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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

RELENDO A IGREJA


Francisco e a Revolução de Ternura 
Por Orlando Senna

Durante sua viagem a Cuba e Estados Unidos, o papa Francisco tratou de definir a situação caótica da atualidade planetária. Socialmente, politicamente e economicamente caótica. Mencionou a possibilidade ou a ameaça de uma Terceira Guerra Mundial, com todas as letras, e explicitou o papel que lhe cabe como líder religioso: “romper muros, semear a reconciliação, estender pontes” (a palavra Pontífice tem a ver, exatamente, com construção de pontes). Exemplificou o “momento crítico da História” com alguns de seus aspectos dramáticos: exclusão social, migrações gigantescas, ideologias, conflitos religiosos, banalização da vida humana, indústria e comércio de armas, destruição do meio ambiente acelerando fenômenos climáticos de grande dimensão.
Pregou uma redefinição da política longe do campo de confrontos de interesses partidários e pessoais, a política como “expressão da necessidade de viver como um e construir o bem comum”. Pregou a superação de todos os preconceitos e “olhar mais além das aparências e do politicamente correto”, criticou o capitalismo (como faz desde o início de seu papado) e a “resistência à mudança” por parte dos regimes socialistas. Que nome poderia ser dado às mudanças de comportamento e visão de mundo defendidas por Francisco? Em uma de suas homilias em Cuba, juntou dois conceitos marcantes na cultura cubana para expressar uma síntese de sua nova evangelização: “revolução de ternura”. A revolução como necessidade de mudança imediata e o sentimento que seu compatriota Che Guevara adicionou a essa mudança (“sin perder la ternura”).
Nova Desordem Mundial
Francisco tenta enfrentar a crise civilizatória com a potencialização da espiritualidade. Uma crise que está sendo entendida, e é inteligente que assim seja, como uma reta final em direção à anomia, no sentido da ausência de princípios e regras, de uma sociedade global sem padrões de conduta ou submergida em conflitos e contradições entre as normas estabelecidas no passado. Ou seja, desorientação, alienação, perda de identidade, falta de objetivos claros de superação ou reconstrução. Dias atrás, referindo-se ao Brasil mas ampliando o diagnóstico à situação planetária, o deputado Chico Alencar, do PSOL, citou o conceito “interregno” utilizado por Antonio Gramsci: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.
Émile Durkheim também utilizou o conceito anomia para sociedades que não funcionam harmonicamente, a anomia como uma “patologia”, um comportamento suicida tanto em nível individual como em escala coletiva. Em seu livro Estrutura social e anomia, Robert Merton diz que essa “conduta desviante” é gerada pela descrença ou depressão emocional por não se conseguir alcançar “metas culturais” necessárias ao equilíbrio social. Como superar a soma das tantas tragédias sociais e naturais? Guerras, matanças, macromigrações, economia esfarrapada, fome, pobreza, tsunamis, secas, poluição atmosférica. Voltando a Gramsci, o velho ainda está vivo e sua existência impede o nascimento do novo, que está em concepção.
Contracultura
Francisco esclarece que levar à prática sua Revolução de Ternura significa “emendar relacionamentos quebrados e abrir novas portas para a cooperação dentro de nossa família humana, passos positivos no caminho da reconciliação, da justiça e da liberdade”. Na raiz dessas possibilidades de meter a mão na massa, de ter a sabedoria de agir (Geraldo Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”) está o amor ao próximo, a máxima central dos ensinamentos de Cristo. O inspirador dos muitos cristianismos que existem fez uma síntese absoluta dos Dez Mandamentos do judaísmo, sua cultura de berço, em apenas uma frase, “amar o próximo como a si mesmo”. Uma postura que só se torna válida se o indivíduo amar a si próprio. 

A potencialização da espiritualidade foi retomada em alguns momentos durante os últimos dois mil anos, em algumas tentativas que resultaram em avanços comportamentais e filosóficos do ser humano e outras que foram tragadas pela violência, tão natural ao homem como o amor. A última delas, recente, aconteceu na onda global da contracultura, nas décadas 1960 e 1970, cuja expressão mais visível foi o movimento hippie que se inspirava nas ideias e no comportamento de São Francisco de Assis. O mesmo santo dos pobres, o mesmo padroeiro dos desvalidos, o mesmo missionário que enfrentou a riqueza e a ostentação do Vaticano com suas roupas rasgadas e pés descalços que inspira o Papa, que adotou seu nome como exemplo de humanização e transcendência. Pois disso se trata, a transcendência.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

SALVE A BAHIA SENHOR


NEM A ROSA, NEM O CRAVO
Jorge Amado
As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?
Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u’a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.
Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.
Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo – desde o crepúsculo aos olhos da amada – sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.
Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

sábado, 19 de setembro de 2015

COMPORTAMENTO


O chão e a noção 

Por Orlando Senna

Na natureza material, a corrupção é o processo de destruição de uma coisa ou de um animal. A palavra latina corruption significa decomposição, putrefação. Aristóteles definiu filosoficamente o processo como uma transformação que vai do ser ao não ser. A filosofia também trata, é lógico, da corrupção da alma das pessoas, do processo de apodrecimento da consciência. É a corrupção ética, a insensibilidade com relação aos semelhantes, aos valores da convivência, às leis e a qualquer obstáculo que possa impedir o corrupto de alcançar seu objetivo, de materializar sua ambição invariavelmente relacionada ao poder econômico ou a frustrações psicológicas.
Os estudiosos apontam duas características dessa disfunção humana: as influências culturais e a insaciabilidade. A primeira não tem a ver exatamente com o velho princípio de que ninguém nasce criminoso, inclusive porque há sérias dúvidas sobre isso depois da constatação da sociopatia, uma psicopatologia que gera comportamentos antissocias, os criminosos de nascença. Tem a ver com os estímulos recebidos do meio circundante, da sociedade onde se vive, que pode gerar ou não o comportamento criminoso (e também pode alimentar ou não sociopatias se aceitamos o criminoso de nascença). 
Corruptocracia
A outra característica é a falta de limites, nunca estar satisfeito com o resultado dos crimes já realizados, querer sempre mais, acumular riqueza ou poder simplesmente pelo prazer de ter. É uma escala onde o corrupto se torna irracional, incluindo nessa irracionalidade a certeza da impunidade, o sentimento de que está acima do bem e do mal, ver-se como um herói, em um patamar superior aos bocós e otários que formam o resto da humanidade. A corrupção administrativa, nos órgãos públicos, é a modalidade mais comum dos corruptos que objetivam acúmulo de poder e dinheiro, principalmente se estiver associada à corrupção corporativa, ou seja, ao mercado, aos empresários, à indústria e comércio. 
A corrupção existe em toda parte, em todos os países, e tem um papel importante na crise civilizatória que estamos atravessando. Em alguns países essa prática chega a um ponto em que interfere de maneira decisiva na gestão dos recursos nacionais, na política e no comportamento cotidiano dos indivíduos, um clímax que exige respostas urgentes da sociedade para evitar a corruptocracia, uma forma de governo que causaria a implosão do estado e da convivência da sociedade. A Itália teve de reagir a essa ameaça na década 1990 com a Operação Mãos Limpas, desfazendo um esquema delituoso envolvendo bancos, empresas e a Máfia e resultando no desaparecimento de vários partidos politicos e no fim do período conhecido como Primeira República.
Vinte anos depois o Brasil também se viu obrigado a fazer a sua operação de limpeza, esta que estamos vivenciando no momento, iniciada em 2005 com o Mensalão (compra de votos de parlamentares) e chegando a um grau de fervura com a Lava a Jato, apuração de um esquema bilionário de desvio e lavagem de dinheiro envolvendo dirigentes da Petrobrás, presidentes e altos funcionários das maiores empresas de construção do país, ex-ministros do governo Lula, parlamentares e políticos de quase todos os partidos e bandidos intermediários tipo doleiros e atravessadores. A Petrobrás, maior estatal brasileira, que era a oitava maior empresa do mundo em 2011, hoje ocupa a 416ª posição no ranking.
Fragilidade e oportunismo
A ação dos corruptos ativos e passivos é devastadora, como se vê, e investigações judiciais de grande envergadura se faziam necessárias desde muito tempo. Elas acontecem no Brasil em um momento em que o país está atravessando uma grave crise econômica e os políticos, a mídia e boa parte da classe média acham que é uma oportunidade para alimentar uma crise política, com a intenção de interromper o governo da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores. É como brincar com fogo dentro de um paiol, é como se equilibrar em corda bamba sobre um abismo. Por sua vez, o governo não consegue erguer-se da sua fragilidade e retomar a escala de grandeza dos programas de inclusão social e cultural iniciados por Lula, a base de sua popularidade. 
Com um governo sem chão e uma oposição sem noção, o trabalho do Poder Judiciário contra a corrupção não está sendo fácil e encontrará mais dificuldades à medida que as investigações e prisões aumentem, como é a tendência, e novos figurões da política e do empresariado sejam denunciados e sentenciados. Paira no ar a possibilidade de choque de poderes contrapondo o Legislativo ao Judiciário, como nos deu a entender a atitude do senador e ex-presidente Collor na sabatina do Senado ao procurador-geral da República Rodrigo Janot (lembrando que Collor é um dos grandes senhores da corrupção no Brasil).
Coração e mente
É um cenário obviamente dramático mas não se trata de uma situação sem saída, não é a sinopse de uma tragédia e boa parte dos brasileiros mantém intacta a esperança ou até a certeza de que a situação será superada, que em pouco tempo o País retomará seu ritmo de crescimento econômico e essa será a solução: em uma economia saudável a crise política será diluída. Pode até ser assim, mas para isso o Brasil tem de chegar lá, à boa saúde econômica, e para chegar lá o governo tem de pavimentar seu chão, tem de saber governar, e a oposição deixar de ser oportunista em um momento que exige civismo e comprometimento de todos pelo bem de todos.
Nessa salada de governo fraco, oposição irresponsável e sociedade em suspense, o único aspecto positivo da crise é a apuração em alta escala dos delitos de corrupção. Estamos demonstrando a nós mesmos e ao mundo que, apesar de tudo, podemos ser um país sério, ao contrário do que teria dito o general De Gaulle durante a Guerra da Lagosta nos anos 1960. Que podemos nos superar, como já aconteceu no passado em crises piores do que a atual.
Mas, para isso, temos de fazer valer o melhor do que nós somos e que às vezes nos esquecemos: que o brasileiro ame o brasileiro, um amor acima de partidos, ideologias, religiões, ódios, vinganças, descrenças, empáfias, preconceitos. Para tanto não é necessário adotarmos a polêmica adjetivação de homem cordial, ou seja, regido pelo coração, lançada por Sérgio Buarque de Holanda na década de 1930. O que precisamos é ser inteligentes.

* Link para outros textos de Orlando Senna no Blog Refletor    http://refletor.tal.tv/tag/orlando-senna

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A SABER

BRASIL OCULTO





Alguns Filmes Europeus e Japoneses que devem ser assistidos para quem gosta de cinema.
1 — A Aventura (1960), Michelangelo Antonioni
2 — A Bela e a Fera (1946), Jean Cocteau
3 — A Grande Ilusão (1937), Jean Renoir
4 — A Regra do Jogo (1939), Jean Renoir
5 — A Terra Treme (1948), Luchino Visconti
6 — Aquele que Sabe Viver (1962), Dino Risi
7 — Aguirre, a Cólera de Deus (1972), Werner Herzog
8 — Antes da Revolução (1964), Bernardo Bertolucci
9 — No Decurso do Tempo (1976), Wim Wenders
10 — O Bando à Parte (1964), Jean-Luc Godard
11— Contos da Lua Vaga (1953), Kenji Mizoguchi
12 — Atirem no Pianista (1960), François Truffaut
13 — Week-end à Francesa (1967), Jean-Luc Godard
14 — Os Eternos Desconhecidos (1958), Mario Monicelli
15 — Blow-Up — Depois Daquele Beijo (1966), Michelangelo Antonioni
16 — Humberto D. (1952), Vittorio De Sica
17 — Ikiru (1952), Akira Kurosawa
18 —Ladrões de Bicicletas (1948), Vittorio De Sica
19 — Paisà (1946), Roberto Rossellini
20 — Metrópolis (1927), Fritz Lang
21 — Napoleão (1927), Abel Gance
22 — Nosferatu (1922), F.W. Murnau
23 — Acossado (1960), Jean-Luc Godard
24 — O Amigo Americano (1970), Wim Wenders
25 — O Açougueiro (1970), Claude Chabrol
26 — O Casamento de Maria Braun (1979), Rainer Werner Fassbinder
27 — Dr. Mabuse, o Jogador (1922), Fritz Lang
28 — O Enforcamento (1968), Nagisa Oshima
29 — O Enigma de Kaspar Hauser (1974), Werner Herzog
30 — O Intendente Sansho (1954), Kenji Mizoguchi
31 — O Medo Consome a Alma (1974), Rainer Werner Fassbinder
32 — O Mercador das Quatro Estações (1971), Rainer Werner Fassbinder
33 — Os Incompreendidos (1959), François Truffaut
34 — O Boulevard do Crime (1945), Marcel Carné
35 — Os Sete Samurais (1954), Akira Kurosawa
36 — Rocco e seus Irmãos (1960), Luchino Visconti
37 — Roma, Cidade Aberta (1945), Roberto Rossellini
38 — Céu e Inferno (1963), Akira Kurosawa

39 — Viagem a Tóquio (1953), Yasujiro Ozu

sábado, 12 de setembro de 2015

UM CONTO DE REIS


PRAZER DO CORAÇÃO, PRAZER DO OLHO.
 Fábio Carvalho

De pé na jangada em alto mar, Guará fazendo o Jacaré, diz com os braços erguidos: justiça e liberdade!! Na sequência com mais ênfase: justiça e liberdade!!! Depois, ainda na jangada já sentado, tira o chapéu e num tom branco Guará, diz olhando o céu: para o jangadeiro se orientar basta- lhe o sol, o vento e as estrelas. Muda o olhar para o outro lado, agora em direção ao mar: para o jangadeiro a bússola é um instrumento de dar dó, de dar pena. A primeira cena que escrevi com diálogos para o filme As Banhistas, notando-se que não é a primeira cena do filme, foi a seguinte: ao fundo cinco banhistas e o Bacurinha, brincam na água que bate nos joelhos, em primeiro plano, deitadas na relva da margem, conversando, estão Anais de lado com a mão direita apoiando o queixo e a esquerda acariciando os cabelos da Fernanda que está deitada de costas, com as duas mãos atrás da cabeça, como na tela As Grandes Banhistas de 1918 do Renoir. Fernanda: o babaca disse, morrendo de rir, achando que eu me derreteria todinha, que é conhecido pela sua perícia ao dirigir e sua violência para com as mulheres, vê só! Anais fazendo cara de nojo: além de babaca ainda é metido a cafajeste da pior espécie. Fernanda com leve melancolia: é... e o pior é que eu gosto dele. Após uma pausa, fala dividindo as sílabas lentamente: ba ba ca! Dá um sorrisinho sacana. A câmera se afasta lateralmente e vai se aproximado das outras brincando na água. No outro filme, o Arrigo vestido de Welles, com um charuto na boca, uma garrafa de Chamgpanhe numa das mãos e uma taça cheia, quase derramando na outra, fala com a voz rouca para a Mariana vestida de baiana: gostaria de ser poeta, mas tenho medo de não consegui-lo. Hoje é um dia de Domingo com um clima estranho, os bancos vinte quatro horas estão fora do ar, conexão na interneti está difícil, falta táxi pelas ruas, pouca gente caminhando, minha janela que dá para a Serra do Curral é sobrevoada por quatro helicópteros initeruptamente. Um silêncio chato permeado vez por outra por sirenes, céu de Brigadeiro com ventinho gelado, nada da efusão costumeira do Domingo é dia de Futebol que o Pacífico Mascarenhas compôs para o Milton cantar. Se descer dos céus o dragão lunar, manda me chamar pelo amor de Deus! Ontem na noite de encerramento do festival de cinema de Gramado, transmitida ninguém sabe se ao morto ou ao vivo, as pessoas que pareciam lá presentes com microfones abertos, começando pelo Barretão, conclamavam nós brasileiros lutarmos de corpo e alma para não deixarmos que aconteça no Brasil mais um golpe de estado. Repica aí que eu quero ver, que o amor veio embolar mais um. A primeira vez que vi essa mulher, foi como um relâmpago. Tudo bem, mas contanto que seja música. Trabalho por entre as frestas, onde a voz começa a dançar, o corpo começa a cantar, o teatro se torna cinema. Bela frase da Meredith Monk, filha do grande Thelonius Monk, tentando definir sua artemúsica.  Pra mim definiu bem.  Você tão linda neste vestido, você provoca minha libido. Uma voz sussurrante me disse novamente ao pé do ouvido: vem que te quero! Não era esquizofrenia, como podia parecer, era como sempre, um sonho real que nunca me faltava, fazia anos. Sempre perto e ao mesmo tempo longeva. Só eu poderia saber o quanto aquela voz me perseguia, com minha total aquiescência. A lua azul brilhou novamente no final de agosto, agora em peixes, decifra-me ou nem te devoro. Dois gatos pingados fora da lei. Sobe e desce muros fora da lei. Ninguém sabe onde entrei. Todas as flores floriram antecipadas, achando que já era a Primavera, devido ao calor que fazia no Inverno dos trópicos a natureza entrou como o toldo em confusão mental. Bom também, apesar de não ser como o esperado, assim corre a vida sem que você perceba, ela a percepção só chega depois que já passou da meia noite naquela hora gloriosa da manhã de Setembro, quando já era mais uma Quinta-Feira. No Rio continua serenando, ainda bem, me disse do além o violão sofisticadíssimo do Helinho Quirino, figura grande doce e inesquecível. Como não tenho mais dinheiro, o remédio é esperar, bate palma palma palma, bate pé pé pé, caranguejo só é peixe na vazante da maré, é melhor esperar sentado do que esperar em pé pra ver, pra ver Juliana. Uma chuvinha fininha caiu molemente sinuosa, num tom céu aberto durante à tarde das revelações alquímicas, intra-musicais, agradavelmente, só os ouvidos mais argutos poderiam perceber a presença do seu leve oscilar. Chegou chuva enfim. Os astros são meus únicos aliados. Bradou Arrigo como Welles para Helena como tradutora, no terraço acima da pérgula da piscina do Copacabana Palace. O cinema é um fluxo constante de sonhos, mais baixo proclama Welles vestido de Arrigo, enquanto joga um barril de pólvora ao mar. Sua camêra insaciável mostrará ao mundo que na praia de Iracema existe um coqueiral que enche de ternura o viajante. Podemos dizer claramente que o cinema brasileiro está tão ruim que só pode melhorar, pior é impossível. Miroca e Seu Cuco Caduco, era o título que me encantou, não sei o porquê, da animação brasileira concorrente ao prêmio do festival que não fui. Serguei postou no seu face, que li mesmo sem tê-lo: Vi duas mulheres se beijando no meio da rua. Não sei se isto está certo. Beijar na calçada é mais seguro, bicho! Stéphane Audram contou que junto a Delphine Seyrig, vestidas magnificamente por Karl Laguerfeld, com belos e generosos decotes às costas, dirigiram-se muito timidamente para pedir ao Dom Luís que as filmasse de costas. Com os olhos entomologistas, ele, depois de uma pausa respondeu: Tudo bem, desde que você me dê uma garrafa de whisky e você uma de champagnhe. Filmaram então Fernando Rey com um revólver em riste passando por meio das duas decotadas na festa. De mais uma bela broma, uma bela cena se deu. Doutor Sette publicou no Blog, O Caso Da Aranha, escrito pelo extraordinário Mário de Andrade, que termina assim: A aranha deu de passear, eu olhando. Se ela chegar mais perto, mato mesmo. Não chegou. Fez um reconhecimentozinho e se escondeu. Deitei, interrompi a luz e meu cansaço adormeceu, organizado pela razão. Faz pouco abri os olhos.  A aranha estava sobre mim, enorme, lindos olhos, medonha, temível, eu nem podia respirar, preso de medo.  A aranha falou: “Je t’aime”.



quarta-feira, 9 de setembro de 2015

CINEMA

“QUEREMOS, DE FATO, É QUE AS IDÉIAS VOLTEM A SER PERIGOSAS.”
De um MANIFESTO SITUACIONISTA
“O ATOR COMO POESIA”
LUIZ ROSEMBERG FILHO

Ora, como escrever um texto asfixiante para ser representado com leveza? Poderia pensar nos muitos cadáveres da política, ou nos ratões da mídia. Vago entre dispersões, conflitos e dissimulações. Fazer falar os personagens A, B ou C sem cair na mesmice televisiva, é um desafio de superação da imobilidade reinante onde a aparência do real é que serve como referência turística de mercado do cinema a TV, essencializando produtos, espetáculos, mediocridades e fascismos. Por ironia me permito usar o teatro no cinema, e o cinema no teatro para chegarmos ao teatrão, que é como entendo as guerras e suas tantas mortes e destruição: um teatrinho de bufões! As palavras me servindo como análise ao anti-heroísmo das tantas imagens das guerras mostradas todos os dias pela TV.
Nietzsche em “A Origem da Tragédia” diz: “Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento.” Sair voando pelos ares não nos diz alguma coisa? Não seria um olhar poético sobre a arte do Ator/Atriz? E como seria isso através de um método catártico? Talvez a duplicidade da descoberta do ator/atriz. A sua identidade e a dos seus personagens que vai representando ao longo da vida. E a cada autor, uma nova projeção de dúvidas e afetos num tempo de obscurantismos e medos. De seres baixos ligados ao poder e a morte. Ainda assim divas como Cacilda Becker, Glauce Rocha, Isabel Ribeiro, Célia Helena, Lilian Lamertz, Lélia Abramo, Ruth de Souza , Analu Prestes... 
Como diz Stanislawki no seu “Preparação do Ator”: “O ator tem plena liberdade de criar seu sonho, desde que este não se extravie muito do pensamento e do tema básico do dramaturgo.” E foi por aí que fomos levando nossos ensaios tanto em “Dois Casamento$” como no “Guerra do Paraguay”. O ator/atriz se redescobrindo como ser humano em suas dúvidas, sonhos e personagens. E entre enfoques antagônicos, dando materialidade as palavras dos muitos tipos e autores que vai representando. Sua grandeza é realizar-se como condutor de linguagens poéticas. Gide falando com propriedade de Dostoiewski, afirmava: “Não há verdadeira obra de arte em que não entre a colaboração do demônio.” 
Ou seja, ultrapassando barreiras da sua formação, o Ator/Atriz evoca seus sonhos, dúvidas e demônios. Seu gozo é ser a própria obra de arte seja representando, “Antígona”, “Édipo”,“Macbeth”, “Calígula”, Carminha , Jandira ou o Soldadinho Alê, na nossa visão da “Guerra do Paraguay”. O ator/atriz tornando-se criação viva, dando-lhes ultrapassagens físicas além de suas personagens que vai vivendo, construindo e representando seja lá onde for, pois está além de todo e qualquer limite. Sua missão está na essência de todos os abismos. Como por exemplo movimentar-se com liberdade poética, criando na escuridão das idéias de um país solar. Tendo o corpo tanto no filme, como na peça se recriando no tempo-espaço, não se deixando aprisionar por uma infinidade de palavras e situações aparentemente iguais, mas diferentes! E num movimento onde nada se repete, tornam-se eixo de infinitas reflexões. Atuando numa não-fronteira do certo e do errado, e ousando nas tantas incertezas da vida e do tempo de cada uma. E assim fomos pouco a pouco chegando em “Dois Casamento$” no cinema, no teatro e na “Guerra do Paraguay”, numa desobediência permanente e vibrante tanto a deus como ao diabo. 
Vale afirmar as diferentes posturas das duas Atrizes. Se num primeiro momento Patrícia/Carminha se assume como força de dimensões transgressoras. Ana/Jandira vive seus pobres gestos cotidianos evocando um corpo sem uma só sensação poética transgressora. É uma simples bancária que só foi educada para trabalhar e casar, sem história própria alguma! Abolida as hierarquias da moral, ambas se fundem, e se redescobrem como mulheres dando dimensão significativa tanto a vida como as suas emoções, tornando-se então sensibilidades em permanente expansão. O filme e a peça são para mim como desnudamento da alma humana, e um profundo encontro sensorial experimental com o ser Mulher! E nesse sentido os experimentos são, ainda que cênicos, mutáveis como a própria vida. Todos deram expressividade poética a materialidade de suas funções. A uma feliz desconstrução do corpo como consciência do horror do seu não-prazer, enquanto personagens. Duas grandes Atrizes se doando a uma efêmera constelação de movimentos arbitrários, dentro do comum.
Embrenhamo-nos todos no desconhecido das angustias humanas das personagens e da história. E “em torno de cada imagem escondem-se outras. Forma-se um campo de analogias, simétricas e contraposições.” Parece que as palavras de Ítalo Calvino se encaixam no nosso terno processo de descobertas. Com o ator/atriz tornando-se assim uma projeção de encontros, trocas e afetos. Todo trabalho é uma aprendizagem de renascimentos rumo a transcendência de todo e qualquer compromisso com as punitivas leis do mercado. Ou seja, na boa instrumentalidade do corpo e da voz, reside o seu ofício metaforseando-se em associações com muitos textos, questionando o status quo e fazendo da realidade suas dúvidas e movimentos. Não o ator/atriz como hipnotizador só interessado em se afirmar, mas sim em se superar a cada trabalho e dando significação substancial a vida tanto das suas muitas personagens, como dos espectadores/público! 
Confesso o meu encantamento com quase todos os atores e atrizes com quem tive a sorte de trabalhar nos três últimos trabalhos: um média e dois longas. Através deles pude avançar nas minhas tantas subjetividades, essencializando sempre uma vida melhor para todos. E num ambiente escuro significativo, com poucos ou nenhum objeto. Remodelado assim pelo movimento das duas belas e boas atrizes em “Dois Casamento$”, onde conseguem transformaram o espaço em personagem, assim como as imagens de Vinicius Brum, a música de Rodrigo Marçal e a montagem criativa de Joana Collier. Desse modo, o investimento é na lapidação poética das personagens em estado bruto representando com vigor criativo raro, impulsos e potências sensíveis. Nada e tudo na feitura das ações anti-hipnotizadoras. Patrícia Niedermeier e Ana Abbott que dão materialidade musical doída as suas personagens, levando-as ao infinito do sofrer e do gozar! 
Eugenio Barba com muita propriedade afirma: “Para o ator, o personagem é um instrumento para agredir a si mesmo, para atingir alguns recessos secretos da sua personalidade, para por a nu aquilo que ele tem de mais íntimo. É um processo de autopenetração, de excesso, de demasia, sem o qual não pode haver criação profunda, contato com os outros, possibilidade de formular as interrogações angustiosas que voluntariamente evitamos para defender o nosso limbo cotidiano. Libertando-se da canga que o define socialmente e de maneira estereotipada, o ator pratica um ato de sacrifício, de renúncia, de humildade. Esta sucessão de feridas íntimas vitaliza o seu subconsciente e lhe permite uma expressividade obtida com o cálculo frio ou a determinação com o personagem. Violentando os centros neufrálgicos da sua psique e oferecendo-se com humildade a este sacrifício, o ator – assim como o espectador que deseja entregar-se – supera a sua alienação e os seus limites pessoais e vive um clímax, um “ápice” que é purificação, aceitação da própria fisionomia interior, libertação.” 
Talvez esse seja o esforço de todos na construção de anti-heróis! As duas personagens se desenquadram da normalidade do certo e do errado, imperando a ótica analítica do risco. Risco da dilatação da experiência. A experiência de não serem idiotas da corte do capital. E entre fragmentos: “ o ator mostrando-se em sua multiplicidade e em sua potência”. Enfatizando-se tanto o movimento como a palavra e a imobilidade. Para mim Patrícia e Ana são deusas, assim como foi Analu Prestes, Ana Maria Miranda, Kátia Grumberg, Olivia Zizmann... Mais que atrizes ou personagens, delicados seres humanos! Mas sendo ainda, imagens de sonhos concretizados. Que num processo anti-digestivo marcam cada palavra, cada silêncio, cada imagem... Se exigindo como atrizes, o cosmos! Carminha e Jandira se remetem a investigações corporal e vocal. Poderia ser só cinema mas é teatro e vida! Muito além do falso sucesso da representação burguesa, muito comum na TV. 
E se existe santidade em determinados encontros, me refiro ao trabalho com Luciana Froes, Patrícia, Ana, Alexandre Dacosta e Chico Dias...de “Momentos”, “Dois Casamento$”, “Guerra do Paraguay” até o teatro, vivemos todos momentos sagrados de sonhos e encantamentos. E se a TV infantiliza o trabalho do ator/atriz tornando-os uma mercadoria de segunda descartável, nosso mergulho é o inferno da fisicalidade do corpo e das palavras corretas, ou mesmo não. Remexemos tempos, dores e subjetividades através das quais nos abandonamos como materialidade de sonhos marcantes na vida de cada um. Em “Dois Casamento$” o não-tempo é o princípio fundamental, assim como o tempo poético é na “Guerra do Paraguay”. Ambos se deixam construir desordenadamente, digamos é uma espécie de materialidade de histórias diferentes, mas próximas:o casamento e as guerras! E que através de narrativas lúdicas se deixam levar pela imaginação dos encontros e desencontros de experimentações performáticas. Ressignificando claro, tanto o casamento conservador-religioso, como toda e qualquer guerra. Portanto, reencarnações de idiotismos! 
O corpo apenas como recipiente dos tantos horrores políticos desse nosso tempo. A crueldade no lugar do prazer. A deformidade dos afetos no lugar da vida... Claro que nosso próximo projeto fechando essa trilogia , deverá se chamar “Filme Pornô” . Filmamos o casamento, a guerra e agora uma comédia pornográfica como epílogo. A ação pornográfica da política a cultura passando pelas religiões de resultado: padres, pastores, ovelhas e outras muambadas! Muambadas partilhando do princípio comum da “nota”! E entre escombros, a vacuidade do dinheiro no jogo da imobilidade frente a TV! E a quem devemos endereçar nossas angustias e tristezas com o país que é belo por fora e podre por dentro? Ou seja, recusamos o modelo agonizante e nauseante da religião e da mídia engajada na podridão das idéias e dos sonhos, concentrando nossa atenção numa nova concepção e dinâmica do humor. Talvez uma bem humorada homenagem a Commedia dell’Arte. 
Freud com muita propriedade afirmava: “...habituamo-nos a ver na pulsão um fator que força no sentido da mudança e do desenvolvimento, e agora vemo-nos obrigados a reconhecer nela justamente o contrário, a expressão da natureza conservadora do ser vivo.” E é onde se fundem o trabalho das atrizes e atores de “Dois Casamento$” e “A Guerra do Paraguay”: edificando e estabelecendo não a representação conservadora da mesmice televisiva, mas indo muito além delas próprias enquanto seres criativos. O ato de criação a disposição dos encontros, dúvidas e paixões impregnados de luz e subjetividades pulsantes. E como bem diz Stanislawski: “...mais importante do que as ações propriamente ditas é a sua veracidade e a nossa crença nelas”. 
Sempre impressionou-me a criatividade sensual de ambas as atrizes dando as suas personagens estilos elevados de encantamentos e mistérios nem sempre sendo possíveis de serem revelados ao longo da vida. Como duas grandes atrizes historicizam seus personagens sem histeria alguma. Confesso-lhes a minha paixão ilimitada! Patrícia Niedermeier e Ana Abbott em “Dois Casamento$” me fizeram imaginar e acreditar em nossos tantos sonhos e desejos liberados, fluindo rumo ao arbitrário em zonas não acessíveis a deus ou ao diabo. De fato uma realidade para poucos. E onde o corpo pensante se confunde com a cabeça na sua elaboração das palavras. Não mais o ator/atriz como utensílio doméstico na TV, mas rodopiando entre a seriedade e as suas infinitas expressões e excessos. As duas atrizes como texto e história numa espécie de desestruturação de certezas e dúvidas. E na intensidade poética de ambas, o lado inútil de cada um sendo rasgados pela fé cênica. Cada uma delas transformando a trivialidade das idéias, aqui e ali, em encontros afetivos profundos, sofridos e criativos. Duas grandes atrizes que se encontram repletas de sonhos, sons e fúria!

domingo, 6 de setembro de 2015

MÚSICA


SINTAGMA
Paulo Mota


Entre o corpo humano e o corpo do dispositivo sonoro se interpõe a inteligibilidade conceitual, com o propósito de condicionar o sensível do som sobretudo às formas musicais. No entanto, a inteligibilidade corporal não se limita à construção conceitual: o corpo humano possui, também, impregnado em seus movimentos direcionados à operacionalidade das máquinas sonoras, uma inteligibilidade intrínseca à manualidade envolvida neste processo: as māos pensam, com certa autonomia relativamente à inteligibilidade conceitual, mesmo carregando resquícios desta última. 

Via de regra, os sons, sejam eles instrumentais, acústicos ou eletrônicos, se sujeitam aprioristicamente à inteligibilidade das formas, aos sistemas composicionais (tonalidade, serialismo, atonalismo etc.), aos gêneros e estilos musicais; ou seja, condicionam-se às anterioridades inteligíveis.

Sintagma inclui o registro de performances em tempo real de sintetizadores analógicos, virtuais e analógico-virtuais fundamentadas em um processo que inclui a síntese sonora em tempo real e ao posterior registro em suporte fixo. Na verdade, esse processo envolve uma relativa decomposição das frequências e timbres, no qual os demais parâmetros musicais - altura, dinâmica e ritmo -, por sua vez, são condicionados a aplicação desse processo de decomposição, propriamente dito, aliado à espacialização sônica. Em decorrência, altura, dinâmica e ritmo tornam-se auditivamente secundários no processamento decomposicional dos timbres e frequências, e a espacialização reforça e reativa a dissipação desses parâmetros. Em primeira e última instâncias, os componentes eletrônicos (constituintes dos módulos que integram os sintetizadores), atuam na microestrutura das sonoridades e como parâmetros de modificação das mesmas. Tal característica solicita do músico uma operacionalidade que implica na interação sinestésica entre a manualidade e a interface do dispositivo, um procedimento que, por sua vez, deflagra uma permanente interatividade entre os componentes eletrônicos dos módulos que agem na tranformação da síntese de-composicional dos sons.

Em Sintagma, o sensível sonoro surge como prioridade estética e se superpõe auditiva e perceptivelmente aos condicionadores estético-inteligíveis imputados aos sons: a dignidade do sensível sonoro se esquiva da "maquiagem", da "lapidação" e da "higienização" sônicas protagonizadas pela inteligibilidade musical. Portanto, são os próprios sons que sucitam o risco e a experimentação (e não necessariamente uma anterioridade inteligível), em um processo contínuo e transformacional dos componentes microestruturais que os constituem. (Paulo Motta, 03.09.2015)