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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cartas

RECADO

Você, meu caro leitor, faz todos os dias comigo uma viagem com a minha cabeça, com meus pensamentos e reflexões sobre uma quantidade ilimitada de assuntos recolhidos dia após dia aqui nesta revista eletrônica e sabe que em outras páginas também venho depositando a memória de toda arte poética que encontro e me encanta neste meu caminho. Exercito às vezes a criação de alguns textos críticos e algumas notas informativas. Aos poucos vou revelando e entregando a vocês o meu tesouro escondido: o meu cinema de invenção – Cineartesão – e também os meus roteiros nunca filmados. O Celukino – a visão imediatista de um celular. Fotos ilustrativas dos textos e os meus trabalhos nas artes plásticas. Exponho-me de coração aberto e fico feliz com os meus cinqüenta visitantes/dia.
Participem mais com comentários, críticas, interagindo pelas páginas elétricas do KYNOMA comigo e com todos. Há mais de dois anos vocês já me conhecem. Eu gostaria muito agora de conhecer vocês... Não precisam se identificar, mas participem, mande logo o seu recado pelo josesetteb@yahoo.com.br

CARTA AO PAI

F. Kafka


Querido pai,
Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente.
E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas conseqüências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.
Para ti a questão sempre se apresentou bem simples, pelo menos enquanto falaste dela diante de mim e, sem cuidar a quem, diante de muitos outros. Para ti as coisas pareciam ser mais ou menos assim: trabalhaste pesado durante tua vida inteira, sacrificaste tudo pelos teus filhos, e sobretudo por mim, enquanto eu “vivi numa boa” por conta disso, gozei de toda a liberdade para estudar o que bem quisesse, não precisei ter nenhuma preocupação com meu sustento e portanto nenhuma preocupação, fosse qual fosse; não exigiste gratidão em troca disso, tu conheces “a gratidão de teus filhos”, mas pelo menos um pouco de boa vontade, algum sinal de simpatia; em vez disso eu sempre me encafuei de ti em meu quarto, com meus livros, com amigos malucos, com idéias extravagantes; falar de maneira aberta contigo eu jamais falei, no templo jamais fui ao teu encontro, em Franzensbad jamais te visitei e aliás jamais tive senso de família, não me importei com o negócio nem com teus demais assuntos, a fábrica eu joguei às tuas costas e depois te abandonei, apoiei Ottla em sua teimosia e, enquanto não movo um dedo por tua causa (nem sequer uma entrada de teatro eu trago a ti), faço tudo por estranhos. Se resumires teu veredicto a meu respeito, te darás conta de que não me acusas de nada indecoroso ou mau, é verdade (excetuado talvez meu último propósito de casamento), mas sim de frieza, estranheza, ingratidão. E tu me acusas de tal modo, como se fosse culpa minha, como se eu pudesse, com uma guinada no volante, por exemplo, conduzir tudo para outra direção, ao passo que tu não tens a menor culpa a não ser talvez pelo fato de ter sido demasiado bom para comigo.
Essa tua maneira usual de ver as coisas eu só considero certa na medida em que mesmo eu acredito que não tenhas a menor culpa em nosso alheamento.
Mas também eu não tenho a menor culpa. Se eu pudesse te levar a reconhecê-lo, então seria possível, não uma nova vida – que para isso estamos ambos velhos demais –, mas uma espécie de paz, não a cessação, mas pelo menos um abrandamento das tuas intermináveis acusações.
Curiosamente tu tens alguma noção a respeito daquilo que estou querendo dizer. Assim, por exemplo, disseste há algum tempo: “Eu sempre gostei de ti, mesmo que na aparência eu não tenha te tratado como outros pais costumam tratar seus filhos, justamente porque não sei fingir como eles”. Ora, pai, no que diz respeito a mim, jamais cheguei a duvidar de tua bondade para comigo, mas considero esta observação incorreta. Tu não consegues fingir, é verdade, mas afirmar, apenas por esse motivo, que os outros pais fingem é ou pura mania de mostrar razão a fim de acabar com a discussão ou – e é isso que de fato acontece, na minha opinião – a expressão disfarçada de que as coisas entre nós não estão em ordem e de que tu ajudaste a provocá-las, mas sem culpa. Se de fato pensas assim, então estamos de acordo.
Naturalmente, não quero dizer que me tornei o que sou apenas através da tua ascendência. Isso seria por demais exagerado (e eu até me inclino a esse exagero).
É bem possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me tornar um ser humano na medida em que oteu coração o desejava. É provável que mesmo assim eu me tornasse um homem débil, amedrontado, hesitante, inquieto, nem um Robert Kafka nem um Karl Hermann, mas de todo diferente do que hoje sou, e nós poderíamos suportar um ao outro de forma maravilhosa.
Eu teria sido feliz em ter a ti como amigo, como chefe, como tio, como avô, até mesmo (embora já mais hesitante) como sogro. Mas justamente como pai tu foste demasiado forte para mim, sobretudo porque meus irmãos morreram ainda pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar por inteiro e sozinho o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais.
Compara-nos um com o outro: eu, para expressá-lo de maneira bem atrevida, um Löwy com um certo undo kafkiano, mas que por certo não é acionado pela vontade de viver, de fazer negócios e de conquistar kafkianas, mas por um aguilhão löwyano, que atua de maneira mais secreta, mais tímida, em outra direção e muitas vezes inclusive cessa de todo. Tu, ao contrário, um verdadeiro Kafka na força, na saúde, no apetite, na potência da voz, no dom de falar, na auto-satisfação, na superioridade diante do mundo, na perseverança, na presença de espírito, no conhecimento dos homens, em certa generosidade, naturalmente também com todos os defeitos e fraquezas que fazem parte dessas qualidades, nas quais teu temperamento e por vezes tua cólera te precipitam. Talvez não sejas um Kafka completo em tua visão geral de mundo, pelo menos na medida em que posso comparar-te a tio Philipp, a Ludwig, a Heinrich.
Isso é curioso, mas aqui também não vejo com muita clareza.
É que eles eram mais alegres, mais dispostos, mais desenvoltos, mais levianos, menos rigorosos do que tu. (Nisso, aliás, herdei muito de ti e administrei a herança bem demais, sem no entanto ter no meu ser os contrapesos necessários conforme tu os tens.) Por outro lado, tu também atravessaste outros tempos no que diz respeito a isso, foste talvez mais alegre, antes de os teus filhos, sobretudo eu, te decepcionarem e oprimirem em casa (pois quando chegavam estranhos, eras diferente) e talvez agora voltaste a ficar mais alegre, uma vez que os netos e o genro te devolveram um pouco daquele calor que os filhos não puderam te dar, a não ser Valli, talvez.
Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim.

Um comentário:

renata montechiare disse...

Eu adoro esse texto do Kafka. Na verdade gosto de tudo que li dele até hoje. E vou a Praga no próximo mês sentir de perto a onda dessa cidade. beijos