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sexta-feira, 10 de maio de 2013

UM CONTO DE REIS


MINHA PRIMEIRA ANESTESIA GERAL
 Fábio Carvalho

GaloDoido Cinematográfica. Ao contrário do que todos me alertaram, minha primeira experiência como anestesiado foi por assim dizer, estimulante. Vou me explicar melhor. Falaram que eu voltaria com falta de ar, grogue com dor de cabeça e com mal estar total.
Comecei achar que nem voltaria. Nos dias que antecederam o que viria a ser a primeira intervenção cirúrgica que sofreria nos meus ainda não completados cinqüenta anos de existência, eu alternava a sensação de um distanciamento tranqüilo com outras, em que choques anafiláticos, infecções hospitalares e infartos fulminantes dominavam minha cabeça. Os paraísos artificiais que me acolheram durante tanto tempo eram os responsáveis pelo meu infortúnio momentâneo. A troco de quê tinha acelerado tanto? Qual a necessidade de ter sido tão voraz, se minhas atitudes desenfreadas muitas vezes tinham arranhado minhas relações mais próximas. Qual seria esta razão obscura? Jamais saberei a resposta. Lembrei foi do Tim Maia dizendo que teve que parar de fumar, cheirar e beber durante dez dias, portanto ele tinha perdido dez dias de sua vida. Gracinha de doidão. O menor músculo do corpo humano, logo ali fui atingido. Na vibração da voz. No som. O difícil era ter que enfrentar o mundo com minha boca fechada. Coisa muito complexa, apesar de temporária, até comecei a ter vários pesadelos em que gritava e minha voz não saía. Mas tinha que cumprir esta etapa. Muito irritante. Bom, voltando àquela manhã, eu levantei às seis horas, tinha combinado com o Dr. Lobo de chegar à clínica onde seria feita a intervenção às sete. Não me atrasei. Era uma segunda feira, eu estava de jejum completo que inclui água, desde as vinte e duas horas de domingo. Tomei uma ducha de maneira bastante tranquila  depois comecei a imaginar que estava indo para a câmara de gás ou para a cadeira elétrica e as coisas que eu usava naquele momento, nunca mais veriam minha nobre pessoa. Pela última vez usaria aquela toalha, a escova de dentes em seguida iria para o lixo e assim por diante. Como se objetos vissem alguma coisa. Uma doença, velho. Minha gata branca não mais se enroscaria em minhas pernas pelas manhãs para pedir sua ração, nem aquele beijo que mora na área seria mais regado por mim. Eu não teria escapatória. A hora de minha passagem para o além já tinha chegado. De qualquer jeito não tinha nada a fazer e nem que pagar mais conta nenhuma e ainda estaria livre para não cumprir mais nenhum compromisso. Ao menos alguma vantagem teria. Esta era a minha contrapartida e satisfação merecida. Corda vocal é o nome artístico de prega vocal. Para sempre Mozart. Mais ou menos sete e meia me adentraram no quarto que seria meu lar naquele dia. Em seguida uma gordinha sorridente com o nome espanhol de Rossita, me deu as boas vindas e me apresentou com voz serena e delicada a roupa azul desbotada que teria de vestir. A abertura deveria ficar para trás. A liberdade custa caro. É como uma imagem que vem de longe. São duas lado a lado. Ao lado dela estou eu, ela eu nunca vi. Mas a mim me reconheço. Em verdade não me lembro de nada disso. Deve ter acontecido longe daqui, ou mais tarde. Depois que o terceiro jovem médico estagiário foi ao quarto me conhecer e perguntar se eu tinha alergia a algum remédio, o Dr. Lobo com seu jeito calmo e cúmplice veio me ver. Batemos um papo rápido e agradável para sanar minhas pequenas dúvidas restantes. Passados dez minutos que o Dr. Lobo me deixara, um enfermeiro negão bastante simpático veio me buscar para o palco. Era chegada a hora da apresentação. Deitado com o pescoço fixado, meu campo de visão se resumia ao reflexo do refletor apagado em cima do meu rosto. Se estivesse aceso eu pediria meus óculos escuros. Estava cercado pelos assistentes que se descontraiam dizendo bobagens, inevitavelmente começaram a falar de futebol. Então entra em cena ele, o anestesista.
Todo anestesista é engraçadinho, como todos vocês sabem. Este meu então, enquanto me dava uma agulhada, começou a falar que a extraordinária fase do Galo era fogo de palha e já estava no fim, e a ainda que o mameluco R10 tinha esquecido da noite para o dia como se joga futebol. No exato momento quando fui responder, um dos assistentes colocou uma máscara de oxigênio na minha boca e pediu para eu encher o peito de ar e soltar bem devagar. Sem movimento, sem profundidade, nenhuma ilusão. O sagrado. Calmamente meus olhos se reabriram já no aconchego do quarto, para em instantes irresistível e prazerosamente tornarem a se fechar. Ela andava descalça nas pontas dos pés, metida em um vestido rodado vermelho com uma blusinha de lã preta, pelas ruas desertas da Savassi, eu a seguia por trás observando o leve e sinuoso remelexo das ancas, resultante do movimento compassado do metrônomo em cima do piano de calda. Afagos visuais. Depois ela estava nua sentada no meu colo na varanda de um repleto restaurante do mercado distrital do cruzeiro, todos imóveis olhavam para nós. Nada nos incomodava. Nossas bocas vibravam enroscadas, nós éramos bocas e línguas que viam que ouviam e sentiam sem nenhum constrangimento ou pudor. Todos ao redor aprovavam com o olhar. Agora ela estava deitada em uma cama no alto de um edifício. Eu vinha me equilibrando pelo telhado do outro prédio, coisa que me era recorrente, ela sorria e me chamava. Nisto passa por mim o Zé Dias de terno preto empurrando um baixo acústico com rodinhas pelo parapeito lateral e me fala em segredo que aquela velha senhora pianista era sua amante secreta e me convida para tomar uma no Bar do Cabral. A viagem continuava muito ensolarada com um clima fresco, no jardim ao lado da estrada minhas filhas de novo crianças, brincavam com os passarinhos e uma borboleta azul. Despertei confortável sem dor alguma, comi uma canja de galinha, não fumei não bebi e não falei mais durante anos luz. Tudo rosa. Dizem que a linguagem faz um recorte arbitrário dos objetos na realidade. Como se a culpa fosse nossa. Voltei de espaçonave para o berço caseiro e ontem durante o sonho no meio da noite com a cabeça encostada na janela, pude ver por entre uma fresta da cortina exatamente no centro a lua branca brilhante em forma de concha. A fonoaudióloga Cynthia, bela e elegante como Audrey Hepburn, me ensinou a fazer o trrr....o zzz....e o brrr....à maneira como ela mesma prescreveu. Na segunda sessão vou filmá-la em ação. Tentem ver alguma coisa, tentem imaginar alguma coisa. No primeiro caso dizemos: olhe. No segundo caso dizemos: feche os olhos. Campo e contra campo. Imaginário: certeza. Real: incerteza. Ela sussurra cantando em francês no meu ouvido. O princípio do cinema: ir até a luz e apontá-la para nossa noite. Nossa música.   

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