ABAIXO TEXTOS - CRÍTICAS - ENSAIOS - CONTOS - ROTEIROS CURTOS - REFLEXÕES - FOTOS - DESENHOS - PINTURAS - NOTÍCIAS

Translate

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Papo de Cinema


Coisa de cinema 
Por Orlando Senna

Creio que muitos de vocês já usaram ou ouviram a expressão “coisa de cinema” (ou simplesmente “de película”, como dizem os hispânicos), significando algo bonito, diferente, estranho, espetacular ou que se trata de uma mentira ou exagero. Uma vertente das coisas de cinema são as lendas cinematográficas, no mesmo sentido que damos a lendas urbanas ou lendas industriais — fatos que podem ter acontecido realmente mas não se tem certeza ou não se sabe exatamente como aconteceram e, por isso, as lacunas são preenchidas com a imaginação.
Glauber Rocha, com seu jeito muito peculiar de ser cineasta, é um manancial dessas lendas, uma fonte que está se tornando inesgotável com o passar do tempo, de vez em quando escuto uma história nova sobre seu comportamento atrás e diante das câmeras ou com pessoas que cruzaram seu caminho em sets de gravação, mesas de debates ou polêmicas (sobre seu famoso discurso nas ruas de Veneza, em 1980, já ouvi muitas versões diferentes e às vezes contraditórias).
Versa uma das lendas de Glauber que, durante a realização de Barravento, ele queria que a atriz Lucy Carvalho pisasse em uma poça d’água em uma das cenas e ela recusou, dizendo que a água estava suja, contaminada. Ele encheu as mãos com a água, mostrando que estava límpida, transparente, incolor. Os argumentos não convenceram a Lucy e, como ele queria aquela água e aqueles pés no seu filme, bebeu a água da poça. Lucy se curvou a esse argumento, a cena foi feita e Glauber baixou ao hospital com terrível disenteria.
Indo lá para o início da história, para os primeiros anos do cinema, encontramos duas lendas que estão diretamente ligadas à linguagem audiovisual, à magia dessa linguagem. Os irmãos Lumière, inventores do cinema, também inventaram os cinegrafistas ao ensinar a alguns fotógrafos como operar câmeras cinematográficas. Um desses cinegrafistas e seu jovem assistente foram mandados a Veneza para documentar a cidade, para fazer “vistas”, como se dizia na época.
Navegando em um dos canais de Veneza, em direção a uma praça onde iam ancorar a câmera e o tripé, o assistente reparou na beleza das casas passando lentamente diante de seus olhos. Disse ao chefe, ao cinegrafista, que ele devia filmar esse movimento e ouviu um sermão de quem entendia do assunto: “não se pode filmar com a câmera em movimento, sai tudo borrado, a câmera tem de ser fixa”. O jovem insistiu, chamou para uma aposta e o cinegrafista filmou. Sua intenção era demonstrar o absurdo do pedido do rapaz. Revelaram o filme e se deram conta que tinham inventado os movimentos de câmera, um dos fundamentos da linguagem.
Georges Méliès, o ilusionista, o mágico de teatro que se deu conta que o cinema podia narrar ficções, estava filmando o tráfego de uma avenida de Paris, a câmera fixa no chão. Pessoas e carros passando. Sem ele perceber, a grifa da câmera travou por alguns segundos e voltou a funcionar. Grifa é a peça em forma de garfo que, nas câmeras antigas, puxa a fita de celuloide para que ela fotografe 24 vezes por segundo. Com a pane da grifa, a câmera parou de filmar durante uns instantes. Ao revelar o filme Méliès se assustou e logo se maravilhou: na tela, um ônibus se transformava instantaneamente em um carro fúnebre. De uma só tacada o ilusionista havia descoberto a montagem e os efeitos especiais.
Mas vamos voltar ao cinema brasileiro, encerrando com uma lenda protagonizada pelo cineasta William Cobbett, do Rio Grande do Norte, diretor de Jesuino Brilhante, o Cangaceiro e outros filmes. Aliás (outra lenda) Cobbett já havia sido abordado por um ator que queria comprar seu nome, por ser charmoso e chamativo. No início da década 1970, Cobbett produziu um filme modesto sobre A vida de Jesus Cristo, baixo orçamento, e pediu apoio para o lançamento ao presidente da Embrafilme, o brigadeiro Armando Tróia.

O produtor queria lançar o filme imediatamente, podia ser um circuito pequeno. Mas o militar presidente da empresa teve uma ideia luminosa: “temos de lançar esse filme em Roma, no Vaticano”. Cobbett tentou demovê-lo, isso levaria anos e ele precisava de alguma bilheteria agora, tinha dívidas de produção a saldar. O presidente da Embrafilme surtou com a própria ideia, uma Vida de Cristo brasileira no Vaticano, exibição pública na Praça de São Pedro. E Cobbett desesperado, “eu estava falando da Baixada Fluminense”. Não teve jeito, tinha de ser em Roma, com a presença do Papa. Não aconteceu nada, é claro, e Cobbett ganhou a discussão, o filme foi exibido em um circuito periférico. Só que um ano depois.

Nenhum comentário: