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terça-feira, 23 de março de 2010

Mostra do Filme Livre

Jose Sette e Claudio Assis durante a Mostra do Filme Livre - foto Verena Kael
Continuação do texto de Marcelo Ikeda sobre Jose Sette

Apesar da boa repercussão provocada pela exibição no Festival de Berlim e da premiação no Rio Cine Festival (que hoje se tornou o Festival do Rio), Um Filme 100% Brazileiro teve precário lançamento, distribuído pela Embrafilme, já em processo de decadência econômica. Com a recessão do mercado cinematográfico com os anos da Era Collor, Sette não conseguiu viabilizar seu próximo projeto, um filme sobre Teófilo Otoni. Apenas no final dos anos 1990 Sette consegue retomar sua produção. Encantamento de Camargo Guarnieri é um documentário sobre o compositor e maestro de música erudita que, assim como Goeldi, não se baseia em apresentar informações biográficas para o espectador, e sim em promover um mergulho na obra do artista. Desse modo, Sette estrutura seu filme em três movimentos, combinando aspectos que relacionam música, artes plásticas e dança, extrapolando a obra do compositor para evocar a integração entre diferentes formas de manifestação artística.
Nesse período, Sette conseguiu retomar um ritmo de produção, beneficiado pelos editais de apoio à cultura em Juiz de Fora (Lei Murilo Mendes). No média-metragem A Janela do Caos, Sette retrata o universo cotidiano de criação do escritor Murilo Mendes, combinando aspectos ficcionais e documentais, lidando com o difícil gênero do docudrama. Mesmo com poucos recursos, finaliza um novo longa: O Rei do Samba, sobre o sambista Geraldo Pereira. Inspirado pelas chanchadas brasileiras, Sette compõe um filme popular sobre um compositor popular: mulherengo, irreverente mas acima de tudo criativo, original, condenado talvez por amar demais. Recheado de cenas musicais, O Rei do Samba deixa de lado a montagem fragmentada, a agressividade irreverente de seus filmes anteriores, mas preenche de singela poesia o percurso desse esquecido compositor, integrando sua filmografia pela forma como combina ficção e documentário de maneira pouco programática.
Ainda em Juiz de Fora, Sette realiza um curta-metragem singular que, de diversas formas, sintetiza os caminhos percorridos por sua filmografia. Ver Tigem aborda o impacto sentido pelo artista plástico mineiro Arlindo Daibert após uma exibição de Um Corpo Que Cai (Vertigo), de Alfred Hitchcock. Mas como é possível documentar algo tão subjetivo como um sentimento interior, um arrepio de espírito? Para Sette isso se torna possível apenas se mergulharmos no universo criativo do próprio artista, ou seja, a obra de Hitchcock desperta no artista o desejo de se aventurar por lugares desconhecidos no interior de si mesmo, inspirando a realização de uma nova obra. Em paralelo, por sua vez, o próprio Sette se inspira a criar, a partir das relações provocadas por Hitchcock e Daibert, expressas no próprio filme que está sendo realizado. Esse círculo de relações aponta para um novo campo: que o próprio espectador, através desse cruzamento de possibilidades, também possa descobrir os seus próprios caminhos e quiçá se inspire para realizar novas e novas obras a partir de seu olhar. É nessa singularidade da imbricação de caminhos entre o experimental, o documentário e a ficção, que Ver Tigem se revela não só uma homenagem à cinefilia (e Um Corpo Que Cai não deixa de ser um filme expressionista, a eterna fascinação cinematográfica de Sette...), mas ao próprio processo íntimo entre o espectador e a obra, como base de reflexão sobre a natureza do processo artístico. Ou ainda, um bom artista é, acima de tudo, um bom espectador: aquele que sente uma obra e a modifica, mediante o próprio processo criativo. Nesse sentido, é possível ver Ver Tigem como uma nova abordagem das propostas estéticas já apontadas em Goeldi.
Já neste século, José Sette, cada vez mais afastado dos editais e das leis de incentivo, que dominam o modo oficialesco de se produzir cinema no Brasil, prossegue sua filmografia optando pelo vídeo. Prossegue a investigação sobre personagens marcantes da vida cultural mineira com um novo “doc-fic”: Labirinto de Pedra, sobre o escritor Pedro Nava. A partir de sua caminhada derradeira até a Glória, onde veio a se matar, o escritor revê momentos marcantes de sua vida, como o encontro com os escritores modernistas. Continuando suas pesquisas estéticas, Labirinto de Pedra é um filme ficcional centrado na documentação de uma personalidade. No entanto, Sette não se prende aos acontecimentos nucleares da vida e obra de Nava, mas, ao contrário, oferece um passeio prosaico, como se buscasse retratar um cotidiano afetivo relacionado ao universo da criação. Por isso, como em outros filmes, Sette apresenta sua preocupação em articular a presença de um universo cultural, em que as diversas manifestações artísticas se integram e dialogam, combinando o espírito modernista da literatura, as artes plásticas, a dança e a música, entendendo que todas integram um mesmo sentimento de ebulição criativa. Nesse sentido, uma das mais belas cenas do cinema recente de Sette acontece num sarau, em que os escritores modernistas se encontram: para representar os papéis dos “antigos modernistas”, Sette promoveu uma homenagem aos “novos modernistas do cinema mineiro”, chamando cineastas e críticos como Paulo Augusto Gomes, Geraldo Veloso, Ataídes Braga, Fábio Carvalho e Isabel Lacerda, entre outros, enquanto assistem a um espetáculo de dança coreografado por Izabel Costa.
Izabel Costa, por sua vez, motivou a realização de Paisagens Imaginárias. Apesar da simplicidade de sua realização (o média-metragem é apresentado como um “registro de palco” de um espetáculo de Izabel), Sette evidencia a preocupação em integrar dança (o espetáculo de Izabel Costa inspirado na coreografia de Isadora Duncan), música (a composição de John Cage), artes plásticas (o belo cenário elaborado por Waltércio Caldas) e o teatro (a filmagem do palco), como se o cinema (o ato do registro), como um “ponto de encontro” dessas diversas tendências, pudesse servir como um catalisador de novos processos criativos. Nessa mesma linha, Eu e os Anjos une a literatura de Augusto dos Anjos ao teatro, através da peça que Kimura Schetino encena sobre o “maldito” poeta popular, combinando diversos tipos de material, como a filmagem do espetáculo, depoimentos de poetas brasileiros contemporâneos e inusitadas cenas do cotidiano, como nuvens e passeios de bicicleta por um cemitério.
Até que, finalmente, chegamos a Amaxon, longa-metragem recém-finalizado, cuja primeira exibição em festivais a Mostra do Filme Livre tem o orgulho de promover.
Amaxon insere um tom intimista, um tanto atípico à filmografia de Sette, quase um monólogo interior de uma escritora que revê a sua vida. Ainda que Vera Barroso Leite naturalmente ofereça ao filme um tom expansivo, próprio à força de sua presença em cena, sua personagem Laura navega entre os fantasmas do passado e sente os sintomas da solidão. Numa certa perspectiva, Amaxon é sobre um processo de resistência: a necessidade de permanecer criando como antídoto contra a solidão, ou ainda, a luta da palavra contra o silêncio. Laura não deixa de ser uma espécie de alter ego do próprio Sette, reforçado pelo fato de que boa parte das imagens a que Laura assiste é dos próprios filmes de Sette, alguns deles inacabados. Desiludido diante de um contínuo isolamento, Sette busca forças para criar... criando. Nada mais coerente para um cineasta 100% brazileiro.

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