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terça-feira, 2 de março de 2010

Outro conto cinematográfico

SEM SAÍDA

Da necessidade de homenagear três grandes amigos: o cineasta mineiro do filme “Uma Vida Provisória” Maurício Gomes Leite, o seu irmão, crítico de cinema do jornal “O Estado de Minas”, Ricardo Gomes Leite e do cineasta do "Corpo Fechado" Shubert Magalhães, amigos que não estão mais entre nós, é que me surgiu a concepção original deste texto.
Um pequeno retrato inspirado na linguagem do cinema, estudado e produzido na década de sessenta em Minas Gerais, através da ficção: planos e seqüências influenciados pela nouvelle vague francesa, os mais à vanguarda e outros pelo neo realismo italiano, os mais acadêmicos. Uma ficção alegórica. Prolóquio da grande viagem entre o amor e a morte. Temas existencialistas bem ao gosto dos meus velhos amigos. Composição dos momentos históricos das artes brasileiras, quase desconhecidas, produzidas em Minas Gerais e esboçadas em três histórias pontuadas por intermitentes ensaios.
O texto narra um dia entre o velho cineasta M e o repórter R que tenta entrevistá-lo e não consegue. M, com uma doença grave, retorna à cidade onde pretende realizar o seu último filme. Sabe que lhe resta pouco tempo de vida. Em suas visões cinematográficas está acompanhado por Celeste, uma jovem atriz, filha do amigo Shu. M, constrói o seu último filme em viagens sentimentais pela capital de Minas, do ponto de vista do hotel onde ele se hospeda. Recria, em suas visões apocalípticas, o antigo Bar do Ponto da rua da Bahia.
A segunda, é a do Zê, o talentoso e radical ator provinciano. Poeta maldito e revoltado, sente-se massacrado pelo sistema. Trabalha na biblioteca pública. Passa o dia e as vezes as noites descobrindo e lendo textos em livros raros. Quando encanta-se por sua descoberta, pega-os, decora-os e tenta representá-los nos mais diversos lugares da cidade. Visto e tratado pela sociedade como um louco, torna-se assim conhecido.
A terceira, é de Bê, a jovem mulher da alta sociedade, conhecida por colecionar e comprar obras de arte. Ela vive angustiada por um erro da natureza. O Dr. Desidério é o médico que quer resolver os seus problemas.
Panorâmica da Serra do Curral delineando o horizonte ao nascer do sol.
Plano gráfico em silhueta.
No mesmo movimento (fusão) estão as árvores e folhagens preservadas do Parque Municipal.
Planos curtos, em movimento de passagem, das artes plásticas à fotografia na história recente de Belo Horizonte. Os prédios de época na Avenida Afonso Pena: os neo clássicos, os art nouveau e art deco e seus detalhes arquitetônicos decorativos.
Surge, fragmentada, compondo o quadro sob detalhes escolhidos, as manchetes dos jornais sobre a morte dos três cineastas.
Chega-se, por fim, num travelling, composto com o movimento de grua em ascensão na rua da Bahia, ao moderno prédio do Grande Hotel, em frente do Parque Municipal.
Pela rua passam pessoas conhecidas, artistas, poetas, intelectuais, cineastas, etc.
Um taxi pára na porta do Hotel.
Desce do carro um senhor de 60 anos, muito bem vestido, trazendo na mão uma câmera 16mm.
Passa pela portaria, pega a chave com o recepcionista e segue para o elevador.
Uma moça que está saindo chama a sua atenção.
Ele entra no elevador.

O relógio marca 7 horas e 30 minutos.

Um jornalista jovem de terno, usando óculos, chega a recepção do Hotel.
Enquanto ele pergunta e espera a resposta do recepcionista, fica com sua caneta bic de plástico transparente, impaciente, a bater e a girá-la na mão sobre o vidro do balcão.

R - O Senhor M, por favor... Soube que ele está aqui hospedado...Sou do jornal “O Estado de Minas” e vim fazer uma entrevista... ele é um grande diretor de cinema ... você sabia?...

Recepcionista: - Por pouco você o pegava, ele acabou de subir e deve está entrando agora em seu apartamento. Qual é seu nome para poder avisá-lo da sua chegada...

R : - O senhor poderia colocá-lo no telefone! Meu nome é R, preciso marcar uma entrevista...

Recepcionista: - Aguarde um pouco...

Lá em cima, no último andar, fica o apartamento do cineasta.
Ele está no quarto olhando a magnífica vista que se tem do Parque e da cidade aberta pela janela.
Sai da janela, vira-se para uma câmera de 16mm colocada num tripé e prepara o microfone direcional ligado ao velho gravador Nagra. Ascende as luzes de cinema que estão espalhadas no apartamento, pega um longo cabo de bateria que sai da câmera e prepara-se, olha para lente, disparando o motor inicia um monólogo, falando nervoso e andando de um lado para o outro do quarto, saindo, algumas vezes, fora do enquadramento do filme:

M: - As imagens que vocês irão assistir agora fazem parte da ficção... Documentar o hoje das grandes cidades brasileiras, como Belo Horizonte, é tarefa obrigatória dos câmeras, repórteres, fotógrafos, editores e diretores de grandes redes de televisões e jornais.
Agora, retratar o hoje como suporte para os diálogos que definem os fatos e os personagens de um filme de ficção, sobre a mesma cidade, “... que foi projetada em linhas retas, paralelas, que presumivelmente se encontrariam no infinito” , é tarefa das mais árduas, é fazer cinema brasileiro.

O telefone toca.
M, demora para atender...
Na recepção, R está impaciente.

Recepcionista: - Ele deve ter dormido, passou a noite toda fora ...

O relógio marca 8.00 horas da manhã.

Zê, 40 anos, barba por fazer, trajando roupa esporte escura e uma echarpe vermelha no pescoço, tenta convencer o guarda da biblioteca para o deixar ficar.

Zê, nervoso : - Nada vai me impedir de resgatar os textos que aqui mesmo ontem os li... Você está me ouvindo, seu lacaio do sistema ?

O Guarda, calmo: - Zê, fique calmo, você não pode dormir aqui e, além do mais, a biblioteca só abre as nove horas, você sabe, não me traga problemas ...

Zê, olhando o relógio de bolso: - Eu estou calmo... Não venho aqui pra dormir, seu lacaio governista! O que é o tempo para quem a noite toda passou acompanhado por um universo de estrelas... - Decifra-me ou te devoro!...

O Guarda se distrai com a secretária que estava chegando para o trabalho e Zê, com um pulo, súbito, salta para dentro da biblioteca novamente, indo se esconder, tal qual uma criança assustada, no meio de um amontoado de livros empoeirados.

O relógio marca 10 horas.

M está novamente na janela observando a cidade.
O telefone continua a tocar sem que ele o atenda.
As luzes de cinema continuam acesas no quarto e M tinha espalhado na cama a sua coleção de revistas “Cahier du Cinema”.
Composição do texto com material de arquivo: livros, pinturas, fotografias, etc. Cenas dos filmes: “Vida Provisória” e “O Homem do Corpo Fechado.”

M: - Fiz aqui o meu primeiro filme ... um belo filme para um pequeno público e depois veio a ditadura mortífera de uma dívida impagável, uma maldita promissória do governo militar com o cinema brasileiro feito em Minas Gerais.. Até hoje pagamos os prejuízos... Hoje, eu me pergunto: como misturar em águas límpidas que nascem nas minas da Serra do Curral, o azeite maturado pelos portugueses extravagantes, os traficantes de ouro e diamantes, os comerciantes bárbaros, os banqueiros sovinas e os miseráveis empresários de todos os séculos? Como documentar com arte, achar e criar o conflito, entre personagens até então desconhecidos? Como reconstituir a história recente dos que pensaram, viveram e deixaram, para as gerações que os sucederam, o legado do saber, a vocação para o humor fino mineiro? Onde encontrar o louco do Zê, o maior ator do Brasil, que dizia para nós ter feito um pacto com o diabo e por isso a sua vida tinha virado de cabeça para baixo...nada mais dava certo...e do meu amigo Shu e de sua filha Celeste... como eu estava apaixonado, depois dela, devo confessá-lo, a minha vida tornou-se uma merda... retornei pois, para encontrá-los. Como esquecê-los ? Aqui quero morrer!

O telefone pára de tocar.
No movimento de câmara pode-se notar uma jovem mulher, saindo pela porta do espaçoso banheiro, ainda enfumaçado pelo banho quente.
Ela pára de caminhar no meio do quarto e em seguida aproxima-se dele, abraça-o por traz e, olhando-o com carinho, passa a mão suavemente pelo seu rosto.

Mulher ( Celeste ): - M ?

Cresce a música ambiente, um clássico.
A emoção da cena faz com que uma única lágrima caia dos olhos de M.

M, vira-se para a menina, sorri para ela, um sorriso triste, lhe faz um afago e apontando para a porta diz :

M: - Celeste, meu amor , vou me encontrar com Shu ... estou descendo ... te espero, te quero impaciente agora que te encontrei...

Celeste está assustada, o nome Shu, lhe causa surpresa...
M , antes de sair do quarto, interrompe-lhe a palavra com o dedo na sua boca.

M: - Temos muito trabalho e pouco tempo! Por isso, não me faça perguntas que não posso responder...

A campainha volta a tocar e depois o telefone.

O relógio marca 12 horas.

Do belo jardim que envolve a mansão pode-se notar a figura de um rapaz, bem vestido, que está na porta da entrada.
Uma doméstica negra, vestida com um uniforme, vem abrir a porta.
O rapaz entra na casa trazendo em suas mãos um pacote.
Ao entrar na sala, finamente decorada, entrega-o para uma jovem senhora elegantemente vestida.
Na mesa, ela abre o pacote com cuidado.
Surge uma peça marrom de um santo católico esculpido na madeira.
O rapaz se aproxima com intimidade.

O Rapaz: - É legítimo! Senhora Bê...

Bê: - Onde o conseguiu menino ?

O Rapaz: - Não posso lhe revelar a fonte, é o meu segredo ... mas veio de um oratório... de uma Fazenda do alto Rio Doce... e o preço não foi baixo não ! ... Se não quiser é só dizer que tenho outros interessados ...mas, meu interesse é satisfazer a senhora, dona Bê ...

O relógio marca 12 horas e 30 minutos

Bê, observando o santinho barroco: - Deixa disso menino e diga-me o preço que eu pago....

O seu telefone, de ruídos intermitentes, passa a chamá-la.

Zê está ainda escondido entre os livros, lendo uma coisa ou outra, resmungando:

Zê: - Este é o preço que se paga por saber só um pouco mais do que estes ignorantes...

Zê fica parado e olha para baixo, olha para seu sexo, e pergunta:

Zê: - Que tens caralho, que pesar te oprimes...

Zê olha para o relógio de bolso: são 14.00 horas.

Toca o relógio carrilhão da biblioteca.
O Guarda, que olha também o relógio, dirige-se para onde Zê se esconde.

Guarda: - Pode sair do esconderijo senhor Zê !

M está conversando com Shu no hall do hotel.
Abre-se a porta do elevador.
Saindo do elevador, junto com pessoas pálidas vestidas com roupas cinzas, está Celeste com um vestido de cores fortes, .
M e Shu, olham para aquela bela mulher.
Celeste se aproxima dos dois.

Bê está sentada no sofá preenchendo o cheque.
Ao seu lado está o rapaz que ela chama de menino.
O menino não tira o olho de Bê.
O telefone toca.
Bê não termina de fazer o cheque e atende o telefone..
O Rapaz levantando-se do sofá passa a andar de um lado a outro da sala.
Bê no telefone.

Bê: - Doutor Desidério ? Desidério Rá, é o senhor ?... É Bê quem está falando ! ... Nada vai bem doutor! ... Sim! ... É claro, .... ainda não ... ainda não ...

Zê lê apressado alguns livros como se procurasse algum texto esquecido.
Entre uma página e outra, depara-se, em um dos livros, com algo que lhe interessa, afasta os outros livros e cuidadosamente abre na página escolhida, começando a soletrar baixinho o que estava escrito.
A sua excitação cresce quando ele vira a outra página ...

No hall do hotel a atmosfera era como se o mundo houvesse parado.
No rosto pálido de M corre uma gota de suor e ele passa a ter visões.
Os rostos duros e fechados das pessoas realçavam mais ainda o sorriso natural de Celeste.
As pessoas caminhavam lentamente enquanto Celeste olhava com ternura para aqueles dois senhores.
M sorri com tristeza.
Shu vira as costas para Celeste.
Celeste não mais sorri.
M, que a tudo observa, é quem faz a ação voltar ao normal.

M: - Não vai cumprimentar sua filha, Shu? ...

Zê caminha feliz pelas ruas.
Traz consigo um livro.Um livro antigo.
Vira a esquina, pára em frente de uma casa de arquitetura moderna, abre a porta e entra.

O relógio marca 15 horas.

Uma replica do antigo Bar é o lugar da moda na cidade.
Os funcionários ainda estão limpando as mesas quando chegam os músicos para o ensaio geral.
O pianista é o primeiro a abrir o piano e a dedilhar as teclas.
E assim, como que sincronizados, um por um dos músicos tiram das bolsas seus instrumentos.
O pianista procura iniciar o som com um fraseado aleatório, ou seja, cada instrumento a partir desse momento, aleatoriamente, busca a sua perfeita afinação.

A câmera penetra no espaço da arte moderna acompanhando o rosto de Zê registrando em segundo plano os pintores, gravadores, escultores, que trabalham neste espaço.
Zê tece um curto comentário, passando por cada um deles.

Zê: - “Já é frase feita dizer que nossa época é terrível. Nela campeiam, sem freio e sem censura, a brutalidade - mundo da usurpação, a ignorância - mundo da mistificação e a mentira - mundo da sofisticação.”

M, caminha acompanhado por Celeste e Shu, nas alamedas do parque.

M: - “O papel do intelectual e do artista é tão importante hoje como o do guerreiro de primeira linha. Gostaria de ouvir o velho Oswaldo de Andrade gritar novamente para os mineiros: - “Tomai lugar em vossos tanques, em vossos aviões, intelectuais de Minas ! Trocai a serenata pela metralhadora.

Zê, inicia seu discurso em frente do painel de Portinari, depois dirige-se à igreja e, finalizando, fala para a lagoa.

Zê: - “Minas, mais que nunca, terra de poetas, terra de romancistas e narradores ! Terra de sensibilidade interior, terra de inteligência... Tendes tudo, tendes a força de vossa história, tendes a mulher de minas, bela e sentimental... Bárbara Heliodora, Marília, a humilde Eugênia Maria de Jesus, anônima companheira do alferes Tiradentes...
Como nas vossas montanhas, introvertidas de ferro, tendes no vosso recolhimento o segredo das forjas do amanhã...
Deixai para sempre os vossos complexos de isolamento mediterrâneo. O mundo vos espera...

O telefone toca.
Bê entra para o quarto com o telefone no ouvido.
O Rapaz alto, agora um pouco afeminado, acompanha o andar de Bê com uma certa distância,
Bê senta-se na cama .
O Rapaz faz o mesmo.
O cheque, ainda incompleto, continua em sua mão.
Ele começa a tomar, com as mãos, certa intimidade pelo corpo de Bê e ela deixa...então ele pega no cheque e ela o toma de volta ...

M, está no barco navegando no lago do Parque.
Enquanto Celeste olha encantada para ele, Shu impulsiona o barco com remadas fortes, cadenciadas, mas lentas.

M: - A picardia modernista belorizontina toma sentido, forma e roteiro, na mistura dos diálogos e das imagens perdidas nas crônicas, memórias ou romances, de seus ficcionistas e de seus poetas.
Aqui, meus amigos, a partir do governo Juscelino, na década de 50, explode a arte brasileira - o tesouro escondido nas sombras de cavernas pré-históricas, por debaixo das terras do sem fim, bem abaixo da magnetita cobiçada, lá estava, natural, intocado, virgem, era a nova força de um país reconstituído, redescoberto, que aflorava a Serra e ganhava mundo - Ora, de Minas saía a vanguarda das artes brasileira!
Depois veio as sombras, veio o medo, veio o nada. Do amor à morte dos jovens estudantes, ao golpe militar, os segredos das minas novamente são escondidos no solo que o sol esconde ao findar dos dias...
Shu! Celeste! Este é o filme: resgatar de um quebra cabeça gigantesco de infinitas peças a linha do horizonte que cerca de mistérios e pânico a capital das Minas Gerais. Um filme sem saída!
O relógio marca 18 horas.

Os músicos continuam com o seu som aleatório.
Entra em cena uma bailarina compondo coreografias com o corpo.
Ela busca com a música a harmonia perdida.

O rapaz esta na cama deitado com Bê, de costas para ela.
Os dois fazem sexo por debaixo da colcha portuguesa rendada na Ilha da Madeira, dos lençóis de seda, das fronhas bordadas aos travesseiros de plumas.
O telefone começa a tocar...

M, acompanhado por Shu e Celeste, caminha com dificuldade pela calçada movimentada da avenida Afonso Pena, na saída do Parque, quase esquina com a rua da Bahia. Um barulho infernal de tráfego invade o som.

M: - Vamos? Aqui na frente ficava o Bar do Ponto. Era o local da estação do Bonde e ponto. Portanto...Vamos ?

M, começa a rir.
Passa a andar sem dificuldade, rejuvenesce.
Um momento descontraído dos três personagens pela avenida.

Zê entra no bar e compra um cigarro das antigas marcas que se vendiam no local.

Zê: - Quero comprar um cigarro seu moço !

O Balconista: - Londres, mistura especial, maço ou pacote ? Roliço 17, Petit Londrinos, Yolanda, Liberty, Pour la Noblesse...Fósforos de pinho do Paraná ou de cera?

Zê: - De cera não ... é muito peso, não posso carregar mais este...

O Jornalista impaciente, batendo à caneta, fala ao Recepcionista...

Jornalista: - Meu senhor, eu tenho que ir a redação do jornal que fica aqui perto, mas estarei logo de volta . Avise ao Senhor M... por favor!

Os três andarilhos cinematográficos estão agora de frente para o Hotel, que fica na esquina da rua da Bahia. M, olha para o alto, para a janela do seu apartamento e pode ver uma pessoa lá de cima olhando para ele.
Do alto está M, olhando para baixo a cidade movimentada.
O telefone toca novamente.
Aqui em baixo M, um pouco assustado. Seu rosto está molhado de suor. Está tendo visões novamente.
Lá em cima M, também começa a suar.
Shu e Celeste pegam no braço de M.
Todos entram no Bar que está próximo.
Letreiro luminoso.
O Novo Bar do Ponto.

O relógio marca 19 horas.

O telefone toca sem parar.
Bê, levanta-se da cama, deixa “o seu menino” dormindo e vem atender ao telefone.

Bê: - Alô! É ela, sim! Estou ouvindo... secretária de quem? Ah! Sim... Dr. Desidério.... pode confirmar o nosso encontro ... estarei lá ...

Bê aproxima-se da cama onde dorme o rapaz e o acorda.

Bê: - Acorda vagabundo ... isto lá é hora de dormir? Nem anoiteceu ainda ! Vamos! Pegue o cheque e se manda menino, tenho um encontro marcado com o Dr. Desidério ....

Rapaz: - Você não vai fazer o que eu estou pensando, vai ?...

Bê: - Não tenho satisfações a lhe dar... vamos embora!

Os músicos e a bailarina continuam no mesmo tema.
Sentado numa mesa solitário está Zê.
Aproxima-se um garçom.

Garçom: - O senhor deseja beber alguma coisa?

Zê: - Água.

Garçom: - Com gás ou sem?...As duas estão geladas... Eu prefiro a Caxambu e você? ...

Zê: - Dá pra calar a boca? ...

Garçom: - Está interessado? Ela já dança esta coisa maluca a mais de duas horas....

Zê: - Se não puderes ter visões em acrópoles, recolha-se aos cegos mortais - Cão imundo! Se também lhe houvessem oferecido excrementos na certa cheirarias com prazer.

O relógio marca 21 horas.

Um cão andaluz passa entre as mesas.
O garçom sai rindo fazendo sinais na cabeça como se Zê fosse um louco.
Entra no bar e sentam-se em uma outra mesa M, Shu e Celeste.
O garçom chega para servir.
Bê e um homem gordo, bem vestido, o Dr. Desidério, entram no bar e sentam-se.
Celeste parece conhecer o pianista..
Cochicha com M e fica sorridente.
M, está sério.
Os músicos param de tocar e a bailarina de dançar.
Zê aplaude com entusiasmo.
Só a bailarina é que agradece.
Na mesa de Bê a conversa é animada.

Bê: - Não é possível doutor que uma recuperação possa demorar tanto tempo....

Dr. Desidério: - Minha querida Bê, aqui não é o lugar para tratarmos desses assuntos.

Passa o garçom que leva a bebida para mesa de M.
A câmera o acompanha.

M: - Shu e Celeste! É esse o ambiente no qual eu gostaria de morrer... Não! Não estou sendo melodramático, digo isto porque sei o que aqui se passa e tudo me parece familiar. Sei, por exemplo, que naquela mesa repete-se a cena que inspirou Coelho Neto a escrever o Patinho Torto... Vocês conhecem a história? Em 1920 um médico desta cidade, com um bom bisturi, operava milagres em seu gabinete, convertendo mulheres em homens - ou, como prefere Pedro Nava, “corrigindo erros gramaticais da natureza, quando esta põe no feminino o que no masculino deveria ser”.

Shu: - Então, onde a natureza tinha posto um parêntesis, vinha o doutor com o bisturi e colocava, no mesmo lugar, uma virgula ?

M, dando uma boa risada: - É isso mesmo Shu, é isso mesmo...

Voltamos a mesa onde estão sentados Bê e o Doutor Desidério.

Desidério: - Você sabe, Bê, que o meu nome significa desejo?...

Bê: - E o meu, significa vergonha! Sua bicha velha....

Bê esbofeteia Desidério, quando ele iria beber uma taça de champanhe e senta-se em seguida, novamente, mais próxima de Desidério, como se nada houvesse acontecido.
Celeste levanta-se e vai encontrar com o pianista de Jazz.
M, faz um gesto de carinho para que ela fique, mas deixa que ela saia da mesa.
Shu, levanta-se e vai procurar Celeste.
M, suado, trêmulo, não tem mais força para levantar-se e passa a olhar assustado o vulto que vinha das sombras dançando em sua direção.
O suor começa a lhe molhar o rosto. Voltam as alucinações.
Zê, reaparece vindo do fundo do bar, com a música ao vivo, passando pelas mesas ocupadas por homens vazios, manequins vestidos das melhores griffes, acompanhado por um spot de luz, o louco com o corpo pintado de vermelho, prateado e preto, chega dançando e se contorcendo na frente da mesa onde está sentado M.
É o diabo em pessoa que canta uma musica composta a partir do poema de Alphonsus Guimarães.

Zê: - Voltas a ser de novo aquilo que tu eras.
A evocadoura palidez do teu semblante
Faz-me pensar nas virgens - monjas de outras eras,
Quando de nós estava o céu menos distante.

Na áurea correspondência estelar das esferas
A tua Alma nupcial há de passar triunfante.
O teu olhar reflete, entre vagas quimeras,
O Inferno, o Purgatório e o Paraíso do Dante.

Havia tal piedade ao redor do teu vulto,
Que eu disse ao ver-te aqui, nas terrenas idades:
O teu corpo já esteve entre flores sepulto...

Nesses restos de vida arde um fogo celeste:
Passam no teu olhar as longínquas saudades
Do esquife que deixaste ou do Céu de onde vieste...

M, num esforço grande, consegue levantar-se da mesa e olhando para o ator diz:

M: - Satã, onde a puseste ?
Busco-a desde manhã.
Ó Pálida Celeste ...
Satã! Satã! Satã!

Apagam-se as luzes.
A escuridão é total.
É noite.

O relógio marca 22 horas.

Um som de ventania de filme de suspense invade as sombras.
Uma voz distante ainda pode ser ouvida, enquanto as cortinas branca, que cobrem a janela, são levemente iluminadas.

A voz: - O Vento ulula e chora.

M, agarrando-se a cortina que balança ao vento.

M: - Maldição! Maldição!
A quem amar agora,
Meu pobre coração ...

M, desesperado, com a roupa totalmente molhada de suor, quase sem voz, desfalecendo-se...

M: - Satã, onde a puseste ?
Que incubo a fanou já ?
- A pálida Celeste ...

Cena do pré histórico Inferno

Zê, está ao lado de Celeste numa caverna pré-histórica de Pedro Leopoldo - Lapinha ou Maquiné.

Zê: - Ei-la no meu Sabá.

A faxineira passa pelo corredor do hotel e vai até o apartamento onde está M.
Abre a porta e da um grito de pavor.
M, está morto agarrado a cortina branca encostado na janela ao lado da câmera 16mm presa no tripé com algumas luzes de cinema ainda acesas, como se ali houvesse alguma cena sendo filmada.

O relógio do hotel marca 23 horas e 30 minutos horas.

O Jornalista chega novamente na recepção e fala para o recepcionista:

R: - Você pode me informar se o cineasta M já se levantou ? Tenho uma entrevista marcada..

O telefone toca.
O recepcionista atende ao telefone e depois fala com o jornalista.

O recepcionista: - O cineasta M, foi encontrado morto no seu apartamento por nossa faxineira ... não consigo entender... ( o jornalista R, pega no telefone e liga para redação do seu jornal enquanto o recepcionista continua a falar) ... um senhor tão distinto, não deixou nada. Só deixou uma mala e uma pasta vazias, uma velha câmera de filmar, um gravador velho, algumas luzes acesas no seu quarto, além de revistas e livros, uma bagunça,, tudo espalhado pelo chão... nunca tinha visto nada igual, parecia um filme de terror. Você o conhecia ? Preciso de alguém que identifique o corpo...

O relógio marca 24 horas.

O Recepcionista é chamado por um policial que acaba de chegar no hall do hotel. O jornalista, assustado, fica, ao mesmo tempo, impressionado com a história e decepcionado por não ter feito a entrevista. Pesa os acontecimentos, lembra-se das cenas dos filmes vistos e sai do hotel apressado, perdendo-se na multidão de passantes conhecidos da cultura mineira.
Chove na rua da Bahia.
É noite alta.
A rua está molhada.
Ascende-se as velas em todos os altares da cidade.
O corpo exposto no caixão aberto é cheio de luz de centenas de velas acesas, segue, acompanhado por poucos amigos, lentamente entre túmulos no Cemitério Mineiro dos artistas desconhecidos.

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