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domingo, 29 de dezembro de 2013

MEMÓRIA

A LAPA NO TEMPO DO ONÇA...
A Lapa dos anos 30 era uma efervescência o ano todo. As festas de fim de ano, por exemplo, tinham como marca um alto estilo boêmio. Normalmente, era assim: enquanto a cidade dormia, a Lapa se agitava.  Era uma noite permanente que brilhava não só pela lua, mas pelos talentos artísticos, diversidade cultural, malandragem. Isso sim dava um brilho especial ao lugar.
A Lapa tinha basicamente três ambientes: os cabarés, os cafés e os bares. Difícil era encontrar uma cadeira vazia em qualquer café do bairro. Os cabarés fervilhavam de gente, com muita bebida, música e paixões desenfreadas.
O Largo da Lapa daquela época era ponto estratégico da ligação Zona Norte/Zona Sul, através dos bondes. Mas era um sistema de transporte deficiente. Muitos dos que trabalhavam pelo Centro acabavam morando por lá mesmo. Os jornais anunciavam aluguéis de quartos nas Ruas da Lapa, Moraes Vale, entre outras. Tudo isso ajudava a incrementar a noite da Lapa.
No dia 24 de dezembro, alguns iam cedo para casas de parentes, que, em muitos casos, só se viam mesmo nas festas de fim de ano. Era tio conhecendo o novo sobrinho, avó reconhecendo o neto distante. Era uma festa. Tinha gente que aproveitava a época para visitar a família no Nordeste, trazendo na bagagem um dos seus para tentar vida nova no Rio de Janeiro, então capital da República.
Naquela época, a Lapa era uma mistura só: artistas, músicos, prostitutas, intelectuais, malandros, políticos. Cada um no seu metro quadrado. A malandragem, por exemplo, não ia aos cafés, preferia aos bares. No Cabaré Imperial, da francesa Chouchou – que ficava na Joaquim Silva -, quem arrebatava os corações era Lili das Joias, famosa por seus dotes físicos e por ter levado muitos figurões à ruína. Manel, garçon de hotéis da Lapa e que, com a decadência da região a partir do Estado Novo, foi trabalhar nos bares da Cinelândia, ali pertinho, conta que cansou de emprestar dinheiro a senadores da República, para esticar a noite. O Senado ficava no Palácio Monroe, no final da Avenida Rio Branco, nas imediações da Lapa. Normalmente, depois da sessão legislativa, tinha uma sessão extra na Lapa.
Foi no Cabaré Apolo que Noel Rosa, um dos maiores talentos da música popular brasileira, conheceu Ceci, uma dançarina de 16 anos de idade. Noel, filho da classe média, era estudante de Medicina, mas trocou o banco escolar pela boemia, onde seu talento musical se evidenciava. Mesmo casado com Lindaura, uma moça da alta sociedade, a paixão de Noel era por Ceci, para quem fez várias músicas, entre elas, “Último Desejo”: “Nosso amor          que eu não esqueço / E que teve seu começo / numa festa de São João...”. Eles se conheceram numa noite de 24 de junho, dia de São João, mais um dia de festa na Lapa.
Noel, morador de Vila Isabel, costumava pegar um táxi até o Danúbio Azul – outro espaço bastante frequentado na Lapa -, onde ficava horas esperando por Ceci encerrar o expediente. Certa vez, a jovem dama do cabaré chegou junto com os primeiros raios de sol. Reclamou com Noel porque ele insistia em beber gelado, embora tossisse muito. Ele não se fez de rogado: passou a pedir cerveja quente e conhaque. Noel morreu aos 26 anos de idade, vítima de tuberculose.
A Pensão da Lapa era também muito movimentada; na verdade, tratava-se de um bordel. Tinha um grande número de empregados homossexuais. De modo geral, as donas de bordéis contratavam jovens homossexuais para trabalhar como garçons, cozinheiros, camareiros e inclusive como prostitutos, caso um cliente assim o desejasse. Muitos desses jovens tinham certos modos femininos e imaginava-se que eles podiam desempenhar tarefas domésticas com facilidade e eficiência e viver entre as prostitutas sem criar uma tensão sexual. As bichas – como eles mesmos se identificavam – conviviam nos vários bordéis da Lapa com francesas, polacas e mulatas. Os bares e cabarés da Lapa eram também lugares freqüentados por homens em busca de mulheres para momentos de prazer, bem como por homens desejosos de sexo com outros homens.
Funcionários públicos, jornalistas, profissionais da classe média, intelectuais boêmios e jovens de famílias tradicionais, amantes da aventura misturavam-se livremente com escroques, ladrões, apostadores, cafetões, bichas e putas. Artistas e estrelas em ascensão nos círculos intelectuais brasileiros – como Jorge Amado, Cândido Portinari, Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade – iam aos bares e cabarés da Lapa para reunir-se com nomes importantes da música popular brasileira – como Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Chico Alves – e ouvir suas mais recentes composições.
Os artistas preferiam morar em Santa Teresa, que passou a ser conhecida como Montmartre Carioca – uma homenagem a um bairro boêmio de Paris. Dos becos de Santa Teresa, localizada na parte alta da cidade, as pessoas desembocavam na Lapa. Alguns subiam, outros desciam, mas todos se encontravam mesmo na Lapa. O poeta Manoel Bandeira morava na Rua Morais Vale, 57, ao lado do Beco das Carmelitas, onde escreveu “Beco das minhas tristezas, não me envergonho de ti”. Já na Rua Joaquim Silva, 53, casa 4, bem no coração da Lapa, morou Carmem Miranda, “A Pequena Notável”. Francisco Alves, antes de virar o Chico Viola, era motorista de praça com ponto na Lapa.
Wilson Batista, outro malandro talentoso da Lapa, sempre era visto no bar Esquina do Pecado, na Praça Tiradentes. O bar era um ponto de encontro de marginalizados e compositores. Ali conheceu os irmãos Meira, malandros famosos da época, cuja amizade lhe valeu várias prisões.  Em 1939, passou a se relacionar com o bicheiro China, a quem venderia muitas músicas.
Nas primeiras décadas do século XX, o Centro do Rio sofreu uma série de transformações urbanísticas. As famílias ricas que habitavam a área central da cidade foram se transferindo para a Zona Sul. Suas antigas casas passaram a ser ocupadas pela população pobre. Os negros, mesmo libertos, continuavam sendo discriminados. Muitos deles acabavam aumentando a enorme legião de desocupados, que viviam nas praças e esquinas; alguns conseguindo um biscate ali, outro aqui.
Não é à toa que a figura do malandro é quase sempre associada a um afrodescendente. Na Lapa dos anos 30, a imagem que se tinha do malandro é que ele era um homem até certo ponto honesto, cheio de dignidade, consciente de sua profissão.
Madame Satã era um desse tipo. Nascido João Francisco dos Santos, em 1900, no interior de Pernambuco, viveu na Lapa quase 60 anos de sua vida. Ele mesmo revela que começou sua vida sexual aos 13 anos, quando as mulheres da Lapa organizavam bacanais dos quais participavam homens, mulheres e bichas.
Satã era um exímio capoeirista, nos seus 1,75m e 90kg bem distribuídos, e ganhava a vida ora como cozinheiro e garçon de pensão, ora vendendo o corpo para os homens, ora como leão de chácara de cabarés. Brigou muito com os agentes da lei, ao proteger prostitutas, moradores de rua, bichas. Sua ficha criminal era imensa: 29 processos, 19 absolvições, 10 condenações, 3 homicídios.
A Lapa dos anos 30 tinha a presença marcante de Aracy de Almeida, a Dama da Central, porque, morando no subúrbio do Encantado, fazia o trajeto Lapa-casa sempre no trem da Central do Brasil. Era uma simbiose musical: na frente da família, cantava hinos religiosos da Igreja Batista; escondida dos pais, entoava oferendas a entidades do Candomblé e participava do bloco Somos de pouco falar. Em 1933, trabalhando na Rádio Educadora – que depois virou Rádio Tamoio -, conheceu Noel Rosa, que a convidou para tomar umas cervejas cascatinhas na Taberna da Glória. Aracy transformou-se na grande responsável pela perpetuação da obra de Noel, ao longo de outras décadas.
A segunda metade da década de 30 foi marcada por turbulências políticas, tanto no plano nacional como no internacional. O mundo acompanhava de olhos atentos os conflitos na Europa, que ganharam dimensões inimagináveis e se transformaram, a partir de 1937, na II Grande Guerra Mundial. No mesmo período, o Brasil se preparava para eleger um novo presidente da República, mas Getúlio Vargas divulgou pelo programa de rádio A Hora do Brasil uma falsa notícia de que os comunistas estariam organizando uma insurreição. Era a senha para Getúlio implantar o Estado Novo, em novembro de 37, e suspender a sucessão presidencial. No Estado Novo de Getúlio Vargas, os cultos de origem afro, a malandragem e o jogo passaram a ser perseguidos. O Senado Federal, que funcionava no Palácio Monroe, perto da Lapa, ficou fechado por 7 longos anos. São fatores que contribuíram enormemente para a mudança do perfil social da Lapa.
No período do Estado Novo, houve uma forte campanha pública contra os alemães e seus familiares no Rio de Janeiro. Na época, havia um tipo de pão que se chamava “pão alemão” – a exemplo do “pão francês”, que tem até hoje. Mas deixou de ser “alemão” para não ser associado ao nazismo. O tradicional Bar Luiz – que está ali na Rua da Carioca, perto da Praça Tiradentes - quase foi apedrejado porque tinha o nome de Bar Adolf. O pessoal imaginava que era uma referência a Adolf Hitler, mas depois viu que não tinha nada a ver. Via de dúvidas, os donos preferiram mudar o nome do bar. Economicamente, o Brasil entrou num ciclo de racionamento por causa da guerra: havia filas imensas para compra de leite, combustível etc. A vida social, consequentemente, sofreu restrições.
Os antigos bares passaram a viver às moscas. A maioria dos cabarés fechou; as pessoas foram obrigadas a mudar de hábitos e de ares. No final dos anos 30, a Lapa se despedia da Velha Lapa. Papai Noel demorou a circular de novo pela área.
 
Fernando Paulino
 
Dezembro de 2013
 
*Obs.: Esse mergulho que dei na Lapa dos anos 30 faz parte de uma pesquisa que fiz para uma peça teatral ambientada naquele período. O trabalho foi encomendado por um produtor americano que disse pretender encená-la às vésperas da Copa do Mundo de 2014. Como ele não cumpriu o combinado – pagar o trabalho em troca de sigilo -, disponibilizo para os amigos esse texto como presente de Natal. E, em 2014, se virem por aí um produtor teatral americano querendo falar da Lapa dos anos 30, me avisem!
 

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei a leitura!!! Morei no Rio 10 anos , amo esse lugar e sempre pensava como deve ter sido bom viver nessa época...