O AMIGO
DEDICADO
Oscar Wilde
Certa manhã o velho Rato d’Água pôs a cabeça fora do buraco. Tinha uns olhos
redondos muito vivos e uns duros bigodes cinzentos, e sua cauda parecia um
comprido elástico negro. Os patinhos estavam a nadar na lagoa, semelhantes a um
bando de canários amarelos, e a sua mãe, toda branca com patas vermelhas,
esforçava-se por ensinar-lhes a manter a cabeça dentro d’água.
- Vocês nunca poderão frequentar a boa sociedade se não aprenderem a manter a
cabeça dentro d’água – dizia-lhes. E de vez em quando mostrava-lhes como devia
ser feito. Mas os patinhos não lhe prestavam atenção alguma. Eram tão jovens
que não sabiam que vantagens existem nisso de frequentar a sociedade.
- Que criaturas desobedientes! – exclamou o velho Rato d’Água. – Mereciam
realmente afogar-se.
– Nada disso –
replicou a Pata – todos têm de ter aprendizagem e nunca é demais a paciência
dos pais.
- Ah! Não tenho a menor idéia a respeito dos sentimentos paternos – disse o
Rato d’água. – Não sou pai de família. Na verdade, nunca me casei e nunca
pensei em fazê-lo. Indubitavelmente, o amor é uma boa coisa, à sua maneira, mas
a amizade vale mais. Asseguro-lhe que não conheço no mundo nada mais nobre ou
mais raro do que uma amizade dedicada.
- E diga-me, rogo-lhe: que idéia forma o senhor dos deveres de um amigo
dedicado? – perguntou um Pintarroxo verde que tinha escutado a conversa,
pousado num salgueiro retorcido.
- Sim, é isto precisamente o que eu desejaria saber – disse a Pata. E nadou
para o extremo da lagoa, de cabeça erguida, a fim de dar um bom exemplo aos
seus filhos.
- Pergunta tola! – gritou o Rato d’Água. – Como é natural, entendo por amigo
dedicado aquele que a mim se dedica.
- E que fará o
senhor para retribuir-lhe? – perguntou o passarinho, balançando- se num ramo
prateado e agitando as suas asinhas.
– Não o compreendo – respondeu o Rato d’Água.
- Permita-me que lhe conte uma história a respeito deste assunto – disse o
Pintarroxo.
- Refere-se a mim essa história? – perguntou o Rato d’Água. – Se assim for, eu
a escutarei, pois sou doido por ficção.
- É aplicável ao senhor – respondeu o Pintarroxo, que abriu as asas e desceu,
pousando na beira do tanque, e contou a história do Amigo Dedicado.
- Era uma vez – disse o Pintarroxo – um honrado rapaz chamado Hans.
- Era um homem verdadeiramente distinto? – perguntou o Rato d’Água.
- Não – respondeu o Pintarroxo – não creio que fosse absolutamente distinto,
exceto pelo seu bom coração e pela sua cara redonda, morena e afável. Morava
numa pobre casinha de campo, sozinho, e todos os dias trabalhava no seu jardim.
Em toda a região não havia jardim tão bonito como o dele. Cresciam nele
cravinas, goivos, bolsas-de-pastor, saxifragas. Havia rosas de Damasco e rosas
amarelas, açafrões cor de lilás e cor de ouro, violetas roxas e brancas. E,
segundo os meses e por sua ordem, floresciam rosas silvestres e cardaminas,
manjeronas e manjericões silvestres, a primavera e o íris, o narciso e o cravo
vermelho. Uma flor substituía a outra, de modo que havia sempre ali coisas
bonitas para ver e odores agradáveis para aspirar.
«O pequeno
Hans tinha muitos amigos, porém o mais dedicado de todos era o corpulento Hugo,
o Moleiro. Na verdade, tão dedicado era o rico Moleiro ao pequeno Hans que
nunca andava pelo jardim dele sem inclinar-se sobre os canteiros e colher um
grande ramalhete ou um punhado de ervas-doces, ou encher os bolsos com ameixas
e cerejas, quando era tempo de frutas.
«Os amigos
verdadeiros repartem tudo entre si – costumava dizer o Moleiro e o pequeno Hans
balançava a cabeça e sorria, sentindo-se muito orgulhoso por ter um amigo com
tão nobres idéias.
«Algumas
vezes, na realidade, achavam os vizinhos estranho que o rico Moleiro nunca
desse nada em retribuição ao pequeno Hans, embora possuísse centenas de sacos
de farinha armazenados no seu moinho, seis vacas leiteiras e um grande rebanho
de carneiros com muita lã. Mas Hans nunca se preocupava com essas coisas e nada
lhe dava maior prazer do que escutar todas as coisas maravilhosas que o Moleiro
costumava dizer a respeito da solidariedade dos verdadeiros amigos.
«De modo que
cultivava o pequeno Hans o seu jardim. Na primavera, no verão e no outono
sentia-se muito feliz, mas quando chegava o inverno e não tinha nem frutos nem
flores que levar ao mercado, padecia de muito frio e muita fome e muitas vezes
tinha de ir para a cama sem qualquer refeição, a não ser umas peras secas ou
algumas nozes duras. Também no inverno, ficava extremamente solitário, uma vez
que o Moleiro nunca ia vê-lo então.
«- Não está
bem que eu vá ver o pequeno Hans, enquanto duram as neves – costumava o Moleiro
dizer à sua mulher – pois quando as pessoas se acham em apuros devem ser
deixadas sozinhas e não serem incomodadas com visitas. Esta é, pelo menos, a
minha opinião a respeito da amizade e estou certo de que é uma opinião bem
acertada. Por isso esperarei que a primavera chegue e então irei visitá-lo,
podendo ele dar-me um grande cesto de primaveras, coisa que bastante o
alegrará.
«- És
realmente bastante solícito para com os outros – respondia-lhe a mulher, sentada
na sua cômoda cadeira de braços, junto a um bom fogo de pinheiro. – é um
verdadeiro prazer ouvir-te falar a respeito da amizade. Estou certa de que o
próprio senhor Cura não poderia dizer coisas tão belas como tu, embora viva
numa casa de três andares e use um anel de ouro no dedo mindinho.
«- Mas não
poderíamos convidar o pequeno Hans a vir aqui? – perguntava o filho mais novo
do Moleiro. – Se o pobre Hans se acha em apuros, dar-lhe-ei a metade da minha
sopa e mostrar-lhe-ei os meus coelhos brancos.
«- Que menino
pateta és tu! – gritou o Moleiro. – Na verdade não sei para que serve mandar-te
à escola. Parece que não aprendes nada. Ora, se o pequeno Hans viesse aqui e
visse o nosso ardente fogo, a nossa boa ceia e a nossa grande barrica de vinho
tinto, poderia sentir inveja e a inveja é uma coisa terrível que deita a perder
os melhores caracteres. Não permitirei, certamente, que o caráter de Hans venha
a ser prejudicado. Sou o seu melhor amigo e velarei sempre por ele e terei todo
o cuidado em não expô-lo a nenhuma tentação. Além disso, se Hans viesse aqui
poderia pedir-me que lhe desse, fiado, um pouco de farinha e isto eu não
poderia fazer. A farinha é uma coisa e a amizade é outra e não devem ser
confundidas. Ora, estas duas palavras escrevem-se de maneira diferente e
significam coisas completamente diferentes. Toda gente pode ver isto.
«- Como falas
bem! – disse a mulher do Moleiro, servindo-lhe um copo de cerveja quente.
Sinto-me até como que adormecida. O mesmo que se estivesse na igreja.
- Muita gente
age bem – replicou o Moleiro -, muito poucos, porém, sabem falar bem, o que
mostra que falar é das duas coisas a mais difícil, bem como a mais bela das
duas. – E olhou severamente por cima da mesa para o seu filho que se sentiu tão
envergonhado, que baixou a cabeça, ficou totalmente vermelho e começou a chorar
dentro do seu chá. Contudo, era tão jovem que não se podia deixar de
desculpá-lo.
– É este o fim
da história? – perguntou o Rato d’Água.
- Decerto que
não – respondeu o Pintarroxo. – Isto é o começo.
– Então você está muito atrasado em relação à sua época – replicou o Rato
d’Água. – Hoje em dia, todo bom contador de histórias começa pelo fim, depois
passa para o começo e conclui com o meio. Este é o novo método. Ouvi tudo isto,
outro dia, de um crítico que estava passeando em redor da lagoa com um rapaz.
Tratava do assunto magistralmente e estou certo de que devia estar com razão,
porque usava óculos azuis e tinha a cabeça calva. E quando o rapaz fazia alguma
observação sempre respondia: «Patetice!» Mas rogo-lhe que prossiga com a sua
história. Estou a gostar muito do Moleiro. Eu mesmo possuo toda espécie de
belos sentimentos, de modo que existe entre nós uma grande simpatia.
- Bem – disse o Pintarroxo, saltitando, ora sobre uma, ora sobre outra das suas
pernas -, assim que o inverno passou e as primaveras começaram a abrir as suas
pálidas estrelas amarelas o Moleiro disse à sua mulher que iria visitar o
pequeno Hans.
- Ah! Que bom
coração tens tu! – exclamou a Mulher. – Tu estás sempre a pensar nos outros.
Não te esqueças de levar contigo o cesto grande para trazer as flores.
Depois o Moleiro amarrou umas nas outras as aspas do moinho com uma forte
corrente de ferro e desceu a colina com o cesto no braço.
- Bom dia, pequeno Hans – disse o Moleiro.
- Bom dia – disse Hans, apoiando-se na sua enxada e sorrindo largamente.
- Como passaste o inverno? – perguntou o Moleiro.
- Bem, na verdade – exclamou Hans. – É muita bondade da sua parte perguntar-me
isso, muita bondade mesmo. Receio ter passado uns maus bocados, mas agora a
primavera chegou e sinto-me completamente feliz… além disto as minhas flores
estão indo bem.
- Falamos frequentes vezes de ti, durante o inverno, Hans – disse o Moleiro -,
imaginando como estarias a passar.
- Foi bondade do senhor – disse Hans. – Estava quase com medo de que o senhor
me tivesse esquecido.
- Hans, surpreende-me ouvi-lo falar desse modo – disse o Moleiro. – A amizade
nunca esquece. Esta é a coisa maravilhosa que nela existe, mas receio que não
compreendas a poesia da vida… A propósito, como estão bonitas as tuas
primaveras!
«- Sim, estão
verdadeiramente muito bonitas – disse Hans – e é para mim uma grande sorte ter
tantas. Vou levá-las ao mercado e vendê-las à filha do Burgomestre e com este
dinheiro comprarei outra vez o meu carrinho de mão.
- Comprar outra vez o teu carrinho de mão? Queres dizer então que o vendeste? Mas
que coisa estúpida fizeste!
- Bem, o fato é que fui obrigado a fazê-lo – disse Hans. – Como o senhor sabe,
o inverno é uma estação muito má para mim e, na realidade, não tinha dinheiro
algum para comprar pão, de modo que vendi primeiro os botões de prata da minha
roupa domingueira, depois vendi a minha corrente de prata, em seguida vendi a
minha grande flauta, e por fim vendi o meu carrinho de mão. Mas vou comprar
tudo de novo agora.
- Hans – disse o Moleiro -, dar-te-ei o meu carrinho de mão. Não está em muito
bom estado. Na verdade, um dos lados está a faltar e estão um tanto torcidos os
raios da roda, mas a despeito disso, dar-te-ei o carro. Sei que é uma grande
generosidade de minha parte e muita gente pensará que foi uma loucura extrema
da minha parte desfazer-me dele, mas não sou como o resto do mundo. Creio que a
generosidade é a essência da amizade e, além disso, eu mesmo comprei um novo
carrinho de mão. Sim, podes estar tranquilo, dar-te- ei o meu carrinho de mão.
- Bem, na
verdade, é muita generosidade da sua parte – disse o pequeno Hans, e a sua
redonda e engraçada carinha brilhou toda de prazer. – Poderei facilmente
consertá-lo, pois tenho um pedaço de tábua na minha casa.
- Um pedaço de tábua! – exclamou o Moleiro. – Muito bem! É disso precisamente
que preciso para o telhado do meu paiol. Está com uma grande brecha e se não o
tapar, todo o trigo ficará molhado. Que felicidade teres mencionado essa tábua!
É realmente de notar como uma boa ação engendra sempre outra. Dei-te o meu
carrinho de mão e agora tu vais dar-me a tua tábua. É claro que o carrinho de
mão vale muito mais do que a tábua: mas a verdadeira amizade nunca repara
coisas como essas. Dá-me logo a tábua e hoje mesmo porei mãos à obra para
consertar o meu paiol.
- Sem dúvida
– gritou o pequeno Hans, que foi a correr para o telheiro donde trouxe a tábua.
- Não é uma tábua muito grande – disse o Moleiro, examinando-a -, e receio que,
uma vez feito o conserto do telhado do paiol, não sobre madeira suficiente para
o conserto do carrinho, mas, é claro, isso não é minha culpa… E agora, uma vez
que te dei o meu carrinho de mão estou certo de que haverás de querer dar-me
algumas flores em troca. Aqui tens o cesto: procura enchê-lo completamente.
- Completamente? – exclamou o pequeno Hans, bastante aflito, porque o cesto era
mesmo muito grande e sabia que, se o enchesse, não lhe sobrariam flores para o
mercado e estava bastante ansioso por poder resgatar os seus botões de prata.
- Bem, na verdade – respondeu o Moleiro -, uma vez que te dou o meu carrinho de
mão, não penso que seja demasiado pedir-te algumas flores. Posso estar
equivocado, mas deveria ter pensado que a amizade, a verdadeira amizade, estivesse
completamente isenta de egoísmo de qualquer espécie.
- Meu querido
amigo, meu melhor amigo – exclamou o pequeno Hans -, todas as flores do meu
jardim estão à sua disposição, porque me importa muito mais a sua estima do que
os meus botões de prata.
- E correu a colher as lindas primaveras e a encher com elas o cesto do
Moleiro.
- Adeus, pequeno Hans – disse o Moleiro, subindo de novo a colina com a tábua
ao ombro e o seu grande cesto na mão.
- Adeus – disse o pequeno Hans, que se pôs a cavar alegremente, pois estava
contentíssimo por ter um carrinho de mão.
- Na manhã
seguinte, quando estava pregando umas madressilvas no seu alpendre, ouviu a voz
do Moleiro que o chamava da estrada, pulou da escada e desceu a correr o
jardim, indo espiar por cima do muro.
Ali estava o Moleiro com um grande saco de farinha nas costas.
- Querido Hans – disse o Moleiro – quererias levar-me este saco de farinha até
ao mercado?
- Oh! Sinto muito! – disse Hans -, mas na verdade estou muito ocupado hoje. –
Tenho que pregar todas as minhas trepadeiras, tenho de regar todas as minhas
flores e cortar toda a relva.
- Bem, na verdade – disse o Moleiro -, penso que, levando em conta que vou
dar-te o meu carinho de mão, é pouco amistoso da tua parte essa recusa.
- Oh! Não diga isso – exclamou o pequeno Hans. – Por coisa alguma do mundo
haveria eu de esquecer-me da minha amizade pelo senhor.
- E correu a buscar o seu chapéu e partiu com o grande saco nos ombros.
Era um dia
muito quente e a estrada estava terrivelmente empoeirada, e antes de ter Hans
alcançado o marco que indicava a sexta milha, achava-se tão cansado, que teve
de sentar-se para descansar. Não obstante, continuou corajosamente o seu
caminho, chegando por fim ao mercado. Depois de ter esperado ali algum tempo,
vendeu o saco de farinha por muito bom preço e regressou à sua casa
imediatamente, porque temia encontrar algum salteador no caminho, se atrasasse
muito.
- Foi na verdade um dia duro! – disse Hans a si mesmo, ao ir deitar-se -, mas
alegra-me muito por não ter recusado um favor ao Moleiro, que é o meu melhor
amigo, e além disso vai dar-me o seu carrinho de mão.
Bem cedo na
manhã seguinte, apareceu o Moleiro para buscar o dinheiro da venda do seu saco
de farinha, mas o pequeno Hans estava tão cansado que ainda não se havia
levantado da cama.
- Palavra de honra – disse o Moleiro -, és muito preguiçoso. Na verdade, quando
penso que vou dar-te o meu carrinho de mão, acho que podias trabalhar com mais
ardor. A preguiça é um grande pecado e eu certamente não gostaria de que algum
dos meus amigos fosse preguiçoso e apático. Não te zangues, se te estou a falar
completamente sem rodeio. É claro que não te falaria assim, se não fosse teu
amigo. Mas de que servirá a amizade, se não se pudesse dizer claramente o que
se pensa? Toda a gente pode dizer coisas encantadoras e tentar agradar e
lisonjear; mas um amigo sincero diz sempre coisas desagradáveis e não receia
causar pesar. Pelo contrário, se é um amigo verdadeiro, prefere isso, porque
sabe que assim está fazendo o bem.
- Sinto muito
– respondeu o pequeno Hans, esfregando os olhos e tirando o barrete de dormir
-, mas eu estava tão cansado que pensei que poderia ficar na cama um pouco mais
e ouvir os pássaros a cantarem. Sabe o senhor que sempre trabalho melhor depois
de ouvir os pássaros cantarem?
- Bem, tanto melhor – disse o Moleiro, dando uma palmadinha nas costas de Hans
-, pois necessito de que venhas ao moinho, assim que te tiveres vestido, para
consertar-me o telhado do paiol.
O pequeno Hans tinha grande necessidade de ir trabalhar no seu jardim, porque
havia dois dias que não regava as suas flores, mas não quis dizer não ao
Moleiro, que tão bom amigo era para ele.
- Pensa que seria pouco amistoso da minha parte, se dissesse que tenho muito
que fazer? – perguntou ele com voz humilde e tímida.
- Bem,
realmente – respondeu o Moleiro -, não creio que seja demais pedir-te isso,
levando em conta que vou dar-te o meu carrinho de mão; mas, sem dúvida, se
recusares, eu mesmo irei fazer o trabalho.
Oh! De modo algum! – exclamou o pequeno Hans, que saltou da sua casa, vestiu-se
e correu para o paiol.
- Trabalhou ali o dia inteiro, até o pôr do sol e, ao crepúsculo, o Moleiro
apareceu para ver até que ponto tinha ele chegado.
- Já tapaste o buraco do telhado, pequeno Hans? – gritou o Moleiro, em tom
alegre.
- Está completamente tapado – respondeu o pequeno Hans, descendo da escada.
- Ah! – exclamou o Moleiro. – Não há trabalho mais delicioso do que o que se
faz para outro.
- É certamente um grande privilégio ouvir o senhor falar – disse o pequeno
Hans, sentando-se e enxugando a testa -, um grande privilégio mesmo. Creio que
jamais terei tão belas idéias como tem o senhor.
- Oh! Haverás de tê-las – disse o Moleiro -, mas deves esforçar-te mais. Por
ora tens apenas a prática da amizade. Algum dia possuirás a teoria também.
- Acha realmente que eu terei? – perguntou o pequeno Hans.
- Não tenho dúvida alguma – respondeu o Moleiro -, mas agora que consertaste o
telhado, farias melhor indo para casa descansar, pois quero que leves os meus
carneiros para pastar na montanha amanhã.
O pobre Hans
não se atreveu a protestar e no dia seguinte, ao amanhecer, o Moleiro conduziu
os seus carneiros até perto da casinha de Hans que partiu com eles para a
montanha. Entre ir e voltar passou-se o dia, e, quando regressou, estava tão
cansado que adormeceu na sua cadeira e só veio a acordar bem entrada a manhã.
- Que delicioso tempo para trabalhar no meu jardim! – disse ele, pondo-se a
trabalhar imediatamente.
Mas seja como for, não teve tempo de dar uma olhadela às suas flores, pois o
seu amigo Moleiro sempre aparecia a mandá-lo fazer recados bem longe ou a
pedir-lhe que o ajudasse no moinho. Algumas vezes, o pequeno Hans ficava muito
angustiado, receando que as suas flores pensassem que ele as havia esquecido,
mas consolava-se ao refletir que o Moleiro era o seu melhor amigo.
Além disso», costumava dizer, «ele vai dar-me o seu carrinho de mão e isto é um
ato de pura generosidade».
E o pequeno
Hans trabalhava para o Moleiro e este dizia coisas muito bonitas a respeito da
amizade, coisas que Hans copiava para o seu livro de notas e que costumava
reler à noite, pois era um grande estudioso.
Pois bem: aconteceu que uma noite, estando o pequeno Hans sentado junto ao
fogo, ouviu fortes batidas à sua porta. Era uma noite muito tempestuosa, o
vento soprava e rugia em torno da casa tão terrivelmente que a princípio pensou
ele que fosse aquele rumor apenas o da tempestade. Mas soou uma segunda pancada
e depois uma terceira, mais alto do que as outras.
- Deve ser algum pobre viajante – disse o pequeno Hans para si mesmo, e correu
para a porta.
O Moleiro estava no umbral, com uma lanterna numa mão e um grande bastão na
outra.
- Querido
Hans – gritou o Moleiro -, encontro-me em grande complicação. O meu menino caiu
de uma escada, aleijando-se e eu vou em busca do médico. Mas ele mora tão
distante e está uma noite tão má, que acaba de ocorrer-me que seria melhor que
fosses em meu lugar. Sabes que vou dar-te o meu carrinho de mão, por isso
estaria muito bem que fizesses alguma coisa por mim em retribuição.
- Decerto! – exclamou o pequeno Hans. – Alegra-me muito que me tenha vindo
procurar e partirei imediatamente. Mas o senhor devia emprestar-me a sua
lanterna, uma vez que a noite está tão escura que receio que possa vir a cair
no fosso.
- Sinto muitíssimo – respondeu o Moleiro -, mas é a minha lanterna nova e seria
uma grande perda, se lhe acontecesse alguma coisa.
- Bem, não falemos mais nisso, irei mesmo sem ela -, exclamou o pequeno Hans,
vestindo o seu grande casaco de pele, pondo na cabeça o seu barrete vermelho,
amarrando em torno do pescoço uma manta, e saindo imediatamente.
Que terrível
tempestade estava desencadeada; A noite era tão negra que o pequeno Hans mal
podia ver e o vento tão forte que ele dificilmente conseguia andar. Contudo,
era muito corajoso e, depois de ter caminhado cerca de três horas, chegou à
casa do doutor e bateu-lhe à porta.
- Quem é? – gritou o doutor, pondo a cabeça à janela do seu quarto.
- É o pequeno Hans, doutor!
- E que desejas a estas horas, meu pequeno Hans?
- O filho do Moleiro caiu de uma escada e aleijou-se, e o Moleiro quer que o
senhor vá lá imediatamente.
- Muito bem! – disse o doutor. Mandou selar o seu cavalo, calçou as suas
grandes botas, pegou na sua lanterna, desceu a escada e seguiu na direção da
casa do Moleiro, enquanto o pequeno Hans marchava atrás dele.
Mas a tempestade tornou-se cada vez pior, a chuva caía em torrentes e o pequeno
Hans não podia nem ver por onde ia, nem acompanhar o cavalo. Afinal, perdeu-se,
e esteve a vagar pela charneca, que era um lugar muito perigoso, cheia como
estava de profundos buracos, e o pequeno Hans caiu num deles e afogou-se. Na
manhã seguinte, uns pastores encontraram o seu corpo boiando numa grande poça
d’água e levaram-no para a sua casinha.
Toda a gente
assistiu ao enterro do pequeno Hans, porque ele era muito popular e foi o
Moleiro quem tomou a dianteira do funeral.
- Como fui o seu melhor amigo – disse o Moleiro -, não é nada de mais que eu
tome o melhor lugar.
De modo que pôs-se à frente do cortejo com uma longa capa preta e, de vez em
quando, enxugava os olhos com um grande lenço de bolso.
- O pequeno Hans representa, certamente, uma grande perda para todos nós –
disse o Ferreiro, terminado o funeral, e quando estavam todos sentados
confortavelmente na estalagem, bebendo vinho temperado e comendo bolos doces.
- Foi uma grande perda, sobretudo para mim – replicou o Moleiro. – Posso
afirmar que fui bastante bom, comprometendo-me em dar-lhe o meu carrinho de mão
e agora não sei realmente o que fazer com ele. Atravanca a minha casa e está em
tão más condições que se o vendesse, não lucraria nada. Asseguro a vocês que
daqui por diante não darei nada a ninguém. A gente paga sempre por ser
generoso.»
– E
então? – perguntou o Rato d’Água, depois de uma longa pausa.
- Bem, este é o fim – disse o Pintarroxo.
- Mas o que aconteceu ao Moleiro? – perguntou o Rato d’Água.
- Oh! Realmente não sei – replicou o Pintarroxo -, e, para falar a verdade, não
me interessa.
- É bastante evidente que você não possui o dom da simpatia no seu caráter –
disse o Rato d’Água.
- O que receio é que o senhor não tenha compreendido a moral da história –
observou o Pintarroxo.
- O quê? – gritou o Rato d’Água.
- A moral.
- Quer você dizer que a história tem uma moral?
- Decerto – afirmou o Pintarroxo.
- Bem, na verdade – disse o Rato d’Água, de um modo bastante colérico -, acho
que você deveria ter-me dito isso antes de começar. Se o tivesse feito, eu
certamente não o teria escutado; de fato, deveria ter dito «Patetice!», como o
crítico. Contudo posso dizê-lo agora. E gritou: «Patetice!». No mais alto tom
e, dando uma rabanada com a cauda, correu para o seu buraco.
- Que lhe parece o Rato d’Água? – perguntou a Pata, que chegou nadando alguns
minutos depois.
- Possui muito boas qualidades, porém eu, pela minha parte, tenho sentimentos
de mãe e não posso ver um solteirão chapado, sem que me subam as lágrimas aos
olhos.
- Receio tê-lo aborrecido – replicou o Pintarroxo. – O fato é que lhe contei
uma história com uma moral.
- Ah! Isso é sempre uma coisa muito perigosa de fazer-se – disse a Pata. E eu
concordo inteiramente com ela.