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quarta-feira, 9 de setembro de 2015

CINEMA

“QUEREMOS, DE FATO, É QUE AS IDÉIAS VOLTEM A SER PERIGOSAS.”
De um MANIFESTO SITUACIONISTA
“O ATOR COMO POESIA”
LUIZ ROSEMBERG FILHO

Ora, como escrever um texto asfixiante para ser representado com leveza? Poderia pensar nos muitos cadáveres da política, ou nos ratões da mídia. Vago entre dispersões, conflitos e dissimulações. Fazer falar os personagens A, B ou C sem cair na mesmice televisiva, é um desafio de superação da imobilidade reinante onde a aparência do real é que serve como referência turística de mercado do cinema a TV, essencializando produtos, espetáculos, mediocridades e fascismos. Por ironia me permito usar o teatro no cinema, e o cinema no teatro para chegarmos ao teatrão, que é como entendo as guerras e suas tantas mortes e destruição: um teatrinho de bufões! As palavras me servindo como análise ao anti-heroísmo das tantas imagens das guerras mostradas todos os dias pela TV.
Nietzsche em “A Origem da Tragédia” diz: “Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento.” Sair voando pelos ares não nos diz alguma coisa? Não seria um olhar poético sobre a arte do Ator/Atriz? E como seria isso através de um método catártico? Talvez a duplicidade da descoberta do ator/atriz. A sua identidade e a dos seus personagens que vai representando ao longo da vida. E a cada autor, uma nova projeção de dúvidas e afetos num tempo de obscurantismos e medos. De seres baixos ligados ao poder e a morte. Ainda assim divas como Cacilda Becker, Glauce Rocha, Isabel Ribeiro, Célia Helena, Lilian Lamertz, Lélia Abramo, Ruth de Souza , Analu Prestes... 
Como diz Stanislawki no seu “Preparação do Ator”: “O ator tem plena liberdade de criar seu sonho, desde que este não se extravie muito do pensamento e do tema básico do dramaturgo.” E foi por aí que fomos levando nossos ensaios tanto em “Dois Casamento$” como no “Guerra do Paraguay”. O ator/atriz se redescobrindo como ser humano em suas dúvidas, sonhos e personagens. E entre enfoques antagônicos, dando materialidade as palavras dos muitos tipos e autores que vai representando. Sua grandeza é realizar-se como condutor de linguagens poéticas. Gide falando com propriedade de Dostoiewski, afirmava: “Não há verdadeira obra de arte em que não entre a colaboração do demônio.” 
Ou seja, ultrapassando barreiras da sua formação, o Ator/Atriz evoca seus sonhos, dúvidas e demônios. Seu gozo é ser a própria obra de arte seja representando, “Antígona”, “Édipo”,“Macbeth”, “Calígula”, Carminha , Jandira ou o Soldadinho Alê, na nossa visão da “Guerra do Paraguay”. O ator/atriz tornando-se criação viva, dando-lhes ultrapassagens físicas além de suas personagens que vai vivendo, construindo e representando seja lá onde for, pois está além de todo e qualquer limite. Sua missão está na essência de todos os abismos. Como por exemplo movimentar-se com liberdade poética, criando na escuridão das idéias de um país solar. Tendo o corpo tanto no filme, como na peça se recriando no tempo-espaço, não se deixando aprisionar por uma infinidade de palavras e situações aparentemente iguais, mas diferentes! E num movimento onde nada se repete, tornam-se eixo de infinitas reflexões. Atuando numa não-fronteira do certo e do errado, e ousando nas tantas incertezas da vida e do tempo de cada uma. E assim fomos pouco a pouco chegando em “Dois Casamento$” no cinema, no teatro e na “Guerra do Paraguay”, numa desobediência permanente e vibrante tanto a deus como ao diabo. 
Vale afirmar as diferentes posturas das duas Atrizes. Se num primeiro momento Patrícia/Carminha se assume como força de dimensões transgressoras. Ana/Jandira vive seus pobres gestos cotidianos evocando um corpo sem uma só sensação poética transgressora. É uma simples bancária que só foi educada para trabalhar e casar, sem história própria alguma! Abolida as hierarquias da moral, ambas se fundem, e se redescobrem como mulheres dando dimensão significativa tanto a vida como as suas emoções, tornando-se então sensibilidades em permanente expansão. O filme e a peça são para mim como desnudamento da alma humana, e um profundo encontro sensorial experimental com o ser Mulher! E nesse sentido os experimentos são, ainda que cênicos, mutáveis como a própria vida. Todos deram expressividade poética a materialidade de suas funções. A uma feliz desconstrução do corpo como consciência do horror do seu não-prazer, enquanto personagens. Duas grandes Atrizes se doando a uma efêmera constelação de movimentos arbitrários, dentro do comum.
Embrenhamo-nos todos no desconhecido das angustias humanas das personagens e da história. E “em torno de cada imagem escondem-se outras. Forma-se um campo de analogias, simétricas e contraposições.” Parece que as palavras de Ítalo Calvino se encaixam no nosso terno processo de descobertas. Com o ator/atriz tornando-se assim uma projeção de encontros, trocas e afetos. Todo trabalho é uma aprendizagem de renascimentos rumo a transcendência de todo e qualquer compromisso com as punitivas leis do mercado. Ou seja, na boa instrumentalidade do corpo e da voz, reside o seu ofício metaforseando-se em associações com muitos textos, questionando o status quo e fazendo da realidade suas dúvidas e movimentos. Não o ator/atriz como hipnotizador só interessado em se afirmar, mas sim em se superar a cada trabalho e dando significação substancial a vida tanto das suas muitas personagens, como dos espectadores/público! 
Confesso o meu encantamento com quase todos os atores e atrizes com quem tive a sorte de trabalhar nos três últimos trabalhos: um média e dois longas. Através deles pude avançar nas minhas tantas subjetividades, essencializando sempre uma vida melhor para todos. E num ambiente escuro significativo, com poucos ou nenhum objeto. Remodelado assim pelo movimento das duas belas e boas atrizes em “Dois Casamento$”, onde conseguem transformaram o espaço em personagem, assim como as imagens de Vinicius Brum, a música de Rodrigo Marçal e a montagem criativa de Joana Collier. Desse modo, o investimento é na lapidação poética das personagens em estado bruto representando com vigor criativo raro, impulsos e potências sensíveis. Nada e tudo na feitura das ações anti-hipnotizadoras. Patrícia Niedermeier e Ana Abbott que dão materialidade musical doída as suas personagens, levando-as ao infinito do sofrer e do gozar! 
Eugenio Barba com muita propriedade afirma: “Para o ator, o personagem é um instrumento para agredir a si mesmo, para atingir alguns recessos secretos da sua personalidade, para por a nu aquilo que ele tem de mais íntimo. É um processo de autopenetração, de excesso, de demasia, sem o qual não pode haver criação profunda, contato com os outros, possibilidade de formular as interrogações angustiosas que voluntariamente evitamos para defender o nosso limbo cotidiano. Libertando-se da canga que o define socialmente e de maneira estereotipada, o ator pratica um ato de sacrifício, de renúncia, de humildade. Esta sucessão de feridas íntimas vitaliza o seu subconsciente e lhe permite uma expressividade obtida com o cálculo frio ou a determinação com o personagem. Violentando os centros neufrálgicos da sua psique e oferecendo-se com humildade a este sacrifício, o ator – assim como o espectador que deseja entregar-se – supera a sua alienação e os seus limites pessoais e vive um clímax, um “ápice” que é purificação, aceitação da própria fisionomia interior, libertação.” 
Talvez esse seja o esforço de todos na construção de anti-heróis! As duas personagens se desenquadram da normalidade do certo e do errado, imperando a ótica analítica do risco. Risco da dilatação da experiência. A experiência de não serem idiotas da corte do capital. E entre fragmentos: “ o ator mostrando-se em sua multiplicidade e em sua potência”. Enfatizando-se tanto o movimento como a palavra e a imobilidade. Para mim Patrícia e Ana são deusas, assim como foi Analu Prestes, Ana Maria Miranda, Kátia Grumberg, Olivia Zizmann... Mais que atrizes ou personagens, delicados seres humanos! Mas sendo ainda, imagens de sonhos concretizados. Que num processo anti-digestivo marcam cada palavra, cada silêncio, cada imagem... Se exigindo como atrizes, o cosmos! Carminha e Jandira se remetem a investigações corporal e vocal. Poderia ser só cinema mas é teatro e vida! Muito além do falso sucesso da representação burguesa, muito comum na TV. 
E se existe santidade em determinados encontros, me refiro ao trabalho com Luciana Froes, Patrícia, Ana, Alexandre Dacosta e Chico Dias...de “Momentos”, “Dois Casamento$”, “Guerra do Paraguay” até o teatro, vivemos todos momentos sagrados de sonhos e encantamentos. E se a TV infantiliza o trabalho do ator/atriz tornando-os uma mercadoria de segunda descartável, nosso mergulho é o inferno da fisicalidade do corpo e das palavras corretas, ou mesmo não. Remexemos tempos, dores e subjetividades através das quais nos abandonamos como materialidade de sonhos marcantes na vida de cada um. Em “Dois Casamento$” o não-tempo é o princípio fundamental, assim como o tempo poético é na “Guerra do Paraguay”. Ambos se deixam construir desordenadamente, digamos é uma espécie de materialidade de histórias diferentes, mas próximas:o casamento e as guerras! E que através de narrativas lúdicas se deixam levar pela imaginação dos encontros e desencontros de experimentações performáticas. Ressignificando claro, tanto o casamento conservador-religioso, como toda e qualquer guerra. Portanto, reencarnações de idiotismos! 
O corpo apenas como recipiente dos tantos horrores políticos desse nosso tempo. A crueldade no lugar do prazer. A deformidade dos afetos no lugar da vida... Claro que nosso próximo projeto fechando essa trilogia , deverá se chamar “Filme Pornô” . Filmamos o casamento, a guerra e agora uma comédia pornográfica como epílogo. A ação pornográfica da política a cultura passando pelas religiões de resultado: padres, pastores, ovelhas e outras muambadas! Muambadas partilhando do princípio comum da “nota”! E entre escombros, a vacuidade do dinheiro no jogo da imobilidade frente a TV! E a quem devemos endereçar nossas angustias e tristezas com o país que é belo por fora e podre por dentro? Ou seja, recusamos o modelo agonizante e nauseante da religião e da mídia engajada na podridão das idéias e dos sonhos, concentrando nossa atenção numa nova concepção e dinâmica do humor. Talvez uma bem humorada homenagem a Commedia dell’Arte. 
Freud com muita propriedade afirmava: “...habituamo-nos a ver na pulsão um fator que força no sentido da mudança e do desenvolvimento, e agora vemo-nos obrigados a reconhecer nela justamente o contrário, a expressão da natureza conservadora do ser vivo.” E é onde se fundem o trabalho das atrizes e atores de “Dois Casamento$” e “A Guerra do Paraguay”: edificando e estabelecendo não a representação conservadora da mesmice televisiva, mas indo muito além delas próprias enquanto seres criativos. O ato de criação a disposição dos encontros, dúvidas e paixões impregnados de luz e subjetividades pulsantes. E como bem diz Stanislawski: “...mais importante do que as ações propriamente ditas é a sua veracidade e a nossa crença nelas”. 
Sempre impressionou-me a criatividade sensual de ambas as atrizes dando as suas personagens estilos elevados de encantamentos e mistérios nem sempre sendo possíveis de serem revelados ao longo da vida. Como duas grandes atrizes historicizam seus personagens sem histeria alguma. Confesso-lhes a minha paixão ilimitada! Patrícia Niedermeier e Ana Abbott em “Dois Casamento$” me fizeram imaginar e acreditar em nossos tantos sonhos e desejos liberados, fluindo rumo ao arbitrário em zonas não acessíveis a deus ou ao diabo. De fato uma realidade para poucos. E onde o corpo pensante se confunde com a cabeça na sua elaboração das palavras. Não mais o ator/atriz como utensílio doméstico na TV, mas rodopiando entre a seriedade e as suas infinitas expressões e excessos. As duas atrizes como texto e história numa espécie de desestruturação de certezas e dúvidas. E na intensidade poética de ambas, o lado inútil de cada um sendo rasgados pela fé cênica. Cada uma delas transformando a trivialidade das idéias, aqui e ali, em encontros afetivos profundos, sofridos e criativos. Duas grandes atrizes que se encontram repletas de sonhos, sons e fúria!

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