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quarta-feira, 15 de maio de 2013

UM CONTO DE REIS


INDISPENSÁVEL LÍRICA PUNK

 Fábio Carvalho

- Se fazer cinema é diversão, você se preocupa com o sucesso? Se o meu filme fizesse um enorme sucesso, se agradasse a todos, ficaria muito preocupado. Espero que agrade o suficiente para que eu possa fazer outros. Provavelmente, se bem me lembro, nos transformamos a partir daquele novo encontro. Voltamos a ser quem éramos. A escrita voltou a me atazanar, me tirando a afinação para a partida que eu estava pronto para enfrentar com muito prazer e o condicionamento necessário, naquele cenário, rigorosamente arquitetado para a malemolência corporal dos escolhidos atores, que deram luz às suas personagens por mim desenhadas com lápis duro. Um pouco de despreparo também é bom, temos que ativar a imaginação e podemos agradar a intuição que é muito sofisticada, já agora no início do segundo tempo da prorrogação. Bom dia senhoras e senhores! Hoje vou lhes apresentar o amarelo. Ouviram as crianças ouriçadas da plateia de um garboso jovem mestre Guignard, ainda no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O mar estava calmo. Pelo menos por enquanto. Não há, então, ninguém entre nós que possa extrair para outrem os ensinamentos dessa indispensável lição da felicidade e da infelicidade, da virtude e do vício. Trata-se de qualquer coisa que cada um de nós tem de aprender por si próprio. Para poder aprendê-lo, deve gozar de uma total liberdade de tentar todas as experiências que considere necessárias. Algumas dessas experiências são bem sucedidas, recebem o nome de virtudes; outras falham e, porque falham, recebem o nome de vícios. Claro que não fui eu quem escreveu este último parágrafo e meio, ele foi escrito com bastante embasamento pelo advogado norte americano Lysander Spooner que ao longo da década de 1860 envolveu-se no movimento do Pensamento Livre. Spooner gradualmente tornou-se mais radical. Muito de sua crônica crítica econômica, financeira e política, estava baseada no argumento de que muitas medidas tomadas pelo governo eram inconstitucionais. Vícios não são crime. Conquistei a dialética no reservado e me senti muito bem. Ontem quando minha bela fonoaudióloga Cynthia revelou, durante a segunda sessão em que eu a estava filmando, que aquele era dia do seu aniversário de trinta anos, lembrei que quando consegui filmar pela primeira vez a bela cantriz Sylvia Klein em um fim de julho do século passado, também ela, naquele dia, completava trinta anos. Senti que eu era redivivo o próprio Honoré de Balzac, aquele que escreveu A Mulher de Trinta que nunca li. As Ilusões Perdidas, já. Depois da filmagem em silêncio me pus a imaginar o seguinte: eu tinha cometido o crime perfeito, num assalto épico teria roubado uma fortuna de um banco, melhor dizendo, de uma fundação tipo Centro Cultural Banco do Brasil ou Instituto Moreira Sales ou quem sabe ainda, da Petrobrás. Assalto esse que ficaria famoso pela sua arquitetura ousada e perfeita, numa ação sem precedentes que teria que ser legitimada como uma grande obra de arte. Na sequencia eu mesmo abandonaria minha vida, as filhas, a mulher, os amigos, o cinema, enfim tudo e todos e fugiria para a Jamaica com a jovem fonoaudióloga. Viveria outro personagem. Livre de todas as obrigações, eu e ela, sem desgastes nem implicações, seríamos felizes para sempre. Comecei a questionar um happy end tão pouco original e a pensar quanto tempo duraria nosso romance. Ela tem vinte anos menos que eu, talvez fosse melhor fugir sozinho, daria menos trabalho. Olhei bem. Que nada! Vou fugir com ela, não iria me trair ao ponto de não experimentá-la, afinal esse poderia ser apenas o começo do nosso longo e lascivo enganche no sem fim, ninguém imaginaria, nem o vento. A manchete seria: “Rouba milhões da Fundação e foge com fonoaudióloga”. Eu leria os jornais com um sorriso maquiavélico na beira do mar tomando um dry martini a la Buñuel enquanto queimava um charo do bom jamaicano. Engraçadinhas essas minhas imaginações não? Espero que ninguém veja nem ouça. O problema é que a imaginação imagina. O samba é meu e a culpa dela. Agora à noite encontrei com meu velho amigo da pré-história, o Alexandre, que além do mais é meu primo, pois somos do Carvalho. Notei que ele está a cara do Dennis Hopper no filme Veludo Azul, fato que ele não deu muita atenção, naquele momento etílico moderado. Ainda bem que não bebo mais, só minto um pouquinho e já não subo aquela escada em caracol na carreira, sem rumo, na estrada perdida do chato do David Lynch. Sem destino e sem desatinos. Não podemos esquecer a magnífica Isabella Rossellini cantando languidamente, suavemente, iluminando a luz azul. Todos nós sabemos, ela tem pedigree, nasceu do amor escandaloso da Ingrid e do Roberto. Amor louco. O tempo é nosso algoz e ao mesmo tempo parceiro na nossa montagem encadeada. Eu quero o que fizer bem para você. Então o que prepara para nós? Um outro filme sem esperança? O que quis mostrar com este filme? Não quis demonstrar nada. Não tenho mensagens para a humanidade. Lamento. Para ser sincero quis fazer um filme divertido. Aliás, um filme para me divertir. Veja, que nenhum produtor me ouça, mas acho o cinema um brinquedo maravilhoso. Um fabuloso passa tempo. Confesso que, apesar de admirar seus filmes, a figura do grande diretor Federico Fellini nunca me atraiu muito. São dele as declarações acima. Sempre podemos separar a obra da personagem que lhe deu vida. Devemos é a melhor palavra para a frase anterior, vou me permitir então terminar esse textinho com mais um sonho sonhado ontem à noite. Seguramente entrei na igreja de Lourdes e em frente ao altar exatamente na segunda fileira, me esperava uma linda mulher loura de cabelos longos cacheados, toda em preto e branco, ajoelhada do lado direito. Imediatamente sorrindo, como um aspirador, sugou-me para dentro dela. De novo estávamos viajando na cabine do trem pelo vale do luar, vindos de Paris rumo a Madri. Era noite alta. Delírios de janela aberta, junto uma Bem-te-vi desenfreada repetia sua ladainha e ainda mais ao longe cantava um galo doido e rouco fora de hora. Se bem que toda hora é hora. Tudo junto naquele momento, várias camadas. Estamos no meio do Fórum, vários tipos de advogados e juízes passavam em nada consta para lá e para cá. Escapamos ilesos nos enroscando pelos becos, sem ninguém perceber, só as mulheres. Paramos em uníssono, pela rua da cidade baixa ela caminhou se afastando de mim na luz do por do sol. Antes de dobrar a esquina ela se virou e viu que eu também a olhava. A epifania finalmente chegou. People, hells and angels é a trilha sonora. Foxy lady.

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