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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

LOUCURA POUCA É BOBAGEM

O FIM DAS ÁGUAS
Especialistas culpam falta de chuvas e investimentos insificientes pela seca
A principal nascente do Rio São Francisco está praticamente seca em São Roque de Minas. Ela fica no Parque da Serra da Canastra e os pequenos afluentes que a formam já deixaram de existir. Na tarde desta terça-feira, 23, uma equipe subiu a serra para tentar achar sinais de água na nascente, mas até o final do dia não havia obtido êxito.
O analista ambiental do parque Vicente Faria verificou a situação ao lado do encarregado pela área, Luiz Arthur Castanheira. Eles contaram que se trata de uma situação inédita na história e preocupante. Faria disse que a estiagem e os incêndios aceleraram o processo, pois a água que era pouca teve ser usada para a pagar o fogo.
Somente em julho, incêndios destruíram 40 mil hectares de vegetação nativa na serra. Segundo o analista, é um período atípico de estiagem. “O clima do planeta está mudando e racionar água é uma necessidade”, disse Farias.
A nascente do São Francisco está na Área de Preservação da Região Centro-Oeste de Minas. O rio, um dos mais importantes do país com 2.700 quilômetros de extensão, tem outras nascentes, mas esta é a primeira e, por isso, deixa em alerta toda a bacia hidrográfica.
Energia. O São Francisco segue para o Nordeste onde encontra o Oceano Atlântico, passando antes por mais de 500 municípios de Bahia, Sergipe, Pernambuco e Alagoas. A estiagem, entretanto, mudou o volume de água em alguns pontos e o reflexo disso é sentido nas hidrelétricas.
A Usina de Três Marias, localizada na cidade mineira que leva o mesmo nome, a 250 quilômetros da nascente, estava operando com apenas 5,71% de sua capacidade, segundo o Operador Nacional do Sistema (ONS). Ela responde por 31,02% da energia consumida no Nordeste.
Medidas. Em um ano foram gastos cerca de R$ 30 milhões em Minas para proteger o São Francisco, mas com a seca intensa os resultados ficaram abaixo do esperado. O Comitê da Bacia Hidrográfica do rio cobra novos investimentos e medidas para definir o uso múltiplo da água. De qualquer maneira, somente a chuva pode resolver o problema. “A seca está de um jeito nunca visto, o jeito é rezar para chover”, disse Luiz Castanheira, coordenador do Parque da Serra da Canastra. No local há nascentes que servem também ao Rio Grande. 

sábado, 20 de setembro de 2014

Do Face Conto de um Cineasta Amigo



QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA UM PONTO 

Outro dia um amigo meu, em tom de acusação, bradou nas minhas ventas: “-Você não aparece na sua obra! Não reconheço nos seus livros a pessoa com quem eu converso há anos! Quando acharemos João Carlos Rodrigues na obra de João Carlos Rodrigues?!”
Fiquei uma arara. Mas, depois, pensando bem, vi que tinha uma parte de razão. Uma parte apenas, mas uma parte essencial. Não estou falando de estilo, fluência ou ponto de vista, mas algo maior, indefinível. A minha alma, a minha persona. Aquele texto onde mesmo quem nunca me viu possa me (re)conhecer até quase a intimidade total. Evidentemente há limites muito claros para o autor de uma biografia, um ensaio ou uma crítica de cinema, pois falam de temas que não foram criados por ele. Mesmo assim há momentos na biografia que escrevi do João do Rio, onde estou lá, é só procurar.
Mas um autor só se revela mesmo na ficção, quando sua técnica fica a serviço da imaginação, sem passar necessariamente pela racionalidade. Escrevi um pouco, e gostaria de fazer mais, ficção. Roteiros de cinema, roteiros para televisão, contos. Quem me conhece bem pode me achar em certos diálogos do filme “Rio Babilônia” e, principalmente, num programa Você Decide intitulado “Molambo de gente”, de 1996, dirigido pelo Ari Coslov.
E nos contos, alguns publicados on line sob o pseudônimo Jango Rodrigues, inventado pelo Glauber Rocha. Foi neles que cheguei a uma forma própria, interessante e muito irônica, não muito comum na literatura brasileira atual. Quase todos são contos homoeróticos (não confundir com auto ajuda gay), ambientados no baixo mundo carioca nos anos 1970/80. Estão reunidos no livro “Criaturas que o mundo esqueceu”, que desejo publicar. Todos os pareceres das editoras são favoráveis, mas todas as portas se fecham, como se eu fosse um iniciante. Botei até agente. Não tenho padrinho. E agora? Estarei com a síndrome do autor maldito? Ui! Sai pra lá, carcará! Pé de pato mangalô!
Por questão de princípio, não vou bancar a edição do meu próprio bolso. No momento esta é minha maior preocupação, e também o meu objetivo principal: publicar o “Criaturas”, obra da qual gosto muito, e a que mais me revela, numa editora “normal”. Será que vou conseguir?
(*) Nunca editei ficção. O romance “Memorial do inferno” (belo título), editado na década de 1990 pela Escritura Editoras, não é meu. É de um homônimo. Ignoro se é bom ou não.
Abaixo três mini narrativas de ficção, que não fazem parte do livro, cujos contos são bem mais longos e burilados, mas tem temática e estilo afins. Divirtam-se (ou não).
DOIS HOMENS QUE CHORAM
 para Dalva de Oliveira e Herivelto Martins
Eu vi um homem chorar.
Foi há muito tempo, num botequim da Praça Tiradentes. Disse que se chamava Douglas. Era bem jovem, muito moreno, como o jogador Romário. Parecia marroquino. Morava lá pras bandas de Alcântara, além Niterói. Um amigo me cochichou: “Herivelto tem profissão, é metalúrgico do estaleiro Iskawajima”. Assim descobri seu nome verdadeiro.
Era um homem com H.
Mas na algaravia do boteco, entre gargalhadas e trincar de copos e garrafas, ele confessou que tinha sido vetado na seleção de aspirantes do Botafogo, por causa de um defeito imperceptível em uma das pernas. “Mas no tempo do Garrincha isso podia”, reclamou, lágrimas nos olhos.
Era uma pessoa maravilhosa. Sumia por uns tempos, depois voltava. Numa dessas desaparecidas, tive de me mudar de apartamento e o número do telefone foi trocado. Percorri os bares e as esquinas, inutilmente. Herivelto, nunca mais.
Hoje quem chora sou eu.
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
Numa quarta-feira, cinco da matina, mal raiava o dia, X fechou com cuidado a porta do quarto depois de deixar o bilhete de despedida (onde não disse nem a metade do que pretendia desabafar) em cima da cômoda, esgueirou-se pela porta da cozinha, trancou com cuidado a porta dos fundos, jogou a chave por debaixo da porta, pegou o elevador e ganhou a liberdade da rua. Levava a carteira de identidade e uma leve impressão que já ia tarde.
Quando Y acordou, por volta das onze, já abriu o olho gritando impropérios com sua voz de maritaca, rogando pragas e amaldiçoando o companheiro de tantos anos. Frustrado por não avistar seu saco de pancadas, percorreu todo o apartamento enrolado num lençol, espumando de raiva. Só depois de meia hora encontrou o bilhete, que leu, lívido de decepção. Então “ele” escapara na calada da noite, abandonando mesmo as roupas caras que lhe dera, e que eram cobradas com ironias ferinas, dia sim, outro também. “ – Covarde!” esbravejou diante do espelho oval do banheiro, enquanto escovava os dentes. “Que não se atreva a querer voltar!”
Quando, no correr dos próximos dias, viu que X não ia mesmo retornar, nem telefonar, nem ao menos dar notícias, sentiu o vazio monstruoso dos desertos gelados. Um fofoqueiro telefonou dizendo que o tinha visto numa praia do Ceará, em ótima companhia, numa boa. Dilacerou o rosto com as próprias unhas. Com quem iria agora contracenar o psicodrama que interpretava no inferno cotidiano?
Para relaxar, seu único divertimento virou alimentar as rolinhas que brincavam na varanda. Mas até essas, impacientes e impiedosas, em pouco tempo preferiram a janela da vizinha.
BRIGAS NUNCA MAIS
De repente, o encontro semanal entre os dois virou um inferno.
Chicão estava com a macaca. Reclamava da vida, como sempre, mas dessa vez em voz alta, agitado. Armou o maior piti, exigiu dinheiro na frente dos fregueses e garçons do bar favorito que frequentavam há mais de dez anos. Entrou em detalhes da vida sexual a dois, xingou o outro de viado velho, de filho da puta, coisas ainda piores. Terminou saindo aos gritos de “tudo acabado entre nós” e quebrando no chão o prato de lasanha.
Houve um silêncio constrangedor.

Ronaldo a princípio não entendeu, fragilizado. Ouviu tudo calado, pedindo que o chão abrisse e o engolisse, livrando de tanta vergonha. Não chorou, nem levantou a voz. Pagou a conta. Depois, já no metrô de volta pra casa, filosofou sobre a luta de classes, usufruindo os primeiros minutos de sua nova liberdade.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

LITERATURA E CINEMA



O reino das sombras - Relato de Maximo Gorki ao ver o cinema

A noite passada estive no Reino das sombras.
Se soubessem o estranho que é sentir-se nele. Um mundo sem som, sem cor Todas as coisas – a terra, as árvores, a gente, a água e o ar – estão imbuídas ali de um cinza monótono. Raios cinzas de sol que atravessam um céu cinza, olhos cinzentos no meio de rostos cinzas e, nas árvores, folhas cinzentas. Não é a vida e sim sua sombra, não é o movimento e sim seu aspecto silencioso.
Vou tratar de explicar-me para não ser tachado de louco ou de fazer concessões ao simbolismo. Estive em Aumont vendo o cinematógrafo de Lumière: a fotografia animada. A extraordinária impressão que produz é tão complexa e única que duvido de minha capacidade para descreve-la em todos os seus aspectos. Mesmo assim, tratarei de expressar os que são fundamentais.
Quando se apaga as luzes na sala onde se expõe o invento de Lumière, aparece de imediato na tela uma grande imagem de corcinza. Uma rua de Paris, sombras de um mal gravado. Se se observa fixamente, se vêm carros, edifícios e pessoas em diversas posturas, congeladas e imóveis. Tudo em tom cinza, o céu lá em cima também é cinza, não se antecipa nada novo nesta cena demasiado familiar, pois mais de uma vez vimos imagens das ruas de Paris. Mas, imediatamente, um estremecimento esquisito invade a tela e a imagem torna-se viva. As carruagens que chegam de alguma parte da perspectiva da imagem se movem até você, até a escuridão onde estás sentado; mais adiante das pessoas aparece algo que se destaca, cada vez maior, a medida que se aproxima de ti; no primeiro plano, uns garotos brincam com um cachorro, passam uns ciclistas e os pedestres cruzam a rua serpenteando os carros. Tudo se move com muita vitalidade e quando se aproxima do limite da tela, desaparece por trás dela, não se sabe onde.
E no meio de tudo, um estranho silêncio, sem que se escute o rumor das rodas, o som dos passos ou das vozes. Nada. Nem uma só nota dessa confusa sinfonia que sempre acompanha os movimentos das pessoas. Silenciosamente, a folhagem cinza das árvores balançam com o vento e as silhuetas cinzas das pessoas – pode se dizer condenadas ao eterno silêncio e cruelmente castigadas ao ser privadas de todas as cores da vida – deslizam em silêncio sobre um solo cinza.
Seus sorrisos são inanimados, ainda que seus movimentos estejam cheios de energia vital, tão ligeiros que são quase imperceptíveis. Seu sorriso é mudo, ainda que possa se ver os músculos contrair-se nos rostos cinzas. Diante de ti surge uma vida, uma vida carente de palavras e despojadas do espectro de cores vitais: uma vida cinzenta, muda, desolada e lúgubre.
A visão é espantosa, porque o que se move são sombras, nada mais que sombras. Encantamentos e fantasmas, os espíritos infernais que fizeram desaparecer cidades inteiras no sonho eterno acodem à mente e é como se materializassem diante de ti a arte maligna de Merlin. Como se houvesse sumido a rua inteira; como se, do telhado ao piso, houvesse derrubado os edifícios de vários andares até reduzi-los ao nível do chão. As pessoas foram reduzidas em idêntica proporção, destituindo-as do poder da palavra e esfumando as tonalidade do céu e da terra numa coloração cinza monótona. Desse modo, a grotesca criação foi empurrada para o canto de um obscuro restaurante. De repente se escuta um estalido, tudo se desvanece e aparece um trem na tela. Se lança diretamente contra você, cuidado! Dá a impressão que vai precipitar-se na escuridão sobre o espectador, convertendo-lhe num monte de carne dilacerada e ossos estilhaçados e reduzindo a pó e fragmentos esta sala e todo o edifício, cheio como está de mulheres, vinho, música e vicio.
Mas também este é um trem das sombras.
Sem um ruído, a locomotiva desaparece pelo lado da tela. O trem pára um instante e uma série de figuras cinzentas surgem mudas dos vagões, saúdam em silêncio a seus amigos, riem, andam, correm, rebolam e... se vão. Aparece, então, outra imagem. Três homens sentados numa mesa, jogando baralho. Seus rostos estão tensos, suas mãos se movem com rapidez. A ganância dos jogadores é denunciada pelos dedos trêmulos e pela contração dos músculos faciais. Jogam... De repente, caem na risada e o garçom que se encontrava com a cerveja junto a mesa, sorri também. Riem às gargalhadas sem emitir qualquer som. Dá a impressão que foram mortos e suas sombras estivessem condenadas a jogar baralho em silêncio por toda a eternidade. Outra imagem. Um jardineiro está regando as flores. O jato de água cinzenta, que sai da mangueira, se desfaz na forma de uma chuva fina. Cai sobre os ramos de flores e talos de gramas, esmagadas pela água. Aparece um garoto que pisa a mangueira interrompendo o jato d’água. O jardineiro verifica a boca da mangueira ao mesmo tempo em que o garoto retira o pé, fazendo com que o jardineiro receba o jato d’água direto na cara. O espectador imagina que a chuva vai alcançá-lo e tem o impulso de se proteger. Mas na tela o jardineiro já está perseguindo o garoto por todo o jardim, e quando o pega dá-lhe uma surra. Mas a surra é muda e tampouco se escuta o jorro da água que flui da mangueira abandonada no chão.
Esta vida, cinzenta e muda, acaba por transtornar e deprimir uma pessoa. Parece transmitir uma advertência, carregada de um vago, porém, sinistro sentido, diante do qual teu coração estremece. Esqueça onde se encontra. Estranhos pensamentos invadem a mente, e a consciência começa a se debilitar e a desaparecer...
Mas, rapidamente, a teu lado, se escuta uma animada discussão e a risada provocadora de uma mulher... e recordas que estás no Aumont, no local de Charles Aumont... Por que entre tantos lugares este notável invento de Lumière havia de abrir caminho para ser exibido aqui. Este invento que afirma uma vez mais a energia e a curiosidade da mente humana, desenvolvendo-a e atrapalhando-a e que... em seu intento de aprofundar o mistério da vida, ajuda por tabela a construir a fortuna de Aumont? Não percebo ainda a importância científica do invento de Lumière, mas não há dúvida que a tem e provavelmente será útil aos fins gerais da ciência, ou seja melhorar a vida do homem e desenvolver seu pensamento. Não é isto o que encontramos no Aumont, onde não se promove nem se a conhecer nada além do vício. Por que então no Aumont, entre as “vítimas das necessidades sociais” e entre os malandros que compram aqui o amor? Por que entre todos os locais escolheram este para a exibição da última conquista científica? É provável que o descobrimento de Lumière se aperfeiçoe rapidamente, mas o fará no espírito da Aumont-Toulon and Company.
Junto aos filmes já mencionados se projeta Le déjéneur de bébé, onde aparece um trio idílico. Uma jovem esposa com seu gorducho filhinho senta-se na mesa para o café da manhã. A esposa está tão enamorada, são tão encantadores, alegres e felizes, e o menino é tão gracioso! A cena passa a impressão de beleza e felicidade. Esta cena familiar tem sentido no Aumont?
Ainda há outra. As operárias de uma fábrica, formando um grupo compacto, alegre e risonho, saem correndo pela rua. Isso também está fora do lugar no Aumont. Por que lembrar aqui a possibilidade de uma vida limpa, de trabalho? Não tem nenhum sentido. No melhor dos casos, este filme não fará senão comover dolorosamente a mulher que comercia sua sexualidade.
Estou persuadido de que estas imagens serão logo trocadas por outras mais de acordo com o tom geral do Concert Parisien. Por exemplo, projetando um filme intitulado: O nu, ou A dama no banho, ou Uma mulher na intimidade . Também poderão filmar uma sórdida briga entre marido e mulher e oferecê-la ao público com o título Os benefícios da vida em família.
Sim, indubitavelmente se farão este tipo de filmes. Nem o bucólico nem o idílico têm futuro algum no mercado russo, sedento de coisas picantes e extravagantes. Também posso sugerir alguns temas para desenvolver na cinematografia, para diversão do público. Por exemplo: empalar um parasita da atualidade sobre uma estaca, conforme o costume turco, fotografá-lo e exibi-lo depois.
Não é exatamente picante, mas é muito edificante."

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

LITERATURA


Tolstói: a literatura que não é literatura 
Em conflito permanente com a sua arte, Tolstói nos mostra como o nexo inevitável entre literatura e vida social pode se transformar numa vantagem artística Rubens Figueiredo Nos 60 anos que vão do início da década de 1850 até 1910, data de sua morte, Liev Tolstói sempre escreveu contos e romances. Ao contrário do que se repete tantas vezes, Tolstói jamais parou de escrever ficção e, ao morrer, deixou inéditas ou em andamento obras-primas como Hadji-Murat ou Padre Sérgio. O mal-entendido resulta, em grande parte, das objeções que o próprio Tolstói, desde jovem, levantou contra a atividade e contra o papel de um escritor no quadro da sociedade russa e do mundo moderno em geral. Se Tolstói nunca fez segredo do seu desconforto no convívio com escritores nem do seu mal-estar por ser autor de romances e contos, suas críticas só se tornaram mais veementes e mais elaboradas a partir do romance Anna Kariênina. Ao redigí-lo (na década de 1870), Tolstói chegou a declarar numa carta: “Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma”. E daí para frente, construiu uma verdadeira rede de questionamentos dirigidos não só contra a literatura, mas contra a arte ocidental, em particular, mais tarde reunidos no livro O que é arte? Drasticamente censurado pelo governo czarista e tratado, ainda hoje, com desdém ou perplexidade, esse livro, no entanto, contém hipóteses que merecem mais atenção. Sobretudo quando Tolstói põe em dúvida a reivindicação, tão cara ao século 20, de uma autonomia para a arte e quando expõe suas desconfianças sobre o significado de tal pretensão. E também quando mostra, como que pelos bastidores das obras, que ao tentar se esquivar de seus efeitos formadores e em última instância educadores, a arte abre espaço para a manipulação e o autoritarismo, com um caráter de classe. A rigor, Tolstói acusa a arte de servir como legitimadora das desigualdades sociais, reforçar as distinções de classe e realimentar o mecanismo que reproduz as estruturas da sociedade. Com isso em mente, podemos entender melhor, por exemplo, a marcante tendência antiartística presente na prosa de Tolstói desde os seus primeiros textos. Os Contos de Sebastópol, por exemplo, escritos na década de 1850, recapitulam episódios da árdua campanha militar russa na Criméia e no Cáucaso, da qual Tolstói participou como oficial. Sem respeitar fronteiras ou hierarquias, esses três contos já misturam ficção, memória, reportagem, etnografia, polêmica e relato de viagem, numa prosa que tende a ser despojada de requintes poéticos e até bruta, na sua objetividade. “Nunca vi lábios cor de coral, mas vejo lábios da cor de tijolo”, diz numa anotação, feita à margem de seus rascunhos de Infância, livro de memórias escrito pouco antes. Em Contos de Sebastópol, a exemplo de obras posteriores, Tolstói mergulha o leitor num ambiente onde estão concentradas e em conflito convenções retóricas diversas. Pois os contos querem ser lidos ora como ficção, ora como etnografia, ora como narrativa de viagem, ora como polêmica política. Em suma, desde o início de sua carreira, Tolstói recusa, tanto para o autor como para o leitor, o privilégio e os prazeres da posição de um observador desinteressado, prazeres supostamente reservados à arte. Em troca, lança sobre o autor e o leitor todo o peso da responsabilidade daquilo que está sendo representado. A fim de minar a autonomia e o distanciamento artístico, sua tática é a de uma arte que é e não é arte, uma literatura que é e não é literatura. Portanto, dizer que Tolstói abandonou a literatura parece uma forma de esquivar-se da consistente crítica que ele formulou ao papel histórico da arte, em geral. Da mesma forma, à luz das circunstâncias históricas, retratá-lo como um doutrinador religioso parece um expediente destinado a neutralizar a potência da sua crítica ao mundo moderno. Na verdade, não se pode fazer justiça a Tolstói, nem aos escritores russos em geral, sem uma ideia da posição da Rússia no mundo, naquela época. O trauma da modernização A introdução de modos de vida capitalistas e europeus na Rússia foi especialmente traumática. Trata-se de uma sociedade que tinha presentes formas de vida próprias, de feição e conteúdo orientais e medievais, e que precisava modernizar-se aos saltos, e não gradualmente, como haviam feito os países ocidentais dominantes, seus modelos. O choque foi ainda maior porque a Rússia era um país orgulhoso de suas tradições, provido de uma religião própria e de formas muito peculiares de organização social. Se a isso acrescentarmos as ambições imperiais dos czares que, a partir do século 17, levaram a Rússia a expandir as fronteiras e russificar populações vizinhas, podemos ter uma ideia da intensidade do conflito vivido por aquela sociedade, ao sentir-se em posição de inferioridade em face dos países ocidentais dominantes. Em contrapartida, a consciência de que era preciso transformar a fundo a sociedade russa gerou um debate intelectual de uma riqueza e de um vigor talvez sem paralelo. Trata-se do confronto entre os projetos da modernidade liberal e de modernidades alternativas (como o historiador Daniel Aarão Reis bem definiu a situação). Em virtude da censura, mas também de fatores culturais mais profundos, os canais de expressão desse debate não eram os mesmos dos países ocidentais e incluíam, com grande peso, a literatura e a teologia. Longe de se limitar às palavras, tal debate, em regra, desaguava numa militância ferrenha, da qual os escritores participavam, sem dissociá-la de cada uma de suas escolhas estéticas. Por outro lado, nesse debate, as linguagens artística e a religiosa contêm muito mais do que aquilo que as sociedades ocidentais estavam habituadas a atribuir a elas. Tais linguagens, na Rússia, não eram um mero disfarce, tampouco uma metáfora, mas sim um veículo poderoso em si mesmo. Pois permitiam pôr em questão os pressupostos não só do discurso da ciência dos países dominantes – sentida como ponta de lança da sua dominação -, como também dessas mesmas linguagens, em seu modelo ocidental. Tolstói, portanto, foi um dos expoentes desse debate nacional e sua literatura, assim como suas polêmicas, não podem ser bem entendidas na ausência desse componente. Da mesma forma que pôs em questão a arte estabelecida, Tolstói foi um crítico ferino da religião institucional. O rito ortodoxo é duramente desmistificado no romance Ressurreição (de 1899), por via da técnica do estranhamento (da qual Tolstói foi o mestre, segundo o teórico russo Chklóvski). Mas já em Guerra e paz e Anna Kariênina, romances anteriores, Tolstói se mostrou implacável com a piedade e a caridade religiosas das classes privilegiadas e com seus modismos religiosos. Por outro lado, as últimas páginas de Ressurreição dão prova de uma desenvoltura nada cerimoniosa com os dogmas, ao emendar livremente as palavras de Cristo, no Evangelho. De resto, será muito difícil encontrar algum teor sobrenatural, milagroso ou criador na forma como Tolstói emprega a palavra “Deus” (a qual, aliás, está longe de ser frequente). Por último, vale a pena sublinhar que Górki, em geral um observador muito agudo, deixou registrada, em suas lúcidas memórias sobre Tolstói, a impressão de que estava diante de um ateu. A ficção como experiência de pensamento De todo modo, o que importa é que literatura e religião, no caso de Tolstói – como em muitos escritores russos -, são linguagens apontadas para uma intervenção concreta nas formas de vida presentes. E os três grandes romances de Tolstói denotam a agudeza crescente da sua visão crítica. Guerra e paz tende a mostrar uma imagem menos questionadora da nobreza russa: em face do inimigo externo – as tropas de Napoleão -, as diferenças internas ficam um pouco na sombra. Por outro lado, os expedientes mentais usados pelos países dominantes para justificar sua agressão e sua superioridade, em relação aos russos, são postos em relevo. Anna Kariênina já examina uma sociedade em crise – conjugal, familiar, cultural e social. As classes populares aparecem como uma brecha, uma janela: ou uma fonte de ar puro e renovador para o herói nobre, ou um índice do conflito social subjacente. Já em Ressurreição, o conflito é aberto, declarado e frontal. O romance trata do mundo prisional e judiciário, no qual as classes populares são segregadas e eliminadas, sob a bênção do discurso racional e humanista da justiça, da lei e do progresso. Todavia, seria enganoso supor um fio de progressão contínua que uniria os três grandes romances. Em Guerra e paz, há mais do que simples prenúncios de tudo aquilo que virá em Ressurreição. Observando em retrospecto, percebe-se que as mesmas questões se apresentavam a Tolstói desde o início e, no máximo, pode-se dizer que as suas hesitações diminuíram com o correr dos anos. Mesmo no aspecto da linguagem, as inquietações do escritor levaram-no, por exemplo, a escrever, quase ao mesmo tempo, obras tão díspares como o conto O prisioneiro do Cáucaso e o romance Anna Kariênina. No conto, Tolstói experimenta uma prosa de fortíssima concisão e simplicidade, com marcante predominância do período simples e sem nenhuma digressão. Um estilo elaborado a custo e com rigor, à luz das narrativas orais populares e dos textos destinados à alfabetização de crianças camponesas – textos que o próprio Tolstói criava, junto com seus pequenos alunos. Em contraste, no romance Anna Kariênina, o autor lança mão de uma frase de arquitetura complexa, longa, desdobrada em ramificações sintáticas de grande fôlego. Qual dos dois escritores é Tolstói? Tudo indica que Tolstói – a quem tantos acusam de doutrinário – não tinha resposta pronta e fixa para as questões que ele mesmo formulava. Em troca, não se cansava de se impor problemas, nem de arriscar respostas fortes. Em boa parte, seus romances e contos constituem experiências de pensamento, testes e hipóteses, experimentos para os quais convoca os seus leitores. As constantes hesitações e dúvidas de seus personagens dão um bom testemunho desse processo. Isso faz mais sentido ainda se pensarmos que, num célebre comentário a Guerra e paz, Tolstói afirmou que todos os livros russos relevantes se desviavam dos modelos literários europeus. Ou seja, os problemas estavam postos, à frente de todos, mas a forma de pensar sobre eles tendia a vir pronta dos países dominantes, não só nos modelos da arte, mas também nos modelos do próprio pensamento social. A resistência de Tolstói à arte literária caminha em paralelo à hipótese de que narrar compreende a possibilidade de criar formas específicas de pensar e de conhecer. É bem possível que por isso ele nunca tenha sido capaz de abandonar a literatura, a despeito das suas repetidas e sinceras objeções e queixas contra a arte. Hoje, quando a literatura carece tanto de encontrar o seu caminho e de renovar o seu papel crítico no mundo contemporâneo, pode ser de grande ajuda reexaminar com olhos menos arrogantes todo o pensamento e o rico percurso de Tolstói.