SONETO DO VINHO
Jorge
Luis Borges
Em que reino, em que século, sob que silenciosa
Conjunção dos astros, em que dia secreto
Que o mármore não salvou, surgiu a valorosa
E singular idéia de inventar a alegria?
Com outonos de ouro a inventaram.
O vinho flui rubro ao longo das gerações
Como o rio do tempo e no árduo caminho
Nos invada sua música, seu fogo e seus leões.
Na noite do júbilo ou na jornada adversa
Exalta a alegria ou mitiga o espanto
E a exaltação nova que este dia lhe canto
Outrora a cantaram o árabe e o persa.
Vinho, ensina-me a arte de ver minha própria
história
Como se esta já fora cinza na memória.
A
LOTERIA DA BABILÔNIA
Jorge
Luís Borges
Como
todos os homens da Babilônia, fui pro-cônsul; como todos, escravo; também
conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita
falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma
tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua
cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos
de Alep, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo
do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante
um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o
pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Numa
câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança
foi-me fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico conta com
admiração que Pitágoras se lembrava de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda
um outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à
morte, nem mesmo à impostura.
Devo
essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas desconhecem
ou que nelas trabalha de forma imperfeita e secreta: a loteria. Não indaguei a
sua história; sei que os magos não conseguem por-se de acordo; sei dos seus
poderosos propósitos; o que pode saber da Lua o homem não versado em
astrologia. Sou de um país vertiginoso onde a loteria é a parte principal da
realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses
indecifráveis ou do meu coração. Agora longe da Babilônia e dos seus estimados
costumes, penso com certo espanto na loteria e nas conjecturas blasfemas que ao
crepúsculo murmuram os homens velados.
Meu pai
contava que antigamente — questão de séculos, de anos? — a loteria na Babilônia
era um jogo de caráter plebeu. Referia (ignoro se com verdade) que os barbeiros
trocavam por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de
símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem
outra confirmação da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era
elementar, como os senhores vêem.
Naturalmente,
essas “loterias” fracassaram. A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a
todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença
pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder
dinheiro. Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de alguns números adversos
no censo dos números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de
retângulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar
uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números
favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do
público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não adquiria sortes era
considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo esse desdém justificado
duplicou-se. Eram desprezados aqueles que não jogavam, mas também o eram os que
perdiam e abonavam a multa. A Companhia (assim começou então a ser chamada)
teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se nas caixas
faltasse a importância quase total das multas. Propôs uma ação judicial contra
os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas, ou a
uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia.
Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: o seu valor
eclesiástico, metafísico.
Pouco depois,
as informações dos sorteios omitiram as referências de multas e limitaram-se a
publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo,
quase inadvertido a seu tempo, foi de capital importância. Foi o primeiro
aparecimento, na loteria, de elementos não pecuniários. O êxito foi grande.
Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números
adversos.
Ninguém
ignora que o povo da Babilônia é devotíssimo à lógica, e ainda à simetria. Era
incoerente que se computassem os números ditosos em moedas redondas e os
infaustos em dias e noites de cárcere. Alguns moralistas raciocinaram que a
posse das moedas não determina sempre a felicidade e que outras formas de
ventura são talvez mais diretas.
Inquietações
diversas propagavam-se nos bairros desfavorecidos. Os membros do colégio
sacerdotal multiplicavam as apostas e gozavam de todas as vicissitudes do
terror e da esperança; os pobres (com inveja razoável ou inevitável) sabiam-se
excluídos desse vaivém, notoriamente delicioso. O justo desejo de que todos,
pobres e ricos, participassem por igual na loteria, inspirou uma indignada
agitação, cuja memória os anos não apagaram. Alguns obstinados não
compreenderam (ou simularam não compreender) que se tratava de uma ordem nova, de
uma necessária etapa histórica… Um escravo roubou um bilhete carmesim, que no
sorteio lhe deu direito a que lhe queimassem a língua. O código capitulava essa
mesma pena para o que roubava um bilhete. Alguns babilônios argumentavam que
merecia o ferro candente, na sua qualidade de ladrão; outros, magnânimos, que
se devia condená-lo ao carrasco porque assim o havia determinado o azar… Houve
distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue; mas a gente babilônica
finalmente impôs a sua vontade, contra a oposição dos ricos. O povo conseguiu
plenamente os seus generosos fins. Em primeiro lugar, conseguiu que a Companhia
aceitasse a soma do poder público. (Essa unificação era indispensável, dada a
vastidão e complexidade das novas operações.) Em segunda etapa, conseguiu que a
loteria fosse secreta, gratuita e geral. Ficou abolida a venda mercenária de
sortes. Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre participava
automaticamente dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus
de sessenta em sessenta noites e que demarcavam o seu destino até o próximo
exercício. As conseqüências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia
motivar-lhe a elevação ao concílio dos magos ou a detenção de um inimigo
(conhecido ou íntimo), ou a encontrar, nas pacíficas trevas do quarto, a mulher
que começava a inquietá-lo ou que não esperava rever; uma jogada adversa: a
mutilação, a infâmia, a morte. Às vezes, um fato apenas — o vil assassinato de
C, a apoteose misteriosa de B — era a solução genial de trinta ou quarenta sorteios.
Combinar as jogadas era difícil; mas convém lembrar que os indivíduos da
Companhia eram ( e são) todo-poderosos e astutos. Em muitos casos, teria
diminuído a sua virtude o conhecimento de que certas felicidades eram simples
fábrica do acaso; para frustrar esse inconveniente, os agentes da Companhia
usavam das sugestões e da magia. Os seus passos e os seus manejos eram
secretos. Para indagar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada um,
dispunham de astrólogos e de espiões. Havia certos leões de pedra, havia uma
latrina sagrada chamada Qaphqa, havia algumas fendas no poeirento aqueduto que,
conforme a opinião geral, levavam à Companhia; as pessoas malignas ou benévolas
depositavam delações nesses sítios. Um arquivo alfabético recolhia essas
notícias de veracidade variável.
Por
incrível que pareça, não faltavam murmúrios. A Companhia, com a sua habitual
discrição, não replicou diretamente. Preferiu rabiscar nos escombros de uma
fábrica de máscaras um argumento breve, que agora figura nas escrituras
sagradas. Essa peça doutrinal observava que a loteria é uma interpolação da
casualidade na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é
confirmá-lo. Salientava, da mesma maneira, que esses leões e esse recipiente
sagrado, ainda que não desautorizados pela Companhia (que não renunciava ao
direito de os consultar), funcionavam sem garantia oficial.
Essa
declaração apaziguou os desassossegos públicos. Também produziu outros efeitos,
talvez não previstos pelo autor. Modificou profundamente o espírito e as
operações da Companhia. Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está para
zarpar; mas tratarei de os explicar.
Por
inverossímil que seja, ninguém tentara até então uma teoria geral dos jogos. O
babilônio é pouco especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida,
a esperança, o terror pânico, mas não lhe ocorre investigar as suas leis
labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não obstante, a
declaração oficiosa que mencionei instigou muitas discussões de caráter
jurídico-matemático. De uma delas nasceu a seguinte conjectura: Se a loteria é
uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não
conviria que a casualidade interviesse em todas as fases do sorteio e não
apenas numa? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as
circunstâncias dessa morte — a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou
de um século — não estejam subordinadas ao acaso? Esses escrúpulo tão justos
provocaram, por fim, uma reforma considerável, cujas complexidades (agravadas
por um exercício de séculos) só as entendem alguns especialistas, mas que
intentarei resumir, embora de modo simbólico.
Imaginemos
um primeiro sorteio que decrete a morte de um homem. Para o seu cumprimento
procede-se a um outro sorteio, que propõe (digamos) nove executores possíveis.
Desses executores quatro podem iniciar um terceiro sorteio que dirá o nome do
carrasco, dois podem substituir a ordem infeliz por uma ordem ditosa (o
encontro de um tesouro, digamos), outro exacerbará (isto é, a tornará infame ou
a enriquecerá de torturas), outros podem negar-se a cumpri-la… Tal é o esquema
simbólico. Na realidade o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é
final, todas se ramificam noutras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios
requerem um tempo infinito; em verdade, basta que o tempo seja infinitamente
subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a Tartaruga. Essa
infinitude condiz admiravelmente com os sinuosos números do Acaso e com o
Arquétipo Celestial da Loteria, que os platônicos adoram… Um eco disforme dos
nossos ritos parece ter reboado no Tibre: Ello Lampridio, na Vida de Antonino
Heliogábalo, refere que este imperador escrevia em conchas as sortes que
destinava aos convidados, de forma que um recebia dez libras de ouro, e outro,
dez moscas, dez leirões, dez ossos. É lícito lembrar que Heliogábalo foi
educado na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo.
Também
há sorteios impessoais, de objetivo indefinido; um ordena que se lance às águas
do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte
um pássaro, outro, que secularmente se retire (ou se acrescente) um grão de
areia aos inumeráveis que há na praia. As conseqüências são, às vezes,
terríveis.
Sob o
influxo benfeitor da Companhia, os nossos costumes estão saturados de acaso. O
comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno não estranhará se uma
delas contiver um talismã ou uma víbora; o escrivão que redige um contrato não
deixa quase nunca de introduzir algum dado errôneo; eu próprio, neste relato
apressado, falseei certo esplendor, certa atrocidade. Talvez, também, uma
misteriosa monotonia… Os nossos historiadores, que são os mais perspicazes da
orbe, inventaram um método para corrigir o acaso; é de notar que as operações
desse método são (em geral) fidedignas; embora, naturalmente, não se divulguem
sem alguma dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a
história da Companhia… Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser
obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro
sem qualquer divergência em cada um dos exemplares. Os escribas prestam
juramento secreto de omitir, de intercalar, de alterar. Também se exerce a
mentira indireta.
A
Companhia, com modéstia divina, evita toda publicidade. Os seus agentes, como é
óbvio, são secretos; as ordens que distribui continuamente (talvez
incessantemente) não diferem das que prodigalizam os impostores. Para mais,
quem poderá gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisa um
mandato absurdo, o sonhador que desperta de súbito e estrangula a mulher a seu
lado, não executam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? Esse
funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, provoca toda espécie de
conjecturas. Uma insinua abominavelmente que há séculos não existe a Companhia
e que a sacra desordem das nossas vidas é puramente hereditária, tradicional;
outra julga-a eterna e ensina que perdurará até a última noite, quando o último
deus aniquilar o mundo. Outra afiança que a Companhia é onipotente, mas que
influi somente em coisas minúsculas: no grito de um pássaro, nos matizes da
ferrugem e do pó, nos entressonhos da madrugada. Outra, por boca de heresiarcas
mascarados, que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, argumenta que
é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação, porque a
Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.
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