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sábado, 25 de setembro de 2010

CONTO

Grua durante a filmagem de "Um Filme 100% Brazileiro" 1985

Ardil

Ser ou não ser, eis a questão. Matar ou Morrer... Por que não se matar? Pensou o médico e escritor mineiro que se matou. O que anda acontecendo com as melhores cabeças da minha geração?

Outro dia falei com um grande ator e amigo e ele, em Minas, de frente à praça e de costas para a igreja, confessava, chorando e rindo ao mesmo tempo, o seu amor perdido e o seu sentimento infinito de fracasso.

Um grande ator desempregado, um ator popular maldito pela ignorância de muitos, interpretava no telefone público um dos seus personagens prediletos.

Macbeth, era dos trágicos o que ele mais havia decorado os textos.

Ele tinha naquele momento perdido a sua mulher, depois de uma briga por não ter conseguido o papel do jardineiro assassino em um filme de grande produção que começava a ser rodado ali, na praça, na sua frente, em sua cidade.

Ouço o seu lamento e fico imaginando o quanto seria bom para o nosso país, para o nosso povo, se os artistas independentes pudessem dispor de pequenas quantias e espaços pequenos para produzir e expor os seus grandes projetos.

- Preferiram aquele canastrão da novela!

Disse-me ele já encenando na rua, com o telefone na mão como se fosse um punhal, interpretando um dos personagens de Shakespeare que ele mais ensaiava nos seus diálogos com o espelho:

- “Se tivesse eu morrido uma hora antes deste acontecimento, teria tido uma vida um pouco mais feliz!... Mas a partir deste instante, nada há mais que seja sério no destino humano: tudo é brinquedo; a glória e a graça morreram; o vinho da vida foi derramado e no fundo da adega só sobraram às fezes! Quem pode ser sábio e idiota, moderado e furioso, leal e indiferente? Ninguém! O ímpeto do meu violento amor deixou para trás a lenta razão. Ali estão os meus assassinos, empapados nas cores da própria profissão, com as adagas monstruosamente embainhadas no sangue da traição...”.

Ele tinha por habito ensaiar trechos retirados aleatoriamente de algum dos famosos personagens do dramaturgo inglês, todos os dias, em frente ao grande espelho que havia no seu quarto. Ele sempre iniciava a encenação com uma adaptação daquela famosa e popular frase de Napoleão: “Destes versos, do inesquecível bardo, mais de 400 anos vos contemplam”.

- A última vez que representei este poema estava andando pela rua quando cheguei à porta do cemitério, dizia-me ele ao telefone: Entrei pelos corredores frios de cruzes e anjos, pedindo aos mortos uma luz, um caminho, que pudesse me livrar dessa terrível miséria, mas nada ouvi, nada me foi dito ou mostrado... Então largou o telefone no ar...

Ele ainda não havia almoçado e com a fome não podia ainda pensar em presentear ao seu distinto público com o seu melhor espetáculo, com sua tragédia preferida, com sua melhor representação, o seu maior sofrimento:

- Depois do almoço volto aqui e acabo com toda essa farsa...

Pensava ele: ... Se tivesse a oportunidade de sobreviver continuando o meu trabalho de ator, se me fosse dado, e a todos iguais a mim, uma chance de valorizar a imagem do povo brasileiro, em vez de trabalhar 10 horas por dia cortando a grama em uma rede de supermercado para sobreviver, estaria agora trabalhando nesse filme...

Ele comeu a refeição oferecida pelo amigo no restaurante da praça e de sobremesa tomou um copo de cachaça; depois apalpou o punhal que estava no bolso e saiu enlouquecido em direção ao set de filmagem disposto a tudo...

Esse ator de gênio forte, pensava em se matar, mas não tinha coragem. Estava tudo saindo errado na vida, os projetos não davam certos, as produções estagnaram-se e a solidão, morando com a mãe, era terrível. Nada mais valia à pena nem o sacrifício do artista.

Então ele invadiu a cena que estava sendo registrada por uma grande equipe de profissionais, agarrou a jovem atriz, todos ficaram espantados, ele era conhecido e todos clamavam para que soltasse a menina que ele mantinha imóvel com o punhal espetando na pele branca do pescoço... A câmera continuava a rodar a cena. Um homem sai do meio das pessoas que o rodeavam e dispara sua arma na cabeça do ator que cai no chão. A menina atriz ensangüentada é retirada de cena. A câmera se aproxima do corpo no chão. Algumas pessoas chegam perto do ator e chutam o seu rosto...

Alguma coisa mudaria após a exibição desse filme? Seria essa outra história em outro país?

Por muito menos, pensei eu: o poeta Mário de Sá-Carneiro tomou veneno num hotel de Paris.

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