“QUEREMOS, DE FATO, É QUE
AS IDÉIAS VOLTEM A SER PERIGOSAS.”
De um MANIFESTO SITUACIONISTA
“O ATOR
COMO POESIA”
LUIZ
ROSEMBERG FILHO
Ora, como escrever um texto asfixiante para ser representado com
leveza? Poderia pensar nos muitos cadáveres da política, ou nos ratões da
mídia. Vago entre dispersões, conflitos e dissimulações. Fazer falar os
personagens A, B ou C sem cair na mesmice televisiva, é um desafio de superação
da imobilidade reinante onde a aparência do real é que serve como referência
turística de mercado do cinema a TV, essencializando produtos, espetáculos,
mediocridades e fascismos. Por ironia me permito usar o teatro no cinema, e o
cinema no teatro para chegarmos ao teatrão, que é como entendo as guerras e suas
tantas mortes e destruição: um teatrinho de bufões! As palavras me servindo
como análise ao anti-heroísmo das tantas imagens das guerras mostradas todos os
dias pela TV.
Nietzsche em “A Origem da Tragédia” diz: “Cantando e dançando, manifesta-se o
homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a
falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala
o encantamento.” Sair voando pelos ares não nos diz alguma coisa? Não seria um
olhar poético sobre a arte do Ator/Atriz? E como seria isso através de um
método catártico? Talvez a duplicidade da descoberta do ator/atriz. A sua
identidade e a dos seus personagens que vai representando ao longo da vida. E a
cada autor, uma nova projeção de dúvidas e afetos num tempo de obscurantismos e
medos. De seres baixos ligados ao poder e a morte. Ainda assim divas como
Cacilda Becker, Glauce Rocha, Isabel Ribeiro, Célia Helena, Lilian Lamertz,
Lélia Abramo, Ruth de Souza , Analu Prestes...
Como diz Stanislawki no seu “Preparação do Ator”: “O ator tem plena liberdade
de criar seu sonho, desde que este não se extravie muito do pensamento e do
tema básico do dramaturgo.” E foi por aí que fomos levando nossos ensaios tanto
em “Dois Casamento$” como no “Guerra do Paraguay”. O ator/atriz se
redescobrindo como ser humano em suas dúvidas, sonhos e personagens. E entre
enfoques antagônicos, dando materialidade as palavras dos muitos tipos e
autores que vai representando. Sua grandeza é realizar-se como condutor de
linguagens poéticas. Gide falando com propriedade de Dostoiewski, afirmava:
“Não há verdadeira obra de arte em que não entre a colaboração do demônio.”
Ou seja, ultrapassando barreiras da sua formação, o Ator/Atriz evoca seus
sonhos, dúvidas e demônios. Seu gozo é ser a própria obra de arte seja
representando, “Antígona”, “Édipo”,“Macbeth”, “Calígula”, Carminha , Jandira ou
o Soldadinho Alê, na nossa visão da “Guerra do Paraguay”. O ator/atriz
tornando-se criação viva, dando-lhes ultrapassagens físicas além de suas
personagens que vai vivendo, construindo e representando seja lá onde for, pois
está além de todo e qualquer limite. Sua missão está na essência de todos os
abismos. Como por exemplo movimentar-se com liberdade poética, criando na
escuridão das idéias de um país solar. Tendo o corpo tanto no filme, como na
peça se recriando no tempo-espaço, não se deixando aprisionar por uma
infinidade de palavras e situações aparentemente iguais, mas diferentes! E num
movimento onde nada se repete, tornam-se eixo de infinitas reflexões. Atuando
numa não-fronteira do certo e do errado, e ousando nas tantas incertezas da
vida e do tempo de cada uma. E assim fomos pouco a pouco chegando em “Dois
Casamento$” no cinema, no teatro e na “Guerra do Paraguay”, numa desobediência
permanente e vibrante tanto a deus como ao diabo.
Vale afirmar as diferentes posturas das duas Atrizes. Se num primeiro momento
Patrícia/Carminha se assume como força de dimensões transgressoras. Ana/Jandira
vive seus pobres gestos cotidianos evocando um corpo sem uma só sensação
poética transgressora. É uma simples bancária que só foi educada para trabalhar
e casar, sem história própria alguma! Abolida as hierarquias da moral, ambas se
fundem, e se redescobrem como mulheres dando dimensão significativa tanto a
vida como as suas emoções, tornando-se então sensibilidades em permanente
expansão. O filme e a peça são para mim como desnudamento da alma humana, e um
profundo encontro sensorial experimental com o ser Mulher! E nesse sentido os
experimentos são, ainda que cênicos, mutáveis como a própria vida. Todos deram
expressividade poética a materialidade de suas funções. A uma feliz
desconstrução do corpo como consciência do horror do seu não-prazer, enquanto
personagens. Duas grandes Atrizes se doando a uma efêmera constelação de
movimentos arbitrários, dentro do comum.
Embrenhamo-nos todos no desconhecido das angustias humanas das personagens e da
história. E “em torno de cada imagem escondem-se outras. Forma-se um campo de
analogias, simétricas e contraposições.” Parece que as palavras de Ítalo
Calvino se encaixam no nosso terno processo de descobertas. Com o ator/atriz
tornando-se assim uma projeção de encontros, trocas e afetos. Todo trabalho é
uma aprendizagem de renascimentos rumo a transcendência de todo e qualquer compromisso
com as punitivas leis do mercado. Ou seja, na boa instrumentalidade do corpo e
da voz, reside o seu ofício metaforseando-se em associações com muitos textos,
questionando o status quo e fazendo da realidade suas dúvidas e movimentos. Não
o ator/atriz como hipnotizador só interessado em se afirmar, mas sim em se
superar a cada trabalho e dando significação substancial a vida tanto das suas
muitas personagens, como dos espectadores/público!
Confesso o meu encantamento com quase todos os atores e atrizes com quem tive a
sorte de trabalhar nos três últimos trabalhos: um média e dois longas. Através
deles pude avançar nas minhas tantas subjetividades, essencializando sempre uma
vida melhor para todos. E num ambiente escuro significativo, com poucos ou nenhum
objeto. Remodelado assim pelo movimento das duas belas e boas atrizes em “Dois
Casamento$”, onde conseguem transformaram o espaço em personagem, assim como as
imagens de Vinicius Brum, a música de Rodrigo Marçal e a montagem criativa de
Joana Collier. Desse modo, o investimento é na lapidação poética das
personagens em estado bruto representando com vigor criativo raro, impulsos e
potências sensíveis. Nada e tudo na feitura das ações anti-hipnotizadoras.
Patrícia Niedermeier e Ana Abbott que dão materialidade musical doída as suas
personagens, levando-as ao infinito do sofrer e do gozar!
Eugenio Barba com muita propriedade afirma: “Para o ator, o personagem é um
instrumento para agredir a si mesmo, para atingir alguns recessos secretos da
sua personalidade, para por a nu aquilo que ele tem de mais íntimo. É um
processo de autopenetração, de excesso, de demasia, sem o qual não pode haver
criação profunda, contato com os outros, possibilidade de formular as
interrogações angustiosas que voluntariamente evitamos para defender o nosso
limbo cotidiano. Libertando-se da canga que o define socialmente e de maneira
estereotipada, o ator pratica um ato de sacrifício, de renúncia, de humildade.
Esta sucessão de feridas íntimas vitaliza o seu subconsciente e lhe permite uma
expressividade obtida com o cálculo frio ou a determinação com o personagem.
Violentando os centros neufrálgicos da sua psique e oferecendo-se com humildade
a este sacrifício, o ator – assim como o espectador que deseja entregar-se –
supera a sua alienação e os seus limites pessoais e vive um clímax, um “ápice”
que é purificação, aceitação da própria fisionomia interior, libertação.”
Talvez esse seja o esforço de todos na construção de anti-heróis! As duas
personagens se desenquadram da normalidade do certo e do errado, imperando a
ótica analítica do risco. Risco da dilatação da experiência. A experiência de
não serem idiotas da corte do capital. E entre fragmentos: “ o ator
mostrando-se em sua multiplicidade e em sua potência”. Enfatizando-se tanto o
movimento como a palavra e a imobilidade. Para mim Patrícia e Ana são deusas,
assim como foi Analu Prestes, Ana Maria Miranda, Kátia Grumberg, Olivia
Zizmann... Mais que atrizes ou personagens, delicados seres humanos! Mas sendo
ainda, imagens de sonhos concretizados. Que num processo anti-digestivo marcam
cada palavra, cada silêncio, cada imagem... Se exigindo como atrizes, o cosmos!
Carminha e Jandira se remetem a investigações corporal e vocal. Poderia ser só
cinema mas é teatro e vida! Muito além do falso sucesso da representação
burguesa, muito comum na TV.
E se existe santidade em determinados encontros, me refiro ao trabalho com
Luciana Froes, Patrícia, Ana, Alexandre Dacosta e Chico Dias...de “Momentos”,
“Dois Casamento$”, “Guerra do Paraguay” até o teatro, vivemos todos momentos
sagrados de sonhos e encantamentos. E se a TV infantiliza o trabalho do
ator/atriz tornando-os uma mercadoria de segunda descartável, nosso mergulho é
o inferno da fisicalidade do corpo e das palavras corretas, ou mesmo não.
Remexemos tempos, dores e subjetividades através das quais nos abandonamos como
materialidade de sonhos marcantes na vida de cada um. Em “Dois Casamento$” o
não-tempo é o princípio fundamental, assim como o tempo poético é na “Guerra do
Paraguay”. Ambos se deixam construir desordenadamente, digamos é uma espécie de
materialidade de histórias diferentes, mas próximas:o casamento e as guerras! E
que através de narrativas lúdicas se deixam levar pela imaginação dos encontros
e desencontros de experimentações performáticas. Ressignificando claro, tanto o
casamento conservador-religioso, como toda e qualquer guerra. Portanto,
reencarnações de idiotismos!
O corpo apenas como recipiente dos tantos horrores políticos desse nosso tempo.
A crueldade no lugar do prazer. A deformidade dos afetos no lugar da vida...
Claro que nosso próximo projeto fechando essa trilogia , deverá se chamar
“Filme Pornô” . Filmamos o casamento, a guerra e agora uma comédia pornográfica
como epílogo. A ação pornográfica da política a cultura passando pelas
religiões de resultado: padres, pastores, ovelhas e outras muambadas! Muambadas
partilhando do princípio comum da “nota”! E entre escombros, a vacuidade do
dinheiro no jogo da imobilidade frente a TV! E a quem devemos endereçar nossas
angustias e tristezas com o país que é belo por fora e podre por dentro? Ou
seja, recusamos o modelo agonizante e nauseante da religião e da mídia engajada
na podridão das idéias e dos sonhos, concentrando nossa atenção numa nova
concepção e dinâmica do humor. Talvez uma bem humorada homenagem a Commedia
dell’Arte.
Freud com muita propriedade afirmava: “...habituamo-nos a ver na pulsão um
fator que força no sentido da mudança e do desenvolvimento, e agora vemo-nos
obrigados a reconhecer nela justamente o contrário, a expressão da natureza
conservadora do ser vivo.” E é onde se fundem o trabalho das atrizes e atores
de “Dois Casamento$” e “A Guerra do Paraguay”: edificando e estabelecendo não a
representação conservadora da mesmice televisiva, mas indo muito além delas
próprias enquanto seres criativos. O ato de criação a disposição dos encontros,
dúvidas e paixões impregnados de luz e subjetividades pulsantes. E como bem diz
Stanislawski: “...mais importante do que as ações propriamente ditas é a sua veracidade
e a nossa crença nelas”.
Sempre impressionou-me a criatividade sensual de ambas as atrizes dando as suas
personagens estilos elevados de encantamentos e mistérios nem sempre sendo
possíveis de serem revelados ao longo da vida. Como duas grandes atrizes
historicizam seus personagens sem histeria alguma. Confesso-lhes a minha paixão
ilimitada! Patrícia Niedermeier e Ana Abbott em “Dois Casamento$” me fizeram
imaginar e acreditar em nossos tantos sonhos e desejos liberados, fluindo rumo
ao arbitrário em zonas não acessíveis a deus ou ao diabo. De fato uma realidade
para poucos. E onde o corpo pensante se confunde com a cabeça na sua elaboração
das palavras. Não mais o ator/atriz como utensílio doméstico na TV, mas
rodopiando entre a seriedade e as suas infinitas expressões e excessos. As duas
atrizes como texto e história numa espécie de desestruturação de certezas e
dúvidas. E na intensidade poética de ambas, o lado inútil de cada um sendo
rasgados pela fé cênica. Cada uma delas transformando a trivialidade das
idéias, aqui e ali, em encontros afetivos profundos, sofridos e criativos. Duas
grandes atrizes que se encontram repletas de sonhos, sons e fúria!