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sexta-feira, 9 de abril de 2010

CONTO

Já é noite alta. O mar esta batendo forte no casco do meu barco. Preciso mudar de cara e de roupa novamente, para ser outro ser ao chegar à cidade nesta manhã de domingo. Olho-me no espelho pendular e digo a mim mesmo: - O disfarce do ser é o único meio de chegar mais perto do objeto desejado sem ser descoberto.
Em outro tempo, uma fazenda mineira. Na sua varanda centenária esta Demóstenes, mais jovem ao lado de sua mulher Mariana, pousando para uma fotografia. Na foto, um tanto bizarra, ensaiada, ele mostra um documento, mão a mão, segurando o papel envelopado do testamento passado para sua mulher.
Na casa de Gabriel, Marcos anda em sua direção com a foto do documento agora em sua mão falando alto em tom de deboche:
- Meu pai já devia estar gagá quando fez essa foto...
Gabriel:
- Marcos, cuidado! Lembre-se que essa mulher na foto é a minha mãe, não a sua.
Marcos:
- Eu sei! Eu sei!... Desculpe-me.
Gabriel saindo de cena.
- O que eu faço com a sua desculpa?... Guardo na gaveta?
Marcos, indo atrás de Gabriel:
- Gabriel, você há de convir que a sua mãe, Mariana, nunca foi uma mulher normal, sempre foi uma rebelde, isolada na nossa cidade. Viciada em maconha, foi expulsa de casa dos pais e juntou-se com meu, seu pai, quando eu tinha 16 anos... Não Gabriel! Deixa-me falar... Você já tinha um ano quando ele se separou de minha mãe... Lembro-me que ficamos todos escandalizados com aquela união... Ele, por causa dela, perdeu o seu emprego de professor e quase foi preso com uma quantidade da erva no bolso... Minha mãe, em pouco tempo, morreu de desgosto Fui obrigado a conviver com toda essa loucura durante cinco anos, depois ele sumiu, viajou... Agora o velho volta doente, sua mãe some no mapa e deixa essa responsabilidade em nossas mãos... Reconheço o meu dever de filho, mas,...
Gabriel:
- Marcos como você é formal, preconceituoso, carente, careta e às vezes até covarde, não conheci a sua mãe, mas na certa você não tem nada do nosso pai...
Marcos:
- Não tenho mesmo, graças a Deus!
Gabriel:
- Mas nada disso que você esta falando importa! Mariana viajou e o doutor Demóstenes vai ficar aqui comigo.
Marcos:
- Tenho outra sugestão: vamos colocar ele no asilo de um médico amigo meu... Lugar requintado e de luxo. Tenho dinheiro para lhe proporcionar o melhor. Desculpe-me, mas muito melhor do que sua casa. Gabriel, você não vê que ele está completamente gagá e que lá, com os melhores especialistas da cidade, ele pode ter melhor tratamento e melhoras significativas. Não me obrigue a usar as formas legais e entrar com um mandato contra o meu próprio irmão!
Gabriel:
- Não vou fazer isso com ele... Entre com um mandato! Faço o que tiver que ser feito para cuidar dos últimos dias desse meu velho camarada.
Marcos:
- Mas ele já não é mais o seu velho camarada! Acorda homem! Ele está completamente gagá.
Gabriel:
- Pode ser; como pode não ser. Mas, na dúvida, fico com ele!
Marcos:
- Não tem mais nem menos, eu sou o filho mais velho e sei o que estou dizendo e é o que eu vou fazer.
Gabriel:
- Você é o mais velho, mas ele ainda gosta e confia mais em mim...
Marcos:
- Você é que sempre achou isso...
Gabriel:
- Eu achei e acho ainda!
Marcos:
- Não complica mais a situação...
Gabriel:
- Não Marcos! Eu tomo conta dele e está resolvido...
Marcos:
- O que eu não compreendo é por que você deixou a sua mãe fazer isso com ele?
Gabriel:
- Porque ela estava precisando...
Marcos
- Precisando?
Gabriel:
- Sim! Ela foi viajar, foi se divertir ou sei lá o que... Ela está viva e é ainda muito nova para ficar trancada em um apartamento... Para seu governo eu sei que ela ainda ama Demóstenes...
Marcos:
- Você é bonzinho demais e além de tudo deixou que ela levasse todas as economias de papai para se divertir...
Gabriel:
- É claro! E você já está enchendo o meu saco com essa conversa...
Marcos
- Mas por último, antes de eu ir embora com a consciência tranqüila, pergunto a quem mal se sustenta, diga-me irmão: com que dinheiro vai dar conforto a esse velho inútil que nos abandonou?
Gabriel:
- Eu me viro. Tenho também as minhas economias...
Marcos:
- Belo, belo, bla, bla, bla...
Gabriel fica pensativo, isolado em seu mundo, enquanto seu irmão não para de falar.
Ele não mais o escuta. O dia amanhece. O ruído do mar cobre o som das palavras; silêncio. O ruído do vento impulsiona as velas no ústenesltimo vaguear do barco chegando mansamente no ancoradouro da marina de Búzios; silêncio.

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