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quinta-feira, 19 de maio de 2016

OUVINDO ECO


“LAMENTAMOS COMUNICAR-LHE QUE SEU LIVRO…”


UMBERTO ECO propõe aqui uma brincadeira: algumas obras, hoje consagradas, são submetidas a um hipotético editor. E, analisadas em “fichas de leitura”, são, finalmente, recusadas. Esta é uma experiência pela qual todo escritor novo, em qualquer parte do mundo, já passou: mandar seus originais para uma grande editora, ficar esperando um contrato ou pelo menos uma proposta e, de repente, receber uma carta muito amável assinada pelo editor. Nessa carta. ele é informado de que certamente seu livro tem qualidades, de que provavelmente seu livro fará sucesso e de que infelizmente seu livro não será publicado.
Anônimo
A Bíblia
Devo confessar que quando comecei a ler os originais, e durante as primeiras páginas, senti-me entusiasmado. Ali há ação pura e tudo o mais que o leitor de hoje exige de uma obra de evasão: sexo (muitíssimo), com adultério, sodomia, homicídio, incesto, guerras, etc.
O episódio de Sodoma e Gomorra, com os travestis que pretendem violar os anjos, é digno de Rabelais; as histórias de Noé são o mais puro Emilio Salgari; a fuga do Egito é uma história que, mais cedo ou mais tarde, acabará sendo filmada… Em resumo, trata-se do verdadeiro roman-fleuvebem estruturado, que não economiza efeitos, pleno de imaginação com aquela dose de messianismo que agrada, sem chegar ao trágico.
Mais adiante, no entanto, percebi que se trata, na verdade, de uma antologia de vários autores, com muitos, excessivos, trechos do poesia, alguns francamente lamentáveis e aborrecidos, choradeira sem pé nem cabeça.
O resultado é um feto monstruoso que corre o risco de não agradar a ninguém, porque tem de tudo. Além disso, será cansativo estabelecer a questão dos direitos de tão diferentes autores, a menos que o representante de todos eles se encarregue da tarefa. Mas nem no índice encontrei o nome desse representante, como se houvesse da parte dos autores interesse em manter seu nome oculto.
Talvez fosse possível publicar separadamente os primeiros cinco livros. Aí estaríamos pisando em terreno firme. Com o título: Os Desesperados do Mar Vermelho.
Homero
A OdisséiaPessoalmente,  o livro me agrada. A história tem beleza, é apaixonante, cheia de aventuras. Tem a dose exata de amor, fidelidade e de escapadas adulterinas (multo boa a figura de Calipso, uma típica devoradora de homens); tem, inclusive, um momento “lolitico”, na melhor linha nabokoviana, com uma ninfeta chamada Nausicaa: no episódio, o autor se permite algumas ousadias, mas em momento nenhum incorre em excessos. O conjunto é excitante. As cenas merecem figurar ao lado das melhores já produzidas no gênero western: a luta é violenta, a cena do arco explora, até as últimas possibilidades, o potencial literário de suspense.
Que mais poderia dizer? Leio essa de um sopro, melhor que o primeiro livro do autor, excessivamente estático em sua insistência de permanecer no mesmo lugar, cansativo pela exuberância de acontecimentos (na terceira batalha e no décimo duelo, o leitor já entendeu todo o mecanismo). Ademais, a história de Aquiles e Patrocio, com seu fio latente de homossexualidade, nos transmite um certo desagrado. Ao contrário, neste segundo livro, tudo caminha maravilhosamente; até o tom é mais sereno: pensado mas não reflexivo. Depois, a montagem, o jogo de flash-backs, o encadeamento das histórias! Em suma, muita categoria. De fato, esse Homero tem talento.
Talento demais, seria o caso de dizer… Chego a me perguntar se tudo ali será farinha do mesmo saco. Sabe-se como é: escrevendo, escrevendo, a gente melhora (quem sabe se o terceiro livro será um estouro). Mas o que me faz vacilar (e, afinal, me leva a opinar negativamente) é a confusão que pode resultar da questão de direitos.
Antes de tudo, é impossível localizar o autor. Os que o conhecem dizem que, de toda maneira, seria inútil discutir com ele as pequenas modificações que deviam ser introduzidas no texto, pois é cego como uma toupeira e, em mais de uma ocasião, deu provas de ser incapaz sequer de escrever. Dizem que tinha seus originais na memória, mas que não estava muito seguro do que havia escrito, alegando que o copista havia introduzido interpolações na obra. Terá ele sido o autor ou apenas um testa-de-ferro?
Dante
A Divina ComédiaO trabalho de Alighieri, embora de um típico escritor de fim de semana que, na vida sindical, está filiado ao órgão de classe dos farmacêuticos, demonstra indubitavelmente, certo talento técnico e notável “alento” narrativo. A obra (em florentino vu!gar) compõe-se de quase 100 cantos em tercetos rimados e se constitui em leitura agradável e interessante. Gosto, principalmente. de suas descrições de astronomia e certos juízos concisos e densos, que faz com freqüência, sobre teologia. Mais inteligível e popular é a terceira parte do livro, que diz respeito a assuntos mais do gosto da maioria, e que concernem aos interesses cotidianos do possível leitor (assuntos tais como a salvação, a visão beatifica, a devoção à Virgem Maria). Obscura e caprichosa é a primeira parte, com passagens de baixo erotismo, violência e trechos francamente grosseiros. Esta é uma das poucas contra-indicações para superar esse primeiro “canto”, o qual, quanto à criatividade, não diz mais do que já foi dito por milhares de manuais sobre o outro mundo.
Diderot
A Religiosa
Confesso que não cheguei a folhear os manuscritos, mas acredito que um critico deve saber, até de olhos fechados, o que deve e o que não deve ler. Conheço esse Diderot: redige enciclopédias e agora tem em mãos um projeto de obra em não sei quantos volumes, que provavelmente jamais será editada. Anda por toda parte procurando desenhistas capazes de copiar o mecanismo de um relógio, ou as minúcias de uma tapeçaria de Gobelin, e levará à falência seu editor. Não creio que se trate do homem indicado para escrever algo divertido numa narrativa, especialmente para uma coleção como a nossa, na qual sempre incluímos coisas delicadas, um pouquinho picantes, como Restif de la Bretonne.
Sade
JustineO manuscrito estava em meio a um monte de coisas que eu devia ver esta semana, e, para ser sincero, não o li todo. Limitei-me a abri-lo três vezes, ao acaso, em três  lugares diferentes, e vocês sabem que para um olho experimentado isso é mais que o bastante.
Bem, da primeira vez encontrei uma avalanche de páginas de filosofia da natureza com divagações sobre a crueldade e a luta pela sobrevIvência, sobre a reprodução dos vegetais e a evolução das espécies animais. Da segunda vez, deparei com pelo menos 15 páginas sobre o conceito de prazer, sobre os sentidos e a imaginação, e mais coisas desse gênero. Da terceira vez, outras 20 páginas sobre as relações de submissão entre o homem e a mulher, nos diferentes países do mundo… Acho que isso basta. Não estamos procurando uma obra de filosofia; o público, hoje, quer sexo e mais sexo. Não importa a maneira como ele venha temperado.
Cervantes
Dom QuixoteO livro, nem sempre inteligível, é a história de um gentil homem espanhol e de seu criado, os quais vão pelo mundo perseguindo sonhos de cavalaria. Esse Dom Quixote é um tanto louco (sua figura é magnificamente concebida: de fato, Cervantes sabe narrar), enquanto seu criado é um simplório (dotado de certo e rude bom senso), com o qual o leitor logo se identifica, quando ele procura desmistificar as fantasias de seu amo. Até aqui o argumento, que se desdobra com alguns bons efeitos e com freqüentes episódios divertidos, parece bem. Mas a observação que quero fazer vai além de um juízo pessoal sobre a obra.
Em nossa bem sucedida coleção econômica Os Fatos da Vida, publicamos, com êxito notável, obras como Amadis de GaulaA Lenda do GraalO Romance de Tristão, etc. Agora temos opção de editar Reis da França, do mocinho de Barberino, livro que para mim será o grande êxito do ano. Pois bem, se nos decidirmos por Cervantes, poremos em circulação um livro que, não obstante ser muito bem feito, atirará no lixo o publicado até agora, fazendo esses outros romances parecerem coisa de idiota. Compreendo a liberdade de expressão, o clima de rebeldia e tudo o mais, mas não podemos nos prejudicar a nós mesmos. A última coisa que desejo é que, buscando novidades a qualquer preço, acabemos por comprometer uma linha editorial que até agora foi popular, moral e também rendosa. Recusar.
 Proust
Em busca do tempo perdido
Trata-se,sem mais nem menos, de uma obra comprometida, talvez muito grande; mas é possível vendê-la através de uma série de livros de bolso.
Tal como está é impraticável. Falta nela um trabalho vigoroso de depuração. Toda pontuação, por exemplo, terá de sofrer uma completa revisão. Os períodos são muito cansativos e há alguns que chegam a ocupar uma página. Com um bom trabalho de revisão que os reduza a dois ou três linhas cada, com uma melhor utilização do ponto e do parágrafo, a obra teria muito a ganhar. Se o autor não concordar, o melhor será não editá-lo.
Kafka
O Processo
Não é mau essa livrinho; é policial, com momentos a Hitchcock: por exemplo, o homicídio final, passagem de público certo.
Parece, no entanto, que o autor o escreveu sob censura. Que significam essas alusões obscuras, essa falta de nomes, de pessoas, de lugares? De que crime acusam o personagem, afinal? Se esses pontos puderem ser esclarecidos, tornando a história mais concreta, a ação se tornaria mais límpida e mais certo o suspense.
Esses escritores jovens acreditam fazer “poesia”,  pois dizem “um homem”, em vez de dizer ”o senhor tal, a tal hora, em tal lugar”.
Em síntese: se é possível fazer essas modificações, bem; caso contrário, devolver os originais.
 Joyce
Finnegans Wake
Por favor, recomende à redação que tenha mais cuidado quando me envia os livros. Leio inglês e me mandam um livro escrito em sei lá que diabo de idioma. Em separado, estou devolvendo o volume.

(*) Projeto Releituras.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Uma caixinha com mais de cem anos...

A cultura, o nascedouro da utopia Brasil

Leonardo Boff *

Praticamente todos os grandes analistas da nação brasileira, a começar por Joaquim Nabuco e culminando com Darcy Ribeiro tinham os olhos voltados para o passado: como se formou este tipo de sociedade que temos com características indígenas, negras, ibéricas, europeias e asiáticas. Foram detalhistas a exemplo de um Gilberto Freyre, mas não dirigiam os olhos para frente: que utopia nos move e como vamos concretizá-la historicamente.
Todos os países que se firmaram, projetaram seu sonho maior e bem ou mal o realizaram, às vezes, como os países europeus, penalizando pela colonização, outros povos na África, na América Latina e na Ásia. Geralmente é num contexto de crise que se elabora a utopia, como forma de encontrar uma saída. Celso Furtado que além de um renomado economista era um agudo observador da cultura nos diz num livro que deve ser meditado pelos que se interessam pelo futuro do país:”Brasil: a construção interrompida”: ”Falta-nos a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou estar ameaçada”(1992, p.35). Não nos faltaram situações críticas que seriam as chances para elaborar a nossa utopia. Mas as forças conservadoras e reacionárias “se empenharam em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação”(p.35), por medo de perder seus privilégios.
E assim ficamos apenas com um Brasil do imaginário, gentil, forte, grande, a província mais ridente do planeta Terra. Mas fomos impedidos de construir um Brasil real que integrasse minimamente a todos, multicultural, tolerante e até místico.
Chegou o momento, penso, que se nos oferece o desafio de construir esta utopia. A partir de que base assumiremos essa empreitada? Deve ser a partir de algo tipicamente nosso, que tenha raízes em nossa história e que represente um outro software social. Esse patamar básico é a nossa cultura, especialmente a nossa cultura popular. Como diz Celso Furtado: ”desprezados pelas elites, os valores da cultura popular procedem seu caldeamento com considerável autonomia em face das culturas dominantes”(O longo amanhecer, 1999, p.65). O que faz o Brasil ser Brasil é a autonomia criativa da cultura de raíz popular.
A cultura aqui é vista como um sistema de valores e de projetos de povo. A cultura se move na lógica dos fins e dos grandes símbolos e relatos que dão sentido à vida. Ela é perpassada pela razão cordial e contrasta com a lógica fria dos meios, inerente à razão instrumental-analítica que visa a acumulação material. Esta última predominou e nos fez apenas imitadores secundários dos países tecnicamente mais avançados. A cultura seguiu outra lógica, ligada à vida que vale mais que a acumulação de bens materiais.
O filósofo e economista Gianetti, em suas obras, viu a fecundidade de nossa cultura para elaborar o sonho brasileiro. Mas ninguém melhor que o cientista social Luiz Gonzaga de Souza Lima, em seu ainda não reconhecido livro:”A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada” (2011), onde sistematiza o eixo da cultura brasileira como a articuladora da utopia Brasil e de nossa identidade nacional.
A nossa cultura, admirada já no mundo inteiro, nos permite refundar o Brasil que significa: “ter a vida como a coisa mais importante do sistema social...é construir uma organização social que busque e promova a felicidade, a alegria, a solidariedade, a partilha, a defesa comum, a união na necessidade, o vínculo, o compromisso com a vida de todos, uma organização social que inclua todos os seus membros, que elimine e impeça a exclusão de todos os tipos e em todos os níveis”(p.266).
A solução para o Brasil não se encontra na economia como o sistema dominante nos quer fazer crer, mas na vivência de seu modo de ser aberto, afetuoso, alegre, amigo da vida. A razão instrumental nos ajudou a criar uma infra-estrutura básica sempre indispensável. Mas o principal foi colocar as bases para uma biocivilização que celebra a vida, que convive com a pluralidade das manifestações, dotada de incrível capacidade de integrar, de sintetizar e de criar espaços onde nos sentimos mais humanos.
Pela cultura, não feita para o mercado mas para ser vivida e celebrada, poderemos antecipar, um pouco pelo menos, o que poderá ser uma humanidade globalizada que sente a Terra como grande Mãe e Casa Comum. O sonho maior, a nossa utopia, é a comensalidade: sentarmos juntos à mesa e desfrutar a alegria de conviver amigavelmente e de saborear os bons frutos da grande e generosa Mãe Terra.

* Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu Virtudes para um outro mundo possível (3 vol.), Vozes 2005-2006.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Contando um conto



QUEIXA DE DEFUNTO
Lima Barreto
Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, a Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tornar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la:
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que se chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não.
Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem em cousa alguma de reivindicações e revoltas; mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.
Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte um sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensa mento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.
Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos “bíblias”, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.
Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda eloqüência em galego ou vasconço.
Segui-as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. E bom, meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.
Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.
 
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanha mento tiveram que atravessar em toda a extensão a Rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.
Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranha duras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:
 
— Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem-comportado — como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.

Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc. Posso garantir a fidelidade da cópia a aguardar com paciência as providências da municipalidade.

sábado, 7 de maio de 2016

A ARTE CINEMATOGRÁFICA


DEVERÍAMOS ESTUDAR CINEMA NAS ESCOLAS


Infelizmente, a maioria das pessoas acredita que o cinema é apenas um passatempo, um entretenimento. Porém, o cinema apresenta funções múltiplas. O cinema disseca e esfola a realidade externa e interna. E muito terá a ganhar quem tiver olhos para ver, ouvidos para ouvir, coração para sentir e cabeça para pensar.
Deveríamos estudar cinema nas escolas como estudamos filosofia, ciências humanas e artes. Não me refiro ao estudo técnico, com o intuito de formar diretores, roteiristas, fotógrafos ou produtores. Ensinar a criar um argumento, fazer um story-board, redigir e decupar um roteiro, conhecer os variados movimentos de câmera e orientar os atores são competências que devem ser ensinadas em faculdades, cursos técnicos e livres especializados na área.
Me refiro ao estudo teórico e intelectual. Me refiro ao entendimento do cinema como uma disciplina de entremeio, isto é, uma disciplina que engloba mais de uma área. Cinema é arte, comunicação e tecnologia ao mesmo tempo. Para o filósofo argentino, professor da Universidade de Brasília, Julio Cabrera cinema é filosofia. Para ele, cinema e filosofia deveriam ser estudados por todas as pessoas por se tratarem de importantes formas de se fazer pensar. Cabrera vai além. Ele diz que o cinema faz pensar afetivamente.
Infelizmente, a maioria das pessoas acredita que o cinema é apenas um passatempo, um entretenimento. Muitos filmes servem apenas para divertir mesmo e não há problema algum nisso. Quem não gosta de ver um filme para rir, se emocionar ou sentir medo?
Porém, o cinema apresenta funções múltiplas. O cinema diverte, leva a catarses, informa, educa, conscientiza, suscita reflexões, divulga conhecimento e estimula o autoconhecimento. Por meio do cinema aprende-se sobre culturas variadas, depara-se com temas tabus, repensa-se valores, desconstrói- se e reconstrói-se conceitos, questiona-se o poder instalado nas macro e microestruturas. O cinema perpassa todos os âmbitos da sociedade e do ser humano, desnudando estruturas injustas de poder instaladas nas esferas privadas e públicas, revelando um mundo que poderia existir, propondo mudanças ou um novo olhar para o mundo existente.
Diferentemente do que a maioria das pessoas acredita o cinema não é uma arte menor ou menos profunda do que a literatura, por exemplo. Cada arte tem o seu valor e importância. Cada arte tem os seus pontos fortes e apreciar mais ler do que ver filmes ou vice-versa pode ser considerada uma questão de gosto. Podemos encontrar em todas as artes muitos exemplos de obras profundas, medianas ou rasas.
Se a sondagem psicológica é o ponto forte da literatura, o ponto forte da música é despertar rapidamente emoções muito marcantes, podendo até mesmo mudar o estado de espírito de quem a escuta. As artes plásticas também promovem reações instantâneas, sem falar, que podem ser entendidas independente do idioma.
Todas as artes podem interferir na linguagem das outras e a questão da idade não deve ser considerado um requisito para definir uma hierarquia entre as mesmas. A jovem fotografia inspirou o impressionismo e libertou os pintores de retratar a realidade. A literatura interferiu na linguagem do cinema, mas a sétima arte também promoveu mudanças à literatura contemporânea , proporcionando à mesma um olhar mais intimista e fragmentado.
A televisão, mais especificamente a teledramaturgia, é a continuação das novelas de rádio que nasceram dos folhetins. As novelas mesclam elementos narrativos e estéticos do cinema e do teatro.
Se o cinema fosse visto como uma possibilidade de conhecimento e autoconhecimento, como um meio de reavaliar valores, quebrar tabus e preconceitos e reorganizar estruturas de pensamento, ele poderia gerar importantes e grandes transformações individuais e coletivas. Sabe-se que o cinema é capaz de promover profundas mudanças a longo prazo. Outras artes também poder nos fazer refletir e rever valores, como o teatro e a literatura, por exemplo. Mas o cinema envolve uma questão sensorial que extrapola o intelecto e abstrato e atinge os sentidos, promovendo sensações de nojo, piedade, simpatia, aceitação ou rejeição de forma muito visceral.
Se o hábito da leitura é excelente para treinar a concentração e a imaginação, o cinema trabalha um outro tipo de criatividade. Se a literatura parte do abstrato para imagens que formamos em nossa mente, o cinema pega o outro sentido da rodovia. Ele parte da imagem para o abstrato, para os conceitos, para as ideias. Mas se assistimos apenas a filmes para passar o tempo ou que reforçam visões preconceituosas e estereotipadas do mundo, o que poderia ser um antídoto contra a exclusão, o etnocentrismo, a violência torna-se mais um alimento para uma sociedade pautada pelos ideais hedonistas e imediatistas da nossa cultura materialista.
Filmes como Clube da luta e Um dia de fúria questionam os valores da sociedade de consumo. Filmes como Beleza Americana e Pequena Miss Sunshine, o american way of life. Filmes como Sociedade dos poetas mortos, O sorriso de Mona Lisa e Escritores da liberdade, o papel libertário do professor. Filmes como O inquilino e Cisne negro, a mente de um esquizofrênico. Filmes como Lua de fel e Veludo azul, o sofrimento gerado pelas perversões. Filmes como A bela da tarde e Foi apenas um sonho, o lado B do casamento. Filmes como Gritos e sussurros e O silêncio, as obscuridades familiares. Filmes como Menina bonita, O sopro do coração, Trinta anos esta noite e Perdas e danos ( os quatro de Louis Malle) o lado sensível dos temas tabu. Filmes como O açougueiro e Em suas mãos, o lado humano dos psicopatas. Os exemplos de como um filme pode elucidar temas e mostrar culturas e personalidades é extremamente amplo e complexo.
Em resumo: deveríamos ter um docente que falasse e mostrasse filmes capazes de fazer as crianças e adolescentes pensarem afetivamente, a fim de que se tornassem jovens e adultos mais lúcidos nos sentidos ético, moral, estético e psicológico, sendo mais capacitados para fazer escolhas conscientes e consistentes.

SÍLVIA MARQUES


Paulistana, escritora, idealista em crise, bacharel em Cinema, cinéfila, professora universitária com alma de aluna, doutora em Comunicação e Semiótica, autodidata na vida, filósofa de botequim, com a alma tatuada de experiências trágicas, amante das artes , da boa mesa, dos vinhos, de papos loucos e ideias inusitadas. Serei uma atleta no dia em que levantamento de xícara de café se tornar modalidade esportiva. Sim, eu acredito realmente que um filme possa mudar a sua vida! Autora do blog Garota desbocada. Lancei recentemente em versão e-book pela Cia do ebook o romance O corpo nu..

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Literatura



CANSADA DE SER FRIA
Nelson Rodrigues

Quando o irmão apareceu na porta do escritório, perguntou:
— Qual é o drama?
E Gervásio, arriando na cadeira:
— Preciso muito falar contigo.
Apanha um cigarro.
— Fala!
Então, já com os olhos cheios de lágrimas, o outro pede:
— “Primeiro, fecha a porta”. Felipe sente que o irmão está arrasado.
Surpreso, levanta-se e passa a chave na porta. Volta-se e pergunta:
— Mas o que é que há?
Gervásio tem um soluço imenso:
— Sou traído! Adélia me trai! Tem um amante!
Estupefato, Felipe balbucia:
— Não é possível! Não pode ser!
Repete:
— Me trai, sim! — E batia no peito: — Sou traído!
— Não acredito, só vendo!
Adélia
A princípio, Felipe pensou num caso de ciúmes doentios. Mas o outro o desiludiu. Mandara seguir a mulher por um detetive particular. E agora sabia de tudo — nome, endereço, dias de encontros, horários. Na véspera, metera-se com o detetive num táxi e lá foram os dois, para a esquina do apartamento do pecado. Viram quando Adélia saltara de outro táxi e entrara no edifício. Gervásio podia ter uma atitude qualquer, de marido, de homem. Mas desde a véspera que se limitava a chorar. Gemia para o irmão: — “Sou um pulha, um tarado! Não fiz, nem vou fazer nada”. E súbito, no seu desespero, crispa a mão no braço do irmão:
— Agora compreendo tua situação. Imagino o que não sofre!
Felipe volta-se, espantado:
— Minha situação? — Sem entender, continua: — Mas que
situação?
Gervásio passa as costas da mão nos olhos. Arqueja: — “Nós também somos irmãos em desgraça. Eu sou traído por um lado: tu és traído por outro!”.
Há uma pausa. Felipe instiga:
— Sou traído e…
— Pois é: — és traído e sabes, como eu.
Por um momento, Felipe não sabe o que pensar ou o que dizer. E, súbito, sem que o Gervásio possa prever-lhe o gesto, agarra-o pela gola do paletó e o sacode:
— Você vai me contar tudo, tudinho, seu cachorro! Quem lhe disse que eu sou traído e que sabia? Fala ou te arrebento.
Desconcertado, Gervásio debate-se:
— Mas que é isso? Não faça isso! Calma!
Felipe trincou os dentes:
— Quero a verdade, toda a verdade!
Revelação
Sacudido por Felipe, que o ameaçava de quebrar a cara e até de lhe dar um tiro na boca, Gervásio confundiu-se todo:
— Eu pensei que você soubesse. Todos pensam que você sabe e perdoa!
Felipe interrompeu: — “Não quero comentários. Quero informações. Anda!”. Então, esquecido da própria tragédia, lá foi o Gervásio falando. O outro corta outra vez:
— Quero o nome do amante!
O irmão vacila, mas acaba tomando coragem:
— São vários!
Recua, desgovernado: — “Vários?”. E insiste: — “Mais de um?”.
Gervásio confirma. Então, diz, com um meio riso hediondo:
— Tens mais sorte do que eu. A tua só tem um! Mas continua! Gervásio contou-lhe o resto. Parentes, amigos, simples conhecidos sabiam de tudo. E ela não discriminava, não escolhia, como se o seu destino fosse trair, apenas trair. Felipe apertava a cabeça entre as mãos.
Faz uma pergunta, que é um lamento: — “Por quê, meu Deus, por quê?”.
Vira-se, com o rosto devastado:
— Quer dizer que todo o Rio de Janeiro sabia, menos eu? Gervásio levanta-se. Felipe o acompanha até a porta. Bate-lhe nas costas, com um humor ignóbil:
— Parabéns, porque a tua só tem um e a minha vários!
O Choque
Durante uma hora, uma hora e pouco, ele ficou só no gabinete, entregue a uma meditação ardente e vazia. Quando apareceu uma funcionária com uns papéis, explodiu: — “Vai-te para o diabo que te carregue!”. A moça fugiu apavorada. Por fim, ele levantou-se, pôs o paletó e apanhou o revólver na gaveta. Meia hora depois, chega em casa.
Entra e, impassível, faz um sinal para a mulher:
— Vamos bater um papinho lá dentro.
Tranca-se à chave com a esposa. Ela pergunta: — “Alguma novidade?”. Rápido ele puxa o revólver. A esposa recua: — “Que é isso?”. Foi sumário:
— Soube isso assim, assim. É verdade? Responda.
Ergue o rosto:
— É verdade.
Há uma pausa. Ele, quase chorando, pergunta: — “Já que confessa, quero que me responda: — você merece a morte?”. Ela teve uma breve vacilação. Acabou respondendo, com uma firmeza não isenta de doçura:
— Mereço. Eu mereço a morte.
E ele:
— Escuta: — eu devia te matar como a uma cachorra. Mas há, nisso tudo, um mistério. Eu te perdoarei a vida se me disseres a verdade. Por que me traíste? Fala!
— Por quê?
O marido continua:
— Eu sempre te conheci fria, de gelo, de pedra, de morte. Já no namoro, tinhas horror de um simples beijo. No casamento, a mesma coisa. Sempre me disseste que odeias a parte física do amor. Responde: — não me disseste sempre?
Felipe está ofegante. Prossegue: — “A mulher fria é a única que não tem o direito de trair. Por que me traíste, por quê?”.
Durante um momento, os dois se olharam apenas. Ela se tornara para o marido a última das desconhecidas.
O marido insiste: — “Se me explicares, eu não te farei nada, juro!”.
Então, sem desfitá-lo, a mulher fala:
— Eu te traí na esperança do amor de que todos falam. Minhas amigas contavam maravilhas dos seus amores. Eu quis encontrar o meu.
— E daí? Encontraste?
Ela ficou calada. Finalmente respondeu:
— Nunca.
O Desfecho
Sem uma palavra, ele abre a gaveta e guarda lá o revólver. Levanta-se e sai. Imóvel e silenciosa vê o marido abrir a porta, atravessar a sala e sair. Então, sozinha, apanha um lápis e um papel e escreve, uma porção de vezes: — “A mulher que não pode amar também não deve viver”. Horas depois, tira da gaveta o revólver do marido. Já que ele não a matara, ela se matou — cansada de ser fria.