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quinta-feira, 23 de junho de 2016

PERCEPÇÃO

A Felicidade
A felicidade é um estado permanente que não parece ter sido feito, aqui na terra, para o homem. Na terra, tudo vive num fluxo contínuo que não permite que coisa alguma assuma uma forma constante. Tudo muda à nossa volta. Nós próprios também mudamos e ninguém pode estar certo de amar amanhã aquilo que hoje ama. É por isso que todos os nossos projetos de felicidade nesta vida são quimeras. 
Aproveitemos a alegria do espírito quando a possuímos; evitemos afastá-la por nossa culpa, mas não façamos projetos para a conservar, porque esses projetos são meras loucuras. Vi poucos homens felizes, talvez nenhum; mas vi muitas vezes corações contentes e de todos os objetos que me impressionaram foi esse o que mais me satisfez. Creio que se trata de uma conseqüência natural do poder das sensações sobre os meus sentimentos. A felicidade não tem sinais exteriores; para conhecê-la seria necessário ler no coração do homem feliz; mas a alegria lê-se nos olhos, no porte, no sotaque, no modo de andar, e parece comunicar-se a quem dela se apercebe. Existirá algum prazer mais doce do que ver um povo entregar-se à alegria num dia festivo, e todos os corações desabrocharem aos raios expansivos do prazer que passa, rápida mas intensamente, através das nuvens da vida?
 


sexta-feira, 17 de junho de 2016

Criticando a crítica

Um memorioso formigueiro mental

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
15/06/2016 

O poeta Ferreira Gullar abre um parêntese nas suas senilidades politicoides para voltar a provocar-me, invocando suposta conversa que teria tido comigo há mais de 60 anos, na qual eu teria falado mal de Oswald de Andrade ("Ilustrada", 12 de junho). Assim procede para enganar os leitores, passando-se por grande amigo e conhecedor da obra de Oswald, quando mal o conheceu e nada fez pela sua reabilitação, iniciada pelos poetas concretos de São Paulo.
A verdade é que, quando veio a opinar, afirmou que quem estava certo era Mário de Andrade e não Oswald. Só abre a pós-boca para autolouvar-se. Enquanto isso Haroldo, Décio e eu, desde fins dos anos 1940, enfatizávamos a importância do autor de "Serafim Ponte Grande", livro que Gullar afirma ter comprado em 1954, mas que Oswald nos ofertou pessoalmente em 1949 com a dedicatória: "Aos irmãos Campos, firma de poesia".
Muito antes de Gullar ouvir falar de Oswald, eu assinara com Décio e Haroldo, em 1950, um texto subscrito por pequeno grupo de intelectuais, "Telefonema a Oswald de Andrade", que ressaltava: "Você, sexagenário, é o mais moço dos escritores brasileiros" ("Jornal de São Paulo", 18/1/1950). Não cola, portanto, a delação desprimorosa de Gullar.
Em 1954, Décio incluía "O Rei da Vela" no seu Teatro de Cartilha. No "Diário Popular", de 12/12/1956, Haroldo e eu afirmávamos: "Contra a reação sufocante, lutou quase sozinha a obra de Oswald de Andrade, que sofre, de há muito, um injusto e caviloso processo de olvido sob a pecha de "clownismo" futurista. Seus poemas ("Poesias Reunidas O. Andrade"), seus romances-invenções "Serafim Ponte Grande" e "Memórias Sentimentais de João Miramar" (de tiragens há muito esgotadas, para não falar de seus trabalhos esparsos ou inéditos), que ainda hoje, por sua inexorável ousadia, continuam a apavorar os editores, são uma raridade no desolado panorama artístico brasileiro." A pretensão de Gullar de ter influído em nossa percepção de Oswald é, pois, mera fanfarronice.
Se alguma vez o seu memorioso formigueiro mental ouviu qualquer restrição de minha parte, não era à obra de Oswald, mas ao seu comportamento, que não era o de um santo. Por exemplo, nos anos 1950, Oswald começou a proclamar que Cassiano Ricardo, presidente do Clube de Poesia, mas também diretor-geral do governador Adhemar de Barros ("rouba, mas faz"), era o nosso Fernando Pessoa. Ora, Cassiano podia nomear quem indicasse para cargos públicos... O verdeamarelista, ridicularizado por Oswald, passava a ser o gênio da raça, por interesses familiares. Era muito mais do que uma irresponsabilidade. Não dava, obviamente, para concordar em tudo e por tudo com Oswald, a despeito de sua grande obra.
São mais do que conhecidos os estudos que publicamos, Haroldo, Décio e eu, ressuscitando a obra de Oswald. Fomos nós que relacionamos o seu "poema-minuto" à poesia concreta. E que estabelecemos o elenco básico de autores do movimento, Mallarmé/Joyce/Pound/Cummings, que Gullar secundou em artigo de 1957, mas cuja obra ignorava. De autores franceses, só conhecia os surrealistas. Não sabia e não sabe inglês.
Em suma, por que sempre insultou os poetas paulistas? Porque sabe que não inventou nada. Que o seu "neo", cercado de uma pequena corte de subpoetas, hoje esquecidos, foi incapaz de deixar de copiar os nossos poemas concretos. Por que volta a me provocar, tendo sido já contestado e desmentido? O surto vem da repercussão da mostra de meus poemas –"REVER"– no Sesc Pompeia (São Paulo), a contrastar com o conformismo dos seus subprodutos drummondcabralinos. Gullar diz que poesia é espanto. Espanto é o que sentimos ao ver o autor de "João Boa-Morte" coroar-se, de fardão, chapéu de plumas, colar e espada, na Academia Brasileira de Letras, onde chucha o seu chazinho bem remunerado com Sarney, FHC, Marco Maciel e até um golpista da TV Globo, entre outros espantalhos imortais da nossa literatura...


AUGUSTO DE CAMPOS, 85, é poeta, ensaísta e tradutor, autor de "Viva Vaia - Poesia 1949-1979" (Ateliê), "Não", "Outro"(ambos pela Perspectiva) e "Poesia Antipoesia Antropofagia & Cia" (Companhia das Letras), entre outros livros.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

POESIA


MUNDO MAU
jose sette

Ele nasceu osso duro de roer - suposto delito deleite de poucos sabores - branca luz dos seus seios a lambuzar coisas pequenas.
Ele nasceu sorrindo e depois chorou o charme discreto enlameado da cidade nas obras menores do divino em sangue e areia.
Ele nasceu contradição e descaso - televisão desligada - antena quebrada pela força dos ventos.
Ele nasceu sombras que rodeiam o meio-dia explodindo a luz do pensamento num caos colérico de alegria.
Ele nasceu parabólico das imagens - por todos os lados se envergado em busca do saber e como um ser alado em busca do sol massacrado das necessidades - néscio do mar louco de viver. Porta negra sem casa.
Navegando no nada.
Afogando-se.
Vir a ser.
Ele nasceu só como um tigre cego ao natural sem bengala e sem mortalha e sem querer.
Lembrando-se sempre que és pó e só um simples mortal pode ao pó retornar.
Ele eterno pó - pérola pré-fabricada de plástico - mulher indesejável
un trapo sujo no pescoço social
passa correndo atrás do osso
que foi duro de roer...
Ele que nunca foi ninguém deixa hoje de ser Ele - um anjo louco barroco das catedrais criatura de chaga e gozo - um semideus vivo de fogo que passa pelos portais do inferno rindo da ironia que atrai e conduz ao retorno
Antes de morrer
Ele é aquele rapaz que veio ver ao lado do pai, observador enfraquecido, o velho astuto ensandecido satanás.

terça-feira, 7 de junho de 2016

ENSAIANDO


O desatino de Ezra Pound no mosaico da poesia moderna

por Homero Nunes
In a Station of the Metro
The apparition of these faces in the crowd;
Petals on a wet, black bough.

A aparição destas faces na multidão;
Pétalas num úmido, negro ramalhete.
  
Ezra Pound ficou 13 anos em um hospício por suas ideias políticas. Doido ou não, talvez, foi declarado incapaz por flertar com o fascismo, duvidar da democracia, defender teorias econômicas controversas e produzir uma poesia moderna demais. Elitista, intelectualmente elitista, criticava a decadência da civilização e a monetarização das relações pessoais no capitalismo putrefato. Reacionário na política, revolucionário na poesia, Pound foi a contradição figurada no caos da consciência torturada do século XX. E teve tempo, longevo, para torturar sua consciência e se arrepender de muita coisa: 87 anos. Usando a poesia como instrumento, como artifício, “vórtice imagético” (como alguns críticos tentaram circunscrevê-lo), o autor construiu mosaicos de referências estilhaçadas do mundo antigo, medieval, renascentista, moderno, do ocidente e do oriente, e de mundos mentais, épicos e fantasiosos. Imagens, metáforas, citações e referências múltiplas; uma erudição que causa vertigens em nossa mediocridade. Esqueça o fascismo, o autoritarismo, o elitismo ou qualquer outro ismo relacionado a Ezra Pound, sua poesia supera todos eles no ismo final do aforismo, poesia pura no mosaico da modernidade.

O RETORNO
Veja, eles retornam; ah, vê a tentativa
Movimentos, e os pés lentos,
O problema do ritmo e do incerto
oscilar!

Veja, eles retornam, um, e por um,
Com medo, como semi-acordados;
Como se a neve  hesitasse
E murmurasse ao vento,
dando meia-volta,
Estes eram os que tem medo de voar,
Invioláveis.

Deuses do sapato alado!
Com eles, os cães de prata,
farejando o rastro de ar!

E ASSIM EM NÍNIVE
Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho.

SAUDAÇÃO
Oh geração dos afetados consumados
          e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
          e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
          e não possuem nem o que vestir.

poesia:

“Não use palavras supérfluas, nem adjetivos que nada revelam. Não use expressões como dim lands of peace (brumosas terras de paz). Isso obscurece a imagem. Mistura o abstrato com o concreto. Provém do fato de não compreender o escritor que o objeto natural constitui sempre o símbolo adequado.
Receie as abstrações. Não reproduza em versos medíocres o que já foi dito em boa prosa. Não imagine que uma pessoa inteligente se deixará iludir se você tentar esquivar-se aos obstáculos da indescritivelmente difícil arte da boa prosa subdividindo sua composição em linhas mais ou menos longas. O que cansa os entendidos de hoje cansará o público de amanhã.
Não imagine que a arte poética seja mais simples que a arte da música, ou que você poderá satisfazer aos entendidos antes de haver consagrado à arte do verso uma soma de esforços pelo menos equivalente aos dedicados à arte da música por um professor comum de piano.
Deixe-se influenciar pelo maior número possível de grandes artistas, mas tenha a honestidade de reconhecer sua dívida, ou de procurar disfarçá-la.
Não permita que a palavra influência signifique apenas que você imita um vocabulário decorativo, peculiar a um ou dois poetas que por acaso admire. Um correspondente de guerra turco foi surpreendido há pouco se referindo tolamente em suas mensagens a colinas cinzentas como pombas, ou então lívidas como pérolas, não consigo lembrar-me. Ou use o bom ornamento, ou não use nenhum.”

POUND, Ezra. Arte da Poesia, Ensaios. São Paulo: ed. Cultrix, 1976. (p.11-12)

sexta-feira, 3 de junho de 2016

POLÍTICA


Temer, o Obscuro
Orlando Senna
Todo mundo sabe, embora às vezes de maneira imprecisa, o que é obscurantismo. É impedir que verdades ou fatos venham à luz, é oposição ao progresso intelectual ou material, é restringir ou negar o acesso do povo ao conhecimento. A vítima é a sociedade. O caminho do obscurantismo para impedir que a sociedade tenha acesso a conhecimentos são os diversos tipos de repressão política, militar, religiosa, sexual, comportamental. Enfim, todas as certezas absolutas e todos os preconceitos.
De uma maneira mais rápida e incisiva, outro caminho sempre foi utilizado ao longo dos séculos: anular filósofos, artistas e cientistas. Anular através da prisão, da tortura, do exilio e da morte. Como os martírios de Galileu, Dante, Lutero, Voltaire, Nostradamus, García Lorca, Jesus. E também, no nosso tempo, Salman Rushdie, Glauber Rocha, Victor Jara, Vladimir Herzog. E milhares de outros pensadores/comunicadores. "Viva la muerte, abajo la inteligencia" era um dos slogans da ditadura franquista na Espanha. 
A Idade Média foi considerada, tanto pela Renascença que a sucedeu no século XV como pelos iluministas do século XVIII, como a Era Obscurantista, a Idade das Trevas. Um periodo histórico de contínua deterioração material (economia destroçada pelo fim do Império Romano) e, profundamente, degeneração cultural e ética. Basta citar a Santa Inquisição, o trabalho escravo ou “servil” (sem remuneração) do feudalismo, as Cruzadas. O que nos interessa nessa História é que traços, vestígios e excrementos da Idade Média permanecem na nossa Idade Contemporânea, tanto em níveis de poder como em níveis de atitudes pessoais.
Regressão
O alvo do obscurantismo é a cultura, a fonte geradora de ideias e comportamentos. Entre os primeiros atos de Michel Temer, presidente interino que governa como se não fosse interino, estava a extinção do Ministério da Cultura, instituição que construiu uma profunda e profícua relação com a sociedade, com o fazer e o querer da sociedade. Cuidando da cultura nos seus aspectos social, simbólico e econômico, o MinC tornou-se uma referência para vários países, um desenho de eficiência estudado e elogiado por centenas de teses universitárias ao redor do mundo. A nave-mãe de indústrias culturais que cresceram geometricamente nas últimas duas décadas, influenciando beneficamente a economia nacional tão carente hoje de influências benéficas. 
A reação contra a decisão do presidente interino foi e continua sendo enorme mas ele não cedeu: a Cultura estará a cargo de uma secretaria no Ministério da Educação, que volta a ser da Educação e Cultura, MEC, como era há mais de trinta anos. Retrocesso brutal, três décadas para trás. Os milhões de trabalhadores diretos e indiretos das atividades culturais passaram a militar em uma vigorosa oposição ao ato que classificam, com toda razão, como obscurantista.
Significados
Cinco séculos antes de Cristo o filósofo Heráclito de Éfeso foi alcunhado O Obscuro. É considerado o fundador da metafísica. É o autor da frase “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, porque tanto a água como o ser humano mudam ininterruptamente. É a doutrina do mobilismo de todas as coisas. Heráclito, o Obscuro, era um filósofo competente mas isso só veio à luz bem depois da sua morte porque ele não se fazia entender pelos ouvintes de seu tempo, não tinha o dom da comunicação oral. Esse significado semântico de obscuro (sem claridade, sombrio, misterioso, incompreensível) é um entendimento colateral para o título deste texto, ao qual voltaremos. 
O sentido primordial é o de gerador de obscurantismo, o que ou aquele que difunde a escuridão a partir de sua própria ausência de luz. Um significado inventado aqui e agora para esse substantivo. Os professores me diriam que a palavra correta seria obscurantista, em sua acepção de adepto do obscurantismo. Prefiro a licença poética, a diagramação fica mais de acordo com as alcunhas históricas (Alexandre o Grande, Pepino o Breve, Maria Primeira a Louca, Jack o Estripador). Temer o Obscuro promete, pelos suas ações nos primeiros dias de governo, que a tendência ao pregresso, ao que já aconteceu e não deu certo, continuará: não escolheu uma só mulher para o ministério, afrodescendente nem falar, índio nem pensar. 
Por que? E aqui entra o significado semântico, o Temer misterioso, aquele que não se revela. Não me refiro a brincadeiras nas redes sociais que o apelidam de “mordomo da casa de Drácula”. É mais sério que isso: por que um cara que já não era popular decide jogar contra si mesmo a oposição ferrenha dos grandes artistas e intelectuais brasileiros, formadores básicos da opinião pública? Em todos os shows, em todo teatro, em qualquer acontecimento artístico no Brasil acontece neste momento atos hostis a Temer. E também no Festival de Cannes, e também em concertos de rock stars em Nova York. Não sei de outro político que tenha promovido um ato impopular que não ajudou a ninguém, que é nefasto à sociedade e ao próprio político.
A resposta mais cabível que circula nos meios de comunicação é que se trata de uma vingança. Como a grande maioria dos trabalhadores da cultura é contra o impeachment da presidente Dilma e criticaram o vice presidente Temer pelo seu açodamento para abocanhar o poder, o agora presidente interino estaria exercendo uma vendeta, uma retaliação. Se esse é o motivo, estamos fuçando no cerne do obscurantismo. Se um mandatário de um país se vinga de seus cidadãos por questões pessoais, este país está mesmo navegando entre a sombra e a treva.

* Link para outros textos de Orlando Senna no Blog Refletor    http://refletor.tal.tv/tag/orlando-senna