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sábado, 19 de setembro de 2015

COMPORTAMENTO


O chão e a noção 

Por Orlando Senna

Na natureza material, a corrupção é o processo de destruição de uma coisa ou de um animal. A palavra latina corruption significa decomposição, putrefação. Aristóteles definiu filosoficamente o processo como uma transformação que vai do ser ao não ser. A filosofia também trata, é lógico, da corrupção da alma das pessoas, do processo de apodrecimento da consciência. É a corrupção ética, a insensibilidade com relação aos semelhantes, aos valores da convivência, às leis e a qualquer obstáculo que possa impedir o corrupto de alcançar seu objetivo, de materializar sua ambição invariavelmente relacionada ao poder econômico ou a frustrações psicológicas.
Os estudiosos apontam duas características dessa disfunção humana: as influências culturais e a insaciabilidade. A primeira não tem a ver exatamente com o velho princípio de que ninguém nasce criminoso, inclusive porque há sérias dúvidas sobre isso depois da constatação da sociopatia, uma psicopatologia que gera comportamentos antissocias, os criminosos de nascença. Tem a ver com os estímulos recebidos do meio circundante, da sociedade onde se vive, que pode gerar ou não o comportamento criminoso (e também pode alimentar ou não sociopatias se aceitamos o criminoso de nascença). 
Corruptocracia
A outra característica é a falta de limites, nunca estar satisfeito com o resultado dos crimes já realizados, querer sempre mais, acumular riqueza ou poder simplesmente pelo prazer de ter. É uma escala onde o corrupto se torna irracional, incluindo nessa irracionalidade a certeza da impunidade, o sentimento de que está acima do bem e do mal, ver-se como um herói, em um patamar superior aos bocós e otários que formam o resto da humanidade. A corrupção administrativa, nos órgãos públicos, é a modalidade mais comum dos corruptos que objetivam acúmulo de poder e dinheiro, principalmente se estiver associada à corrupção corporativa, ou seja, ao mercado, aos empresários, à indústria e comércio. 
A corrupção existe em toda parte, em todos os países, e tem um papel importante na crise civilizatória que estamos atravessando. Em alguns países essa prática chega a um ponto em que interfere de maneira decisiva na gestão dos recursos nacionais, na política e no comportamento cotidiano dos indivíduos, um clímax que exige respostas urgentes da sociedade para evitar a corruptocracia, uma forma de governo que causaria a implosão do estado e da convivência da sociedade. A Itália teve de reagir a essa ameaça na década 1990 com a Operação Mãos Limpas, desfazendo um esquema delituoso envolvendo bancos, empresas e a Máfia e resultando no desaparecimento de vários partidos politicos e no fim do período conhecido como Primeira República.
Vinte anos depois o Brasil também se viu obrigado a fazer a sua operação de limpeza, esta que estamos vivenciando no momento, iniciada em 2005 com o Mensalão (compra de votos de parlamentares) e chegando a um grau de fervura com a Lava a Jato, apuração de um esquema bilionário de desvio e lavagem de dinheiro envolvendo dirigentes da Petrobrás, presidentes e altos funcionários das maiores empresas de construção do país, ex-ministros do governo Lula, parlamentares e políticos de quase todos os partidos e bandidos intermediários tipo doleiros e atravessadores. A Petrobrás, maior estatal brasileira, que era a oitava maior empresa do mundo em 2011, hoje ocupa a 416ª posição no ranking.
Fragilidade e oportunismo
A ação dos corruptos ativos e passivos é devastadora, como se vê, e investigações judiciais de grande envergadura se faziam necessárias desde muito tempo. Elas acontecem no Brasil em um momento em que o país está atravessando uma grave crise econômica e os políticos, a mídia e boa parte da classe média acham que é uma oportunidade para alimentar uma crise política, com a intenção de interromper o governo da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores. É como brincar com fogo dentro de um paiol, é como se equilibrar em corda bamba sobre um abismo. Por sua vez, o governo não consegue erguer-se da sua fragilidade e retomar a escala de grandeza dos programas de inclusão social e cultural iniciados por Lula, a base de sua popularidade. 
Com um governo sem chão e uma oposição sem noção, o trabalho do Poder Judiciário contra a corrupção não está sendo fácil e encontrará mais dificuldades à medida que as investigações e prisões aumentem, como é a tendência, e novos figurões da política e do empresariado sejam denunciados e sentenciados. Paira no ar a possibilidade de choque de poderes contrapondo o Legislativo ao Judiciário, como nos deu a entender a atitude do senador e ex-presidente Collor na sabatina do Senado ao procurador-geral da República Rodrigo Janot (lembrando que Collor é um dos grandes senhores da corrupção no Brasil).
Coração e mente
É um cenário obviamente dramático mas não se trata de uma situação sem saída, não é a sinopse de uma tragédia e boa parte dos brasileiros mantém intacta a esperança ou até a certeza de que a situação será superada, que em pouco tempo o País retomará seu ritmo de crescimento econômico e essa será a solução: em uma economia saudável a crise política será diluída. Pode até ser assim, mas para isso o Brasil tem de chegar lá, à boa saúde econômica, e para chegar lá o governo tem de pavimentar seu chão, tem de saber governar, e a oposição deixar de ser oportunista em um momento que exige civismo e comprometimento de todos pelo bem de todos.
Nessa salada de governo fraco, oposição irresponsável e sociedade em suspense, o único aspecto positivo da crise é a apuração em alta escala dos delitos de corrupção. Estamos demonstrando a nós mesmos e ao mundo que, apesar de tudo, podemos ser um país sério, ao contrário do que teria dito o general De Gaulle durante a Guerra da Lagosta nos anos 1960. Que podemos nos superar, como já aconteceu no passado em crises piores do que a atual.
Mas, para isso, temos de fazer valer o melhor do que nós somos e que às vezes nos esquecemos: que o brasileiro ame o brasileiro, um amor acima de partidos, ideologias, religiões, ódios, vinganças, descrenças, empáfias, preconceitos. Para tanto não é necessário adotarmos a polêmica adjetivação de homem cordial, ou seja, regido pelo coração, lançada por Sérgio Buarque de Holanda na década de 1930. O que precisamos é ser inteligentes.

* Link para outros textos de Orlando Senna no Blog Refletor    http://refletor.tal.tv/tag/orlando-senna

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