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terça-feira, 20 de julho de 2010

CONTO

O VELHO ALEPH
primeira parte

Clara noite.
Lua cheia.
Deserto.
Silêncio.
Nada se move.
Nada está vivo.
Nas areias (prateadas pela luz)
Há sombras (nas carcaças)
Soterradas.

No horizonte, na contraluz da lua que morre, pode-se notar o sutil movimento da areia nas dunas distantes. Pode-se ouvir chegando o som do vento assobiando, vindo em velocidade, acompanhando a intrépida tempestade, contornando as dunas como um rastilho de fogo aproximando-se perigosamente.

Uma grande tenda negra armada no deserto. No se interior existe um único ambiente. Um grande cenário iluminado por um labirinto de néon. As paredes que dividem o espaço são compostas por vários panos pintados sobrepostos uns aos outros. Universo teatral. Ali caminha um velho enigmático homem pelas mil e uma noites do seu estranho mundo.

Neste cenário, todo traçado em labirintos disformes, sobressai os grandes panos pintados em azul, vermelho e verde, misturados às telas brancas e pretas, desenhando os corredores dos salões deste ambiente futurista.Todas essas mil e uma telas de grandes proporções encontram-se no infinito de suas perspectivas formando um túnel sem fim de luzes e cores.

Só e usando óculos de lentes espessas e verdes é que podemos aproximar de uma janela pintada no grande cenário. Brilhava a luz solar, atômica, por trás do cenário. Era preciso pegar no fecho de luz virtual para abri-la. Observa-se então o movimento da velha mão enrugada, branca e lenta. Lá fora, vinda do deserto azul, cortando o cenário, uma faixa da intensa luz amarela invade a janela.

O rastilho de fogo reaparece refletido nas lentes dos óculos fundo de garrafa. O velho, balançando a cabeça, para um lado e para o outro, desaprova o que havia observado na janela. Com os olhos fundos e cansados ele olha com pouco interesse para a tela azulada do monitor de tevê que está à sua frente.

Aquela era uma das muitas televisões ali espalhadas, era a maior entre as dezenas de telas que se interligavam, dividindo imagens e informações, formando uma grande rede de computadores e monitores.

Um rosto pálido, simpático, jovem, dividido em pedaços de luz, entra em todos os monitores. Um mosaico humano de formas digitais. O velho, que cultiva a barba e longos cabelos brancos, ao ver todos aqueles monitores com um rosto frio olhando em sua direção, sofre uma mutação: O velho, agora iluminado, vira o rosto amargo e passa a observar o piso do chão quadriculado. Olhando para o tabuleiro preto e branco, expressando ânsia de vômito, transtornado, vomita uma luz esverdeada. As luzes de néon apagam-se. Então ele se levanta apressado e corre tonto, torto, para um canto do labirinto escuro. Nervoso acende a luz de uma forte luminária clareando de amarelo o canto do cenário. Aproximando-se rapidamente das cores espalhada nos telões e a elas se misturando, o velho homem enlouquecido nos labirintos que formam juntos corredores de sombras multicoloridas em um espaço infinitamente branco. Estas sombras transformam-se em um quadro de luz repleto de frases, citações, aforismos, todas elas escritas e impressas no ar com letras e tintas de várias cores e tamanho. O velho observa com atenção aquelas frases que vão surgindo no espaço num gravitar mágico formando nuvens de letras. Entre algumas datas famosas, umas se destacam das outras. No outro canto da sala, está empilhado, como se fosse uma escultura cibernética, uma série de aparelhos eletrônicos, monitores e velhos computadores. Todos eles estão ligados e funcionando. No fundo, em uma torre alta decorada com pequenas luzes que piscam sem parar, funciona um grande ventilador de longas hélices girando em velocidade. Em outro cenário, os telões são pintados com desenhos de linhas geométricas que formam, no seu conjunto, perspectivas clássicas gregas, dando um sentido de profundidade às paredes distorcidas do pequeno quarto. O velho, este estranho ser, retira com cuidado da grande torre de luz que alimentam os computadores, com suas mãos trêmulas e enrugadas, uma fina placa de ouro. Sua pele branca, muito fina, carcomida pelo tempo, vai tornando-se aos poucos avermelhada. E seus olhos, antes opacos, brilham como que a vida, a luz e o calor, voltassem novamente ao seu corpo quase morto.
As luzes da torre, uma a uma, vão se apagando. O grande ventilador vai perdendo a velocidade e o movimento de suas pás torna-se lento. Suas veias, roxas e salientes, vistas nos mínimos detalhes, injetadas de sangue, saltavam-lhes aos olhos como se fossem explodir. O fenômeno acontece por todo o seu corpo. O calor aumenta. O sangue pulsa. Os seus dedos afilados, com largas unhas esculpidas no marfim, delicadamente pegam o charuto apagado levando-o até à boca avermelhada. Tudo agora em volta do cenário nos parece muito mais velho. Teias de aranhas mortas se espalham pelas pesadas curvas do teto da tenda de lona negra. O rosto do velho homem está se deformando. O monitor que está à sua frente continua funcionando. Na tela o número 3010 se transforma no número 2010.

O velho torna-se um pouco mais jovem, saboreando o momento reacende novamente o charuto apagado e comemora a mudança das datas, timidamente, esboçando um sorriso. Aproveita para esticar as pernas e saborear a fumaça daquele que parece ser a sua última tragada. De repente muda de posição em direção à mesa, pega no teclado e com firmeza, com uma rapidez espantosa, passa a digitar as teclas do computador que está à sua frente.

A voz perdida, baixa e grave do velho, acompanha o diálogo impresso na tela do monitor:
- Estamos retornando um milênio e fumo esse charuto apagado pela milésima vez. Não desejo a imortalidade, nunca a desejei, sei disso hoje e não vai mais adiantar mostrar-se no monitor com esse seu sorriso de que tudo vai bem, que hoje eu vou... Vou morrer no deserto e me libertar para sempre de você... (O rosto no monitor tenta falar, mas não se ouve a voz)... Você pode falar à vontade que não estou te ouvindo, aqui o silêncio é mortal. Esta situação tornou-se insuportável. Não quero mais me comunicar, não quero mais receber mensagens, não quero mais esse pesadelo. Tenho esse direito... Por mais que eu me afaste desse tormento, mais ele vem ganhando terreno. Porra chega! Hoje o merda aproximou-se um pouco mais... sinto à sua vinda, o seu cheiro de enxofre, sua energia é o seu mal. Vendo você estampado no último monitor que deixei ligado, tenho ânsia de vômito e o meu ser e os meus sentidos perdem-se num deserto de maldades... Hoje é a última vez que escrevo nesta merda. Não! Não quero mais escrever as minhas experiências para depois vivê-la. Não acredito em nada disso... Sei bem quem você é... Você me fez perder a noção do tempo - já não sei quem eu sou e nem o porquê permaneço aqui. Quero apenas morrer. Esquecer tudo. Partir para sempre. Desliga-se o monitor. A escuridão total. O mais profundo silêncio.

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