder descobrir aos que me descobriram. O irmão usurário europeu me pede o pagamento de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei a vender-me.
O irmão rábula europeu me explica que toda dívida se paga com bens ainda que seja vendendo seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu os vou descobrindo. Também posso reclamar pagamentos e também posso reclamar juros. Consta no Archivo de Indias, papel sobre papel, recibo sobre recibo e assinatura sobre assinatura, que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a San Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.
Saque? Não acredito! Porque seria pensar que os irmãos cristãos pecaram em seu Sétimo Mandamento.
Expoliação? Guarde-me Tanatzin de que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão!
Genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que qualificam o encontro como de destruição das Indias, ou a radicais como Arturo Uslar Pietri, que afirma que o avanço do capitalismo e da atual civilização europeia se deve à inundação de metais preciosos!
Não! Esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de muitos outros empréstimos amigáveis da América, destinado ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito não só de exigir a devolução imediata, mas também a indenização pelas destruições e prejuízos. Não
Eu, Evo Morales, prefiro pensar na menos ofensiva destas hipóteses.
Tão fabulosa exportação de capitais não foram mais que o início de um plano ‘MARSHALLTESUMA’, para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis guerras contra os cultos muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho cotidiano e outras conquistas da civilização.
Por isso, ao celebrar o Quinto Centenário do Empréstimo, poderemos perguntar-nos: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo dos fundos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indoamericano Internacional?Lastimamos dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem outro destino que terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como no Panamá, mas sem canal. Financeiramente, têm sido incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de cancelar o capital e seus fundos, quanto de tornarem-se independentes das rendas líquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este deplorável quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e os juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de 20 e até 30 por cento de juros, que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos adiantados, mais o módico juros fixo de 10 por cento, acumulado somente durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça.
Sobre esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, informamos aos descobridores que nos devem, como primeiro pagamento de sua dívida, uma massa de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambos valores elevados à potência de 300. Isto é, um número para cuja expressão total, seriam necessários mais de 300 algarismos, e que supera amplamente o peso total do planeta Terra.
Muito pesados são esses blocos de ouro e prata. Quanto pesariam, calculados em sangue?
Alegar que a Europa, em meio milênio, não pode gerar riquezas suficientes para cancelar esse módico juro, seria tanto como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demencial irracionalidade das bases do capitalismo.

Tais questões metafísicas, desde logo, não inquietam os indoamericanos. Mas exigimos sim a assinatura de uma Carta de Intenção que discipline os povos devedores do Velho Continente, e que os obrigue a cumprir seus compromissos mediante uma privatização ou reconversão da Europa, que permita que a nos entregue inteira, como primeiro pagamento da dívida histórica."

domingo, 13 de dezembro de 2015

UM CONTO PORTUGUÊS


O VIAJANTE CLANDESTINO
Mia Couto

- Não é arvião. Diz-se: avião.
O menino estranhou a emenda de sua mãe. Não mencionava ele uma criatura do ar? A criança tem a vantagem de estrear o mundo, iniciando outro matri­mónio entre as coisas e os nomes. Outros a elas se semelham, à vida sempre recém-chegando. São os homens em estado de poesia, essa infância autorizada pelo brilho da palavra.
- Mãe: avioneta é a neta do avião?
Vamos para a sala de espera, ordenou a mãe. Sala de esperas? Que o miúdo acreditava que todas as sa­las fossem iguais, na viscosa espera de nascer sempre menos. Ela lhe admolestou, prescrevendo juízo. Aquilo era um aeroporto, lugar de respeito. A senhora apon­tou os passageiros, seus ares graves, sotúrnicos. O me­nino mediu-se com aquele luto, aceitando os deveres do seu tamanho. Depois, se desenrolou do colo ma­terno, fez sua a sua mão e foi à vidraça. Espreitou os imponentes ruídos, alertou a mãe para um qualquer espanto. Mas a sua voz se arfogou no tropel dos mo­tores.
Eu assistia a criança. Procurava naquele aprendiz de criatura a ingenuidade que nos autoriza a sermos estranhos num mundo que nos estranha. Frágeis onde a mentira credencia os fortes.
Seria aquele menino a fractura por onde, naquela toda frieza, espreitava a humanidade? No aeroporto eu me salvava da angústia através de um exemplar da in­fância. Valha-nos nós.
O menino agora contemplava as traseiras do céu, seguindo as fumagens, lentas pegadas dos instantâneos aviões. Ele então se fingiu um aeroplano, braços esten­didos em asas. Descolava do chão, o mundo sendo seu enorme brinquedo. E viajava por seus infinitos, roçan­do as malas e as pernas dos passageiros entediados. Até que a mãe debitou suas ordens. Ele que recolhesse a fantasia, aquele lugar era pertença exclusiva dos adul­tos.
 Arranja-te. Estamos quase a partir.
- Então vou despedir do passaporteiro
A mãe corrigiu em dupla dose. Primeiro, não ia a nenhuma parte. Segundo, não se chamava assim ao senhor dos passaportes. Mas só no presente o menino se subditava. Porque, em seu sonho, mais adiante, ele se proclama:
 Quando for grande quero ser passaporteiro.
E ele já se antefruía, de farda, dentro do vidro. Ele é que autorizava a subida aos céus.
- Vou estudar para migraceiro.
-  És doido, filho. Fica quieto.
O miúdo guardou seus jogos, constreito. Que crian­ça, neste mundo, tem vocação para adulto?
Saímos da sala para o avião. Chuviscava. O me­nino seguia seus passos quando, na lisura do alca­trão, ele viu o sapo. Encharcado, o bicho saltiritava. Sua boca, maior que o corpo, traduzia o espanto das diferenças. Que fazia ali aquele representante dos primórdios, naquele lugar de futuros apressados?
O menino parou, observente, cuidando os perigos do batráquio. Na imensa incompreensão do asfalto, o bicho seria esmagado por cega e certeira roda.
- Mãe, eu posso levar o sapo?
A senhora estremeceu de horror. Olhou vergonhada, pedindo desculpas aos passantes. Então, começou a disputa. A senhora obrigava o braço do filho, os dois se teimavam. Venceu a secular maternidade. O meni­no, murcho como acento circunflexo, subiu as escadas, ocupou seu lugar, ajeitou o cinto. Do meu assento eu podia ver a tristeza desembrulhando líquidas missangas no seu rosto. Fiz-lhe sinal, ele me encarou de soslado. Então, em seu rosto se acendeu a mais grata ban­deira de felicidade. Porque do côncavo de minhas mãos espreitou o focinho do mais clandestino de todos os passageiros.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

UM CONTO QUE NÃO ENVELHECE


O AMIGO DEDICADO
Oscar Wilde

Certa manhã o velho Rato d’Água pôs a cabeça fora do buraco. Tinha uns olhos redondos muito vivos e uns duros bigodes cinzentos, e sua cauda parecia um comprido elástico negro. Os patinhos estavam a nadar na lagoa, semelhantes a um bando de canários amarelos, e a sua mãe, toda branca com patas vermelhas, esforçava-se por ensinar-lhes a manter a cabeça dentro d’água.
- Vocês nunca poderão frequentar a boa sociedade se não aprenderem a manter a cabeça dentro d’água – dizia-lhes. E de vez em quando mostrava-lhes como devia ser feito. Mas os patinhos não lhe prestavam atenção alguma. Eram tão jovens que não sabiam que vantagens existem nisso de frequentar a sociedade.
- Que criaturas desobedientes! – exclamou o velho Rato d’Água. – Mereciam realmente afogar-se.
– Nada disso – replicou a Pata – todos têm de ter aprendizagem e nunca é demais a paciência dos pais.
- Ah! Não tenho a menor idéia a respeito dos sentimentos paternos – disse o Rato d’água. – Não sou pai de família. Na verdade, nunca me casei e nunca pensei em fazê-lo. Indubitavelmente, o amor é uma boa coisa, à sua maneira, mas a amizade vale mais. Asseguro-lhe que não conheço no mundo nada mais nobre ou mais raro do que uma amizade dedicada.
- E diga-me, rogo-lhe: que idéia forma o senhor dos deveres de um amigo dedicado? – perguntou um Pintarroxo verde que tinha escutado a conversa, pousado num salgueiro retorcido.
- Sim, é isto precisamente o que eu desejaria saber – disse a Pata. E nadou para o extremo da lagoa, de cabeça erguida, a fim de dar um bom exemplo aos seus filhos.
- Pergunta tola! – gritou o Rato d’Água. – Como é natural, entendo por amigo dedicado aquele que a mim se dedica.
- E que fará o senhor para retribuir-lhe? – perguntou o passarinho, balançando- se num ramo prateado e agitando as suas asinhas.
– Não o compreendo – respondeu o Rato d’Água.
- Permita-me que lhe conte uma história a respeito deste assunto – disse o Pintarroxo.
- Refere-se a mim essa história? – perguntou o Rato d’Água. – Se assim for, eu a escutarei, pois sou doido por ficção.
- É aplicável ao senhor – respondeu o Pintarroxo, que abriu as asas e desceu, pousando na beira do tanque, e contou a história do Amigo Dedicado.
- Era uma vez – disse o Pintarroxo – um honrado rapaz chamado Hans.
- Era um homem verdadeiramente distinto? – perguntou o Rato d’Água.
- Não – respondeu o Pintarroxo – não creio que fosse absolutamente distinto, exceto pelo seu bom coração e pela sua cara redonda, morena e afável. Morava numa pobre casinha de campo, sozinho, e todos os dias trabalhava no seu jardim. Em toda a região não havia jardim tão bonito como o dele. Cresciam nele cravinas, goivos, bolsas-de-pastor, saxifragas. Havia rosas de Damasco e rosas amarelas, açafrões cor de lilás e cor de ouro, violetas roxas e brancas. E, segundo os meses e por sua ordem, floresciam rosas silvestres e cardaminas, manjeronas e manjericões silvestres, a primavera e o íris, o narciso e o cravo vermelho. Uma flor substituía a outra, de modo que havia sempre ali coisas bonitas para ver e odores agradáveis para aspirar.
«O pequeno Hans tinha muitos amigos, porém o mais dedicado de todos era o corpulento Hugo, o Moleiro. Na verdade, tão dedicado era o rico Moleiro ao pequeno Hans que nunca andava pelo jardim dele sem inclinar-se sobre os canteiros e colher um grande ramalhete ou um punhado de ervas-doces, ou encher os bolsos com ameixas e cerejas, quando era tempo de frutas.
«Os amigos verdadeiros repartem tudo entre si – costumava dizer o Moleiro e o pequeno Hans balançava a cabeça e sorria, sentindo-se muito orgulhoso por ter um amigo com tão nobres idéias.
«Algumas vezes, na realidade, achavam os vizinhos estranho que o rico Moleiro nunca desse nada em retribuição ao pequeno Hans, embora possuísse centenas de sacos de farinha armazenados no seu moinho, seis vacas leiteiras e um grande rebanho de carneiros com muita lã. Mas Hans nunca se preocupava com essas coisas e nada lhe dava maior prazer do que escutar todas as coisas maravilhosas que o Moleiro costumava dizer a respeito da solidariedade dos verdadeiros amigos.
«De modo que cultivava o pequeno Hans o seu jardim. Na primavera, no verão e no outono sentia-se muito feliz, mas quando chegava o inverno e não tinha nem frutos nem flores que levar ao mercado, padecia de muito frio e muita fome e muitas vezes tinha de ir para a cama sem qualquer refeição, a não ser umas peras secas ou algumas nozes duras. Também no inverno, ficava extremamente solitário, uma vez que o Moleiro nunca ia vê-lo então.
«- Não está bem que eu vá ver o pequeno Hans, enquanto duram as neves – costumava o Moleiro dizer à sua mulher – pois quando as pessoas se acham em apuros devem ser deixadas sozinhas e não serem incomodadas com visitas. Esta é, pelo menos, a minha opinião a respeito da amizade e estou certo de que é uma opinião bem acertada. Por isso esperarei que a primavera chegue e então irei visitá-lo, podendo ele dar-me um grande cesto de primaveras, coisa que bastante o alegrará.
«- És realmente bastante solícito para com os outros – respondia-lhe a mulher, sentada na sua cômoda cadeira de braços, junto a um bom fogo de pinheiro. – é um verdadeiro prazer ouvir-te falar a respeito da amizade. Estou certa de que o próprio senhor Cura não poderia dizer coisas tão belas como tu, embora viva numa casa de três andares e use um anel de ouro no dedo mindinho.
«- Mas não poderíamos convidar o pequeno Hans a vir aqui? – perguntava o filho mais novo do Moleiro. – Se o pobre Hans se acha em apuros, dar-lhe-ei a metade da minha sopa e mostrar-lhe-ei os meus coelhos brancos.
«- Que menino pateta és tu! – gritou o Moleiro. – Na verdade não sei para que serve mandar-te à escola. Parece que não aprendes nada. Ora, se o pequeno Hans viesse aqui e visse o nosso ardente fogo, a nossa boa ceia e a nossa grande barrica de vinho tinto, poderia sentir inveja e a inveja é uma coisa terrível que deita a perder os melhores caracteres. Não permitirei, certamente, que o caráter de Hans venha a ser prejudicado. Sou o seu melhor amigo e velarei sempre por ele e terei todo o cuidado em não expô-lo a nenhuma tentação. Além disso, se Hans viesse aqui poderia pedir-me que lhe desse, fiado, um pouco de farinha e isto eu não poderia fazer. A farinha é uma coisa e a amizade é outra e não devem ser confundidas. Ora, estas duas palavras escrevem-se de maneira diferente e significam coisas completamente diferentes. Toda gente pode ver isto.
«- Como falas bem! – disse a mulher do Moleiro, servindo-lhe um copo de cerveja quente. Sinto-me até como que adormecida. O mesmo que se estivesse na igreja.
- Muita gente age bem – replicou o Moleiro -, muito poucos, porém, sabem falar bem, o que mostra que falar é das duas coisas a mais difícil, bem como a mais bela das duas. – E olhou severamente por cima da mesa para o seu filho que se sentiu tão envergonhado, que baixou a cabeça, ficou totalmente vermelho e começou a chorar dentro do seu chá. Contudo, era tão jovem que não se podia deixar de desculpá-lo.
– É este o fim da história? – perguntou o Rato d’Água. 
- Decerto que não – respondeu o Pintarroxo. – Isto é o começo.
– Então você está muito atrasado em relação à sua época – replicou o Rato d’Água. – Hoje em dia, todo bom contador de histórias começa pelo fim, depois passa para o começo e conclui com o meio. Este é o novo método. Ouvi tudo isto, outro dia, de um crítico que estava passeando em redor da lagoa com um rapaz. Tratava do assunto magistralmente e estou certo de que devia estar com razão, porque usava óculos azuis e tinha a cabeça calva. E quando o rapaz fazia alguma observação sempre respondia: «Patetice!» Mas rogo-lhe que prossiga com a sua história. Estou a gostar muito do Moleiro. Eu mesmo possuo toda espécie de belos sentimentos, de modo que existe entre nós uma grande simpatia.
- Bem – disse o Pintarroxo, saltitando, ora sobre uma, ora sobre outra das suas pernas -, assim que o inverno passou e as primaveras começaram a abrir as suas pálidas estrelas amarelas o Moleiro disse à sua mulher que iria visitar o pequeno Hans.
- Ah! Que bom coração tens tu! – exclamou a Mulher. – Tu estás sempre a pensar nos outros. Não te esqueças de levar contigo o cesto grande para trazer as flores.
Depois o Moleiro amarrou umas nas outras as aspas do moinho com uma forte corrente de ferro e desceu a colina com o cesto no braço.
- Bom dia, pequeno Hans – disse o Moleiro.
- Bom dia – disse Hans, apoiando-se na sua enxada e sorrindo largamente.
- Como passaste o inverno? – perguntou o Moleiro.
- Bem, na verdade – exclamou Hans. – É muita bondade da sua parte perguntar-me isso, muita bondade mesmo. Receio ter passado uns maus bocados, mas agora a primavera chegou e sinto-me completamente feliz… além disto as minhas flores estão indo bem.
- Falamos frequentes vezes de ti, durante o inverno, Hans – disse o Moleiro -, imaginando como estarias a passar.
- Foi bondade do senhor – disse Hans. – Estava quase com medo de que o senhor me tivesse esquecido.
- Hans, surpreende-me ouvi-lo falar desse modo – disse o Moleiro. – A amizade nunca esquece. Esta é a coisa maravilhosa que nela existe, mas receio que não compreendas a poesia da vida… A propósito, como estão bonitas as tuas primaveras!
«- Sim, estão verdadeiramente muito bonitas – disse Hans – e é para mim uma grande sorte ter tantas. Vou levá-las ao mercado e vendê-las à filha do Burgomestre e com este dinheiro comprarei outra vez o meu carrinho de mão.
- Comprar outra vez o teu carrinho de mão? Queres dizer então que o vendeste? Mas que coisa estúpida fizeste!
- Bem, o fato é que fui obrigado a fazê-lo – disse Hans. – Como o senhor sabe, o inverno é uma estação muito má para mim e, na realidade, não tinha dinheiro algum para comprar pão, de modo que vendi primeiro os botões de prata da minha roupa domingueira, depois vendi a minha corrente de prata, em seguida vendi a minha grande flauta, e por fim vendi o meu carrinho de mão. Mas vou comprar tudo de novo agora.
- Hans – disse o Moleiro -, dar-te-ei o meu carrinho de mão. Não está em muito bom estado. Na verdade, um dos lados está a faltar e estão um tanto torcidos os raios da roda, mas a despeito disso, dar-te-ei o carro. Sei que é uma grande generosidade de minha parte e muita gente pensará que foi uma loucura extrema da minha parte desfazer-me dele, mas não sou como o resto do mundo. Creio que a generosidade é a essência da amizade e, além disso, eu mesmo comprei um novo carrinho de mão. Sim, podes estar tranquilo, dar-te- ei o meu carrinho de mão.
- Bem, na verdade, é muita generosidade da sua parte – disse o pequeno Hans, e a sua redonda e engraçada carinha brilhou toda de prazer. – Poderei facilmente consertá-lo, pois tenho um pedaço de tábua na minha casa.
- Um pedaço de tábua! – exclamou o Moleiro. – Muito bem! É disso precisamente que preciso para o telhado do meu paiol. Está com uma grande brecha e se não o tapar, todo o trigo ficará molhado. Que felicidade teres mencionado essa tábua! É realmente de notar como uma boa ação engendra sempre outra. Dei-te o meu carrinho de mão e agora tu vais dar-me a tua tábua. É claro que o carrinho de mão vale muito mais do que a tábua: mas a verdadeira amizade nunca repara coisas como essas. Dá-me logo a tábua e hoje mesmo porei mãos à obra para consertar o meu paiol.
- Sem dúvida – gritou o pequeno Hans, que foi a correr para o telheiro donde trouxe a tábua.
- Não é uma tábua muito grande – disse o Moleiro, examinando-a -, e receio que, uma vez feito o conserto do telhado do paiol, não sobre madeira suficiente para o conserto do carrinho, mas, é claro, isso não é minha culpa… E agora, uma vez que te dei o meu carrinho de mão estou certo de que haverás de querer dar-me algumas flores em troca. Aqui tens o cesto: procura enchê-lo completamente.
- Completamente? – exclamou o pequeno Hans, bastante aflito, porque o cesto era mesmo muito grande e sabia que, se o enchesse, não lhe sobrariam flores para o mercado e estava bastante ansioso por poder resgatar os seus botões de prata.
- Bem, na verdade – respondeu o Moleiro -, uma vez que te dou o meu carrinho de mão, não penso que seja demasiado pedir-te algumas flores. Posso estar equivocado, mas deveria ter pensado que a amizade, a verdadeira amizade, estivesse completamente isenta de egoísmo de qualquer espécie.
- Meu querido amigo, meu melhor amigo – exclamou o pequeno Hans -, todas as flores do meu jardim estão à sua disposição, porque me importa muito mais a sua estima do que os meus botões de prata.
- E correu a colher as lindas primaveras e a encher com elas o cesto do Moleiro.
- Adeus, pequeno Hans – disse o Moleiro, subindo de novo a colina com a tábua ao ombro e o seu grande cesto na mão.
- Adeus – disse o pequeno Hans, que se pôs a cavar alegremente, pois estava contentíssimo por ter um carrinho de mão.
- Na manhã seguinte, quando estava pregando umas madressilvas no seu alpendre, ouviu a voz do Moleiro que o chamava da estrada, pulou da escada e desceu a correr o jardim, indo espiar por cima do muro.
Ali estava o Moleiro com um grande saco de farinha nas costas.
- Querido Hans – disse o Moleiro – quererias levar-me este saco de farinha até ao mercado?
- Oh! Sinto muito! – disse Hans -, mas na verdade estou muito ocupado hoje. – Tenho que pregar todas as minhas trepadeiras, tenho de regar todas as minhas flores e cortar toda a relva.
- Bem, na verdade – disse o Moleiro -, penso que, levando em conta que vou dar-te o meu carinho de mão, é pouco amistoso da tua parte essa recusa.
- Oh! Não diga isso – exclamou o pequeno Hans. – Por coisa alguma do mundo haveria eu de esquecer-me da minha amizade pelo senhor.
- E correu a buscar o seu chapéu e partiu com o grande saco nos ombros.
Era um dia muito quente e a estrada estava terrivelmente empoeirada, e antes de ter Hans alcançado o marco que indicava a sexta milha, achava-se tão cansado, que teve de sentar-se para descansar. Não obstante, continuou corajosamente o seu caminho, chegando por fim ao mercado. Depois de ter esperado ali algum tempo, vendeu o saco de farinha por muito bom preço e regressou à sua casa imediatamente, porque temia encontrar algum salteador no caminho, se atrasasse muito.
- Foi na verdade um dia duro! – disse Hans a si mesmo, ao ir deitar-se -, mas alegra-me muito por não ter recusado um favor ao Moleiro, que é o meu melhor amigo, e além disso vai dar-me o seu carrinho de mão.
Bem cedo na manhã seguinte, apareceu o Moleiro para buscar o dinheiro da venda do seu saco de farinha, mas o pequeno Hans estava tão cansado que ainda não se havia levantado da cama.
- Palavra de honra – disse o Moleiro -, és muito preguiçoso. Na verdade, quando penso que vou dar-te o meu carrinho de mão, acho que podias trabalhar com mais ardor. A preguiça é um grande pecado e eu certamente não gostaria de que algum dos meus amigos fosse preguiçoso e apático. Não te zangues, se te estou a falar completamente sem rodeio. É claro que não te falaria assim, se não fosse teu amigo. Mas de que servirá a amizade, se não se pudesse dizer claramente o que se pensa? Toda a gente pode dizer coisas encantadoras e tentar agradar e lisonjear; mas um amigo sincero diz sempre coisas desagradáveis e não receia causar pesar. Pelo contrário, se é um amigo verdadeiro, prefere isso, porque sabe que assim está fazendo o bem.
- Sinto muito – respondeu o pequeno Hans, esfregando os olhos e tirando o barrete de dormir -, mas eu estava tão cansado que pensei que poderia ficar na cama um pouco mais e ouvir os pássaros a cantarem. Sabe o senhor que sempre trabalho melhor depois de ouvir os pássaros cantarem?
- Bem, tanto melhor – disse o Moleiro, dando uma palmadinha nas costas de Hans -, pois necessito de que venhas ao moinho, assim que te tiveres vestido, para consertar-me o telhado do paiol.
O pequeno Hans tinha grande necessidade de ir trabalhar no seu jardim, porque havia dois dias que não regava as suas flores, mas não quis dizer não ao Moleiro, que tão bom amigo era para ele.
- Pensa que seria pouco amistoso da minha parte, se dissesse que tenho muito que fazer? – perguntou ele com voz humilde e tímida.
- Bem, realmente – respondeu o Moleiro -, não creio que seja demais pedir-te isso, levando em conta que vou dar-te o meu carrinho de mão; mas, sem dúvida, se recusares, eu mesmo irei fazer o trabalho.
Oh! De modo algum! – exclamou o pequeno Hans, que saltou da sua casa, vestiu-se e correu para o paiol.
- Trabalhou ali o dia inteiro, até o pôr do sol e, ao crepúsculo, o Moleiro apareceu para ver até que ponto tinha ele chegado.
- Já tapaste o buraco do telhado, pequeno Hans? – gritou o Moleiro, em tom alegre.
- Está completamente tapado – respondeu o pequeno Hans, descendo da escada.
- Ah! – exclamou o Moleiro. – Não há trabalho mais delicioso do que o que se faz para outro.
- É certamente um grande privilégio ouvir o senhor falar – disse o pequeno Hans, sentando-se e enxugando a testa -, um grande privilégio mesmo. Creio que jamais terei tão belas idéias como tem o senhor.
- Oh! Haverás de tê-las – disse o Moleiro -, mas deves esforçar-te mais. Por ora tens apenas a prática da amizade. Algum dia possuirás a teoria também.
- Acha realmente que eu terei? – perguntou o pequeno Hans.
- Não tenho dúvida alguma – respondeu o Moleiro -, mas agora que consertaste o telhado, farias melhor indo para casa descansar, pois quero que leves os meus carneiros para pastar na montanha amanhã.
O pobre Hans não se atreveu a protestar e no dia seguinte, ao amanhecer, o Moleiro conduziu os seus carneiros até perto da casinha de Hans que partiu com eles para a montanha. Entre ir e voltar passou-se o dia, e, quando regressou, estava tão cansado que adormeceu na sua cadeira e só veio a acordar bem entrada a manhã.
- Que delicioso tempo para trabalhar no meu jardim! – disse ele, pondo-se a trabalhar imediatamente.
Mas seja como for, não teve tempo de dar uma olhadela às suas flores, pois o seu amigo Moleiro sempre aparecia a mandá-lo fazer recados bem longe ou a pedir-lhe que o ajudasse no moinho. Algumas vezes, o pequeno Hans ficava muito angustiado, receando que as suas flores pensassem que ele as havia esquecido, mas consolava-se ao refletir que o Moleiro era o seu melhor amigo.
Além disso», costumava dizer, «ele vai dar-me o seu carrinho de mão e isto é um ato de pura generosidade».
E o pequeno Hans trabalhava para o Moleiro e este dizia coisas muito bonitas a respeito da amizade, coisas que Hans copiava para o seu livro de notas e que costumava reler à noite, pois era um grande estudioso.
Pois bem: aconteceu que uma noite, estando o pequeno Hans sentado junto ao fogo, ouviu fortes batidas à sua porta. Era uma noite muito tempestuosa, o vento soprava e rugia em torno da casa tão terrivelmente que a princípio pensou ele que fosse aquele rumor apenas o da tempestade. Mas soou uma segunda pancada e depois uma terceira, mais alto do que as outras.
- Deve ser algum pobre viajante – disse o pequeno Hans para si mesmo, e correu para a porta.
O Moleiro estava no umbral, com uma lanterna numa mão e um grande bastão na outra.
- Querido Hans – gritou o Moleiro -, encontro-me em grande complicação. O meu menino caiu de uma escada, aleijando-se e eu vou em busca do médico. Mas ele mora tão distante e está uma noite tão má, que acaba de ocorrer-me que seria melhor que fosses em meu lugar. Sabes que vou dar-te o meu carrinho de mão, por isso estaria muito bem que fizesses alguma coisa por mim em retribuição.
- Decerto! – exclamou o pequeno Hans. – Alegra-me muito que me tenha vindo procurar e partirei imediatamente. Mas o senhor devia emprestar-me a sua lanterna, uma vez que a noite está tão escura que receio que possa vir a cair no fosso.
- Sinto muitíssimo – respondeu o Moleiro -, mas é a minha lanterna nova e seria uma grande perda, se lhe acontecesse alguma coisa.
- Bem, não falemos mais nisso, irei mesmo sem ela -, exclamou o pequeno Hans, vestindo o seu grande casaco de pele, pondo na cabeça o seu barrete vermelho, amarrando em torno do pescoço uma manta, e saindo imediatamente.
Que terrível tempestade estava desencadeada; A noite era tão negra que o pequeno Hans mal podia ver e o vento tão forte que ele dificilmente conseguia andar. Contudo, era muito corajoso e, depois de ter caminhado cerca de três horas, chegou à casa do doutor e bateu-lhe à porta.
- Quem é? – gritou o doutor, pondo a cabeça à janela do seu quarto.
- É o pequeno Hans, doutor!
- E que desejas a estas horas, meu pequeno Hans?
- O filho do Moleiro caiu de uma escada e aleijou-se, e o Moleiro quer que o senhor vá lá imediatamente.
- Muito bem! – disse o doutor. Mandou selar o seu cavalo, calçou as suas grandes botas, pegou na sua lanterna, desceu a escada e seguiu na direção da casa do Moleiro, enquanto o pequeno Hans marchava atrás dele.
Mas a tempestade tornou-se cada vez pior, a chuva caía em torrentes e o pequeno Hans não podia nem ver por onde ia, nem acompanhar o cavalo. Afinal, perdeu-se, e esteve a vagar pela charneca, que era um lugar muito perigoso, cheia como estava de profundos buracos, e o pequeno Hans caiu num deles e afogou-se. Na manhã seguinte, uns pastores encontraram o seu corpo boiando numa grande poça d’água e levaram-no para a sua casinha.
Toda a gente assistiu ao enterro do pequeno Hans, porque ele era muito popular e foi o Moleiro quem tomou a dianteira do funeral.
- Como fui o seu melhor amigo – disse o Moleiro -, não é nada de mais que eu tome o melhor lugar.
De modo que pôs-se à frente do cortejo com uma longa capa preta e, de vez em quando, enxugava os olhos com um grande lenço de bolso.
- O pequeno Hans representa, certamente, uma grande perda para todos nós – disse o Ferreiro, terminado o funeral, e quando estavam todos sentados confortavelmente na estalagem, bebendo vinho temperado e comendo bolos doces.
- Foi uma grande perda, sobretudo para mim – replicou o Moleiro. – Posso afirmar que fui bastante bom, comprometendo-me em dar-lhe o meu carrinho de mão e agora não sei realmente o que fazer com ele. Atravanca a minha casa e está em tão más condições que se o vendesse, não lucraria nada. Asseguro a vocês que daqui por diante não darei nada a ninguém. A gente paga sempre por ser generoso.»

– E então?  – perguntou o Rato d’Água, depois de uma longa pausa.
- Bem, este é o fim – disse o Pintarroxo.
- Mas o que aconteceu ao Moleiro? – perguntou o Rato d’Água.
- Oh! Realmente não sei – replicou o Pintarroxo -, e, para falar a verdade, não me interessa.
- É bastante evidente que você não possui o dom da simpatia no seu caráter – disse o Rato d’Água.
- O que receio é que o senhor não tenha compreendido a moral da história – observou o Pintarroxo.
- O quê? – gritou o Rato d’Água.
- A moral.
- Quer você dizer que a história tem uma moral?
- Decerto – afirmou o Pintarroxo.
- Bem, na verdade – disse o Rato d’Água, de um modo bastante colérico -, acho que você deveria ter-me dito isso antes de começar. Se o tivesse feito, eu certamente não o teria escutado; de fato, deveria ter dito «Patetice!», como o crítico. Contudo posso dizê-lo agora. E gritou: «Patetice!». No mais alto tom e, dando uma rabanada com a cauda, correu para o seu buraco.
- Que lhe parece o Rato d’Água? – perguntou a Pata, que chegou nadando alguns minutos depois.
- Possui muito boas qualidades, porém eu, pela minha parte, tenho sentimentos de mãe e não posso ver um solteirão chapado, sem que me subam as lágrimas aos olhos.
- Receio tê-lo aborrecido – replicou o Pintarroxo. – O fato é que lhe contei uma história com uma moral.
- Ah! Isso é sempre uma coisa muito perigosa de fazer-se – disse a Pata. E eu concordo inteiramente com ela.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

AMÉRICA DO SUL


Impactos na Pátria Grande
Por Orlando Senna

A derrota do kirchnerismo na Argentina muda o cenário político da América do Sul e estimula dúvidas sobre como será o futuro do Mercosul. O bloco conformado em março de 1991 ganhou contornos nitidamente esquerdistas a partir de 2000 com a ascensão das lideranças de Lula no Brasil, Chávez na Venezuela, Néstor Kirchner na Argentina, José Mujica no Uruguai, Fernando Lugo no Paraguai, Rafael Correa no Equador, Michelle Bachelet no Chile, Evo Morales na Bolívia. Foram implementadas saudáveis políticas de inclusão social em todos esses países e a economia brasileira, eixo mais importante da região, alcançou um crescimento surpreendente. Até os analistas mais conservadores perceberam a força política, base dos projetos de inclusão social, do que denominaram “uma aliança entre governos progressistas e bolivaristas”, com o Brasil puxando os primeiros e a Venezuela os segundos. A partir de 2011 esse cenário começou a se deteriorar, as economias nacionais começaram a se desequilibrar, o mercado comum previsto pelo Mercosul não avançou, a inflação voltou a ser um problema e a corrupção grassou em vários países.
Seguiram-se outros acontecimentos como em uma onda de choque: em 2012 a deposição de Lugo; no mesmo ano um plano de desestabilização, que prossegue até o momento, do governo de Evo Morales com uma campanha da direita para dividir a Bolívia em duas; em 2013 a morte de Chávez, criador e comandante da proposta bolivarista (emancipar os países latino-americanos dos interesses econômicos, políticos e culturais da Europa e dos EUA), dita “socialismo do século XXI”; em 2014 a estressante campanha para a reeleição de Dilma Rousseff, que venceu por uma diferença de apenas 3,3%, ficando clara a grande cisão na população brasileira. E, claro, as manifestações de insatisfação popular na maior parte dos países da região, combustível da instabilidade psicossocial, emocional, que se manifesta agora, nas últimas luzes (ou sombras) de 2015.
Oposições
No Equador bolivarista, a Revolução Cidadã de Correa, que promoveu amplas reformas sociais e políticas, está causando enorme polêmica com uma emenda constitucional em tramitação que autoriza a reeleição ilimitada para a presidência da república. Correa anunciou que não será candidato a um terceiro mandato e confia que sua frente, a Alianza PAIS, vencerá as eleições de 2017. Ou seja, que fará seu sucessor. Mas está sempre advertindo que “a democracia corre perigo” e que há indícios de um golpe de estado em andamento. No Peru progressista, o presidente Ollanta Humala busca uma estabilidade a cada dia mais difícil, com forte oposição no Congresso. Em março, em uma demonstração de força, o Congresso destituiu a primeira-ministra Ana Jara, acusando-a de envolvimento em escândalo de espionagem, rastreamento de milhares de pessoas, incluindo opositores do governo. Em cem anos, é a terceira vez que o parlamento peruano destitui primeiros-ministros.
No Chile, a popularidade do governo de Michelle Bachelet caiu vertiginosamente. A reação antigoverno foi impulsionada por denúncias de corrupção de grandes empresários (desvio de dinheiro para campanhas, propinas) e de políticos de diferentes partidos, incluindo da base do governo, a frente de centro-esquerda Nueva Mayoría. Bachelet enfrentou a crise com uma reforma do governo (trocou seus 26 ministros de uma só vez, por exemplo) mas a turbulência não foi debelada, principalmente porque as denúncias apontaram para seu filho, Sebastián Dávalos, acusado de tráfico de influência para conseguir dez milhões de dólares para compra de terras. A Colombia, governada pelo neoliberal Juan Manuel Santos, afogada no narcotráfico e com bases dos EUA em seu território, atua agressivamente contra o governo da Bolívia, apoiando o movimento separatista que atormenta o presidente Evo. No Paraguai, o presidente Horacio Cartes, milionário envolvido em processos de corrupção, preso nos anos 1980 por evasão de divisas, continua a celebrar a deposição de Lugo e anunciar avanços macroeconômicos (crescimento do PIB, inflação baixa), embora a pobreza tenha crescido durante seus três anos de governo, alcançando 35% da população.
Gigante atordoado
Para não parecer pessimista e dizer que não falei de flores, o Uruguai está indo bem, com o exemplo luminoso de José Mujica orientando o governo de Tabaré Vázquez, eleito no ano passado com a maior votação da história do país nos últimos 70 anos e levando adiante o projeto da esquerdista Frente Ampla. É como uma ilha de equilíbrio político e consciência cívica em um subcontinente tenso e conflagrado. Adjetivos que nos remetem às grandes economias da região: Brasil, Argentina e Venezuela.
O Brasil vive sua maior crise política dos últimos 50 anos, agravada por um desgaste agudo de sua economia, pela interrupção e inversão do crescimento contínuo que vimos nos últimos anos. Neste momento o gigante sul-americano está caindo da posição de sétima maior economia global para a nona. O aspecto mais assustador é o impacto da corrupção colossal protagonizada por políticos, altos funcionários públicos e pela casta antes intocável dos grandes empresários. Já estão na cadeia políticos e parlamentares de todos os partidos e, na avalanche, ex-ministros do presidente Lula e congressistas do Partido dos Trabalhadores. Em consequência, a base política popular de Lula e do PT diminuiu consideravelmente e os festejados programas de inclusão social estão ameaçados.
Novo cenário
Na Argentina, Cristina Kirchner entrega o poder a Mauricio Macri, que se define como de centro-direita. No próximo 6 de dezembro haverá eleições parlamentares cruciais na Venezuela, mergulhada em uma crise econômica que atinge em cheio a população pela escassez de alimentos e produtos básicos e inflação galopante (fala-se em 200% em 2015), aumentando o poder da oposição. O suspense relacionado com essas eleições é a possibilidade do governo perder a maioria na nova Assembleia Nacional, como apontam as pesquisas eleitorais. Se isso acontecer e os princípios democráticos forem mantidos, o poder passará às mãos da MUD, a Mesa de la Unidad Democrática, que se apresenta como liberal.
As primeiras declarações de Macri, como presidente eleito argentino, foram sobre o fortalecimento das relações comerciais Brasil/Argentina e a expulsão da Venezuela do Mercosul, acusando Maduro de desrespeito aos direitos humanos. Dilma não concorda com a expulsão da Venezuela, mas pediu ”transparência” a Maduro. Ou seja, muitos choques estremecendo o sonho gerado em 2000 de uma América do Sul solidária e libertária, humanista e inclusiva. De quem a culpa? Das potências do Norte e do Leste? Da nossa incompetência? De ambos? Muitas interrogações pairando no ar. Marx: ”tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado”.