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sábado, 20 de setembro de 2014

Do Face Conto de um Cineasta Amigo



QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA UM PONTO 

Outro dia um amigo meu, em tom de acusação, bradou nas minhas ventas: “-Você não aparece na sua obra! Não reconheço nos seus livros a pessoa com quem eu converso há anos! Quando acharemos João Carlos Rodrigues na obra de João Carlos Rodrigues?!”
Fiquei uma arara. Mas, depois, pensando bem, vi que tinha uma parte de razão. Uma parte apenas, mas uma parte essencial. Não estou falando de estilo, fluência ou ponto de vista, mas algo maior, indefinível. A minha alma, a minha persona. Aquele texto onde mesmo quem nunca me viu possa me (re)conhecer até quase a intimidade total. Evidentemente há limites muito claros para o autor de uma biografia, um ensaio ou uma crítica de cinema, pois falam de temas que não foram criados por ele. Mesmo assim há momentos na biografia que escrevi do João do Rio, onde estou lá, é só procurar.
Mas um autor só se revela mesmo na ficção, quando sua técnica fica a serviço da imaginação, sem passar necessariamente pela racionalidade. Escrevi um pouco, e gostaria de fazer mais, ficção. Roteiros de cinema, roteiros para televisão, contos. Quem me conhece bem pode me achar em certos diálogos do filme “Rio Babilônia” e, principalmente, num programa Você Decide intitulado “Molambo de gente”, de 1996, dirigido pelo Ari Coslov.
E nos contos, alguns publicados on line sob o pseudônimo Jango Rodrigues, inventado pelo Glauber Rocha. Foi neles que cheguei a uma forma própria, interessante e muito irônica, não muito comum na literatura brasileira atual. Quase todos são contos homoeróticos (não confundir com auto ajuda gay), ambientados no baixo mundo carioca nos anos 1970/80. Estão reunidos no livro “Criaturas que o mundo esqueceu”, que desejo publicar. Todos os pareceres das editoras são favoráveis, mas todas as portas se fecham, como se eu fosse um iniciante. Botei até agente. Não tenho padrinho. E agora? Estarei com a síndrome do autor maldito? Ui! Sai pra lá, carcará! Pé de pato mangalô!
Por questão de princípio, não vou bancar a edição do meu próprio bolso. No momento esta é minha maior preocupação, e também o meu objetivo principal: publicar o “Criaturas”, obra da qual gosto muito, e a que mais me revela, numa editora “normal”. Será que vou conseguir?
(*) Nunca editei ficção. O romance “Memorial do inferno” (belo título), editado na década de 1990 pela Escritura Editoras, não é meu. É de um homônimo. Ignoro se é bom ou não.
Abaixo três mini narrativas de ficção, que não fazem parte do livro, cujos contos são bem mais longos e burilados, mas tem temática e estilo afins. Divirtam-se (ou não).
DOIS HOMENS QUE CHORAM
 para Dalva de Oliveira e Herivelto Martins
Eu vi um homem chorar.
Foi há muito tempo, num botequim da Praça Tiradentes. Disse que se chamava Douglas. Era bem jovem, muito moreno, como o jogador Romário. Parecia marroquino. Morava lá pras bandas de Alcântara, além Niterói. Um amigo me cochichou: “Herivelto tem profissão, é metalúrgico do estaleiro Iskawajima”. Assim descobri seu nome verdadeiro.
Era um homem com H.
Mas na algaravia do boteco, entre gargalhadas e trincar de copos e garrafas, ele confessou que tinha sido vetado na seleção de aspirantes do Botafogo, por causa de um defeito imperceptível em uma das pernas. “Mas no tempo do Garrincha isso podia”, reclamou, lágrimas nos olhos.
Era uma pessoa maravilhosa. Sumia por uns tempos, depois voltava. Numa dessas desaparecidas, tive de me mudar de apartamento e o número do telefone foi trocado. Percorri os bares e as esquinas, inutilmente. Herivelto, nunca mais.
Hoje quem chora sou eu.
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA
Numa quarta-feira, cinco da matina, mal raiava o dia, X fechou com cuidado a porta do quarto depois de deixar o bilhete de despedida (onde não disse nem a metade do que pretendia desabafar) em cima da cômoda, esgueirou-se pela porta da cozinha, trancou com cuidado a porta dos fundos, jogou a chave por debaixo da porta, pegou o elevador e ganhou a liberdade da rua. Levava a carteira de identidade e uma leve impressão que já ia tarde.
Quando Y acordou, por volta das onze, já abriu o olho gritando impropérios com sua voz de maritaca, rogando pragas e amaldiçoando o companheiro de tantos anos. Frustrado por não avistar seu saco de pancadas, percorreu todo o apartamento enrolado num lençol, espumando de raiva. Só depois de meia hora encontrou o bilhete, que leu, lívido de decepção. Então “ele” escapara na calada da noite, abandonando mesmo as roupas caras que lhe dera, e que eram cobradas com ironias ferinas, dia sim, outro também. “ – Covarde!” esbravejou diante do espelho oval do banheiro, enquanto escovava os dentes. “Que não se atreva a querer voltar!”
Quando, no correr dos próximos dias, viu que X não ia mesmo retornar, nem telefonar, nem ao menos dar notícias, sentiu o vazio monstruoso dos desertos gelados. Um fofoqueiro telefonou dizendo que o tinha visto numa praia do Ceará, em ótima companhia, numa boa. Dilacerou o rosto com as próprias unhas. Com quem iria agora contracenar o psicodrama que interpretava no inferno cotidiano?
Para relaxar, seu único divertimento virou alimentar as rolinhas que brincavam na varanda. Mas até essas, impacientes e impiedosas, em pouco tempo preferiram a janela da vizinha.
BRIGAS NUNCA MAIS
De repente, o encontro semanal entre os dois virou um inferno.
Chicão estava com a macaca. Reclamava da vida, como sempre, mas dessa vez em voz alta, agitado. Armou o maior piti, exigiu dinheiro na frente dos fregueses e garçons do bar favorito que frequentavam há mais de dez anos. Entrou em detalhes da vida sexual a dois, xingou o outro de viado velho, de filho da puta, coisas ainda piores. Terminou saindo aos gritos de “tudo acabado entre nós” e quebrando no chão o prato de lasanha.
Houve um silêncio constrangedor.

Ronaldo a princípio não entendeu, fragilizado. Ouviu tudo calado, pedindo que o chão abrisse e o engolisse, livrando de tanta vergonha. Não chorou, nem levantou a voz. Pagou a conta. Depois, já no metrô de volta pra casa, filosofou sobre a luta de classes, usufruindo os primeiros minutos de sua nova liberdade.

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