Coisa
de cinema
Por
Orlando Senna
Creio que muitos de vocês já usaram ou ouviram a
expressão “coisa de cinema” (ou simplesmente “de película”, como dizem os
hispânicos), significando algo bonito, diferente, estranho, espetacular ou que
se trata de uma mentira ou exagero. Uma vertente das coisas de cinema são as
lendas cinematográficas, no mesmo sentido que damos a lendas urbanas ou lendas
industriais — fatos que podem ter acontecido realmente mas não se tem certeza
ou não se sabe exatamente como aconteceram e, por isso, as lacunas são
preenchidas com a imaginação.
Glauber Rocha, com seu jeito muito peculiar de ser
cineasta, é um manancial dessas lendas, uma fonte que está se tornando
inesgotável com o passar do tempo, de vez em quando escuto uma história nova
sobre seu comportamento atrás e diante das câmeras ou com pessoas que cruzaram
seu caminho em sets de gravação, mesas de debates ou polêmicas (sobre seu
famoso discurso nas ruas de Veneza, em 1980, já ouvi muitas versões diferentes
e às vezes contraditórias).
Versa uma das lendas de Glauber que, durante a
realização de Barravento, ele queria que a atriz Lucy Carvalho pisasse em
uma poça d’água em uma das cenas e ela recusou, dizendo que a água estava suja,
contaminada. Ele encheu as mãos com a água, mostrando que estava límpida,
transparente, incolor. Os argumentos não convenceram a Lucy e, como ele queria
aquela água e aqueles pés no seu filme, bebeu a água da poça. Lucy se curvou a
esse argumento, a cena foi feita e Glauber baixou ao hospital com terrível
disenteria.
Indo lá para o início da história, para os primeiros
anos do cinema, encontramos duas lendas que estão diretamente ligadas à
linguagem audiovisual, à magia dessa linguagem. Os irmãos Lumière, inventores
do cinema, também inventaram os cinegrafistas ao ensinar a alguns fotógrafos
como operar câmeras cinematográficas. Um desses cinegrafistas e seu jovem
assistente foram mandados a Veneza para documentar a cidade, para fazer
“vistas”, como se dizia na época.
Navegando em um dos canais de Veneza, em direção a
uma praça onde iam ancorar a câmera e o tripé, o assistente reparou na beleza
das casas passando lentamente diante de seus olhos. Disse ao chefe, ao
cinegrafista, que ele devia filmar esse movimento e ouviu um sermão de quem
entendia do assunto: “não se pode filmar com a câmera em movimento, sai tudo
borrado, a câmera tem de ser fixa”. O jovem insistiu, chamou para uma aposta e
o cinegrafista filmou. Sua intenção era demonstrar o absurdo do pedido do
rapaz. Revelaram o filme e se deram conta que tinham inventado os movimentos de
câmera, um dos fundamentos da linguagem.
Georges Méliès, o ilusionista, o mágico de teatro
que se deu conta que o cinema podia narrar ficções, estava filmando o tráfego
de uma avenida de Paris, a câmera fixa no chão. Pessoas e carros passando. Sem
ele perceber, a grifa da câmera travou por alguns segundos e voltou a
funcionar. Grifa é a peça em forma de garfo que, nas câmeras antigas, puxa a
fita de celuloide para que ela fotografe 24 vezes por segundo. Com a pane da
grifa, a câmera parou de filmar durante uns instantes. Ao revelar o filme
Méliès se assustou e logo se maravilhou: na tela, um ônibus se transformava
instantaneamente em um carro fúnebre. De uma só tacada o ilusionista havia descoberto
a montagem e os efeitos especiais.
Mas vamos voltar ao cinema brasileiro, encerrando
com uma lenda protagonizada pelo cineasta William Cobbett, do Rio Grande
do Norte, diretor de Jesuino Brilhante, o Cangaceiro e outros filmes.
Aliás (outra lenda) Cobbett já havia sido abordado por um ator que
queria comprar seu nome, por ser charmoso e chamativo. No início da década
1970, Cobbett produziu um filme modesto sobre A vida de Jesus
Cristo, baixo orçamento, e pediu apoio para o lançamento ao presidente da
Embrafilme, o brigadeiro Armando Tróia.
O produtor queria lançar o filme imediatamente,
podia ser um circuito pequeno. Mas o militar presidente da empresa teve uma
ideia luminosa: “temos de lançar esse filme em Roma, no Vaticano”. Cobbett
tentou demovê-lo, isso levaria anos e ele precisava de alguma bilheteria agora,
tinha dívidas de produção a saldar. O presidente da Embrafilme surtou com a
própria ideia, uma Vida de Cristo brasileira no Vaticano, exibição pública na
Praça de São Pedro. E Cobbett desesperado, “eu estava falando da Baixada
Fluminense”. Não teve jeito, tinha de ser em Roma, com a presença do Papa. Não
aconteceu nada, é claro, e Cobbett ganhou a discussão, o filme foi exibido em
um circuito periférico. Só que um ano depois.
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