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quarta-feira, 17 de março de 2010

CONTO

Um ônibus em péssimo estado segue em alta velocidade pela estrada a beira da grande lagoa.
- Ora, porra! O que eu fiz da minha vida?...
Perguntava-me, enquanto observava a água poluída da lagoa de Araruama, que faz tempo era transparente e pura quando por aqui aportei pela primeira vez.
-Todos os irresponsáveis predadores que administraram esses vilarejos que circundam esse antigo paraíso aquático, deveriam ser presos e ou pagarem pelos crimes cometidos com o povo dessa região outrora aprazível... Que calor anda fazendo!
O ônibus passava lento pela estrada. Eu estava atrasado no meu horário de chegada, por causa da viagem movimentada e perigosa, a Cabo Frio. No caminho centenas de casas fechadas ou a venda, passavam pelas janelas do ônibus cheio e mal cheiroso. Verdadeiras e tristes cidades fantasmas.
- Quer dizer que esses idiotas conseguiram matar o turismo expulsando os frequentadores que movimentavam a economia desse balneário? Ou eles imaginavam que as pessoas não se importariam de encontrarem consigo mesma, boiando. entre umas e outras braçadas, nas águas salgadas, hoje fétidas, insalubre e de cor marrom, da lagoa antes cristalina?
Foi o que eu perguntei ao meu vizinho de poltrona que olhava atônito para os meus longos cabelos.
- A empresa que cuida de nossa água e do esgoto informou que a água esta própria para o banho e que obras de dragagem estão sendo feitas
– Meu amigo, você esta perdendo o seu tempo, aqui eles só se interessam por obras que possam trazer lucro imediato, político e financeiro, e é nessa disputa, nesta corrida do ouro negro que jorra no mar, que surgem os aproveitadores e os oportunistas, que de todas as maneiras, com auxílio da mídia, conseguem enganar a todos.
- Por um tempo! Respondi, sem muito entusiasmo.
- Até quando eles sofrerem na pele as feridas da sua ignorância política... Pensei alto.
Eu estava de saco-cheio, tinha perdido o emprego na cidade de São Paulo. Fui mandado embora pelo diretor da tevê onde eu já trabalhava a mais de 10 anos! Ali estava eu, só, em direção de uma pequena cidade paradisíaca, banhada pelo sol e pelo mar azul, onde não conhecia ninguém. Precisava passar por isso para tomar uma decisão definitiva na minha vida.
- Evolução ou morte! Esse é o caminho que eu procuro seguir...
- Então, o que você esta fazendo aqui neste lugar provinciano?
- Me desprovi do belo, do que podia ainda me encantar e parti para um mundo desconhecido...
Como vocês podem notar, pela foto acima, sou um ser andrógino, diferente, perdido, inusitado, que a pouco estava se esbaldando nas noites paulistanas de orgias incontáveis...
- Você veio a passeio ou a trabalho? Perguntou-me o vizinho de janela.
- Vim a trabalho, respondi.
Sempre fui precavido, nunca falo a verdade a um estranho. Deve ser herança dos ensinamentos do meu pai, um ativista do partido comunista, mas que viveu como um burguês. Primeiro foi diretor de novela na tevê, fez grandes sucessos. Ficou rico da noite pro dia. Depois da morte da minha mãe, em circunstâncias misteriosas, ele se tornou um empresário do ramo das pedras preciosas e passou a ser o maior exportador desse país.
- Que contradição! Na juventude um revolucionário comunista e na meia idade um empresário capitalista...
Morreu atropelado me deixando uma fortuna incalculável. Mas nem sendo filho de quem eu sou, eu não consegui, com esse meu jeito diferente de ser, ficar nos quadros da poderosa emissora.
- Gosto de trabalhar, mas posso ficar a toa e ninguém manda em mim. Gosto de criticar o que não é certo. Não tenho compromisso com nada. Sempre falo o que me é dado falar. Faço o que quero, tentando, é claro, não incomodar ninguém. Mas se incomodar alguém, o que eu posso fazer? ... Ah sim! Vocês querem saber o meu nome? ... Podem me chamar de ninguém, ou de Boquinha de Anjo se vocês preferirem. E já vou dizendo logo de pronto: mesmo com esta cara, eu gosto mesmo é de mulher e as mulheres me adoram nesse meu jeito andrógino de ser.

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