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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Fabio Carvalho em memórias do século passado

BAHIA DE TODOS OS SAMBAS OU VIAGEM AO FIM DO MUNDO
Para o Tau

“Quando se for esse fim de som doida canção que não fui eu que fiz verde luz verde cor de arrebentação sargaço mar sargaço ar deusa do amor deusa do mar vou me atirar beber o mar alucinado desesperar querer morrer para viver com Iemanjá”

Dorival Caymmi

Começo pelo acontecimento de 1988 no século passado. Fui a São Paulo para o FOTÓPTICA VIDEOBRASIL com o vídeo O MUNDO DE ARON FELDMAN, imediatamente após ter passado pelo RIOCINE e conquistado vários prêmios. A situação lá era diferente, depois de todas as mordomias do RIOCINE, com direito a hotel 5 estrelas e muito mais, me hospedei por minha conta num pardieiro zero à esquerda na Praça da República. Situação que me agradava dado ao meu temperamento de jovem rebelde, mais pro lixo do que para o luxo. Talvez pela formação mineira católica culpada. O interessante era que no Rio os prêmios se materializavam em troféus e alguma notoriedade, em São Paulo os prêmios eram em dinheiro e, o que é pior, muito dinheiro. Eu estava com a bola cheia. O vídeo já tinha sido selecionado para logo depois ir ao Maranhão, a Canela - em paralelo ao festival de Gramado - e convidado para uma mostra na cidade de Pisa, na Itália.
Afora isto estava sendo cortejado por vários tipos de prateleiras do audiovisual, coisa que me colocava ainda mais arredio do que já era. Vou evitar descrever os belos e enriquecedores dias que por lá passei durante o festival, me concentrando na noite da premiação que tem tudo a ver com o estado ao qual este texto se dedica. Vamos lá. Depois de um dia repleto de álcool com meus amigos músicos fui empurrado muito a contragosto para dentro de um bonde elétrico que subia a Rua Augusta, no centro de tudo, rumo a Avenida Europa para ir ao MUSEU DA IMAGEM E DO SOM sede do festival situado nos Jardins. Estava chovendo, pulei do bonde na altura dos últimos botequins antes de iniciar o deserto da Avenida Europa.
Claro que eu queria tomar mais uma e chegar bastante atrasado na solenidade da premiação. Saí dali, daquele último botequim, num leve estado de total embriaguez, chutando poças de água e me permitindo xingar mentalmente a tudo e a todos. Já na Avenida Europa a um quarteirão do MIS, de súbito aparece um carioca conhecido que vem correndo do outro lado da rua para me encontrar. Fiquei cabreiro. Ele entra na minha passada e começa a me falar que era para eu não ficar chateado porque nada premiado no Rio era premiado em São Paulo. Entre grunhidos eu respondi que era para ele ir se foder que eu não estava nem aí para isto. Para me agradar ele me chama para entrarmos na rua que contorna por traz o Museu e degustarmos o “presentinho” que ele trazia no bolso. Topei. Foi difícil me desvencilhar daquela mala. Claro que dentro do Museu lotado fui para o bar e tomei mais uma caríssima. Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia. Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão. Fiquei ali em pé no balcão
sem poder me mexer em estado de aliteração com tanta gente ao redor. Me vi sem salvação. E tinha que ver também pelos vários monitores espalhados no roda teto o que acontecia no andar de cima. A premiação no auditório. Fui para dentro de uma árvore. Incrível, mas ali tinha uma árvore com uma sala no oco do tronco. Saí de lá melhor. Voltei ao balcão do bar. A alma do pênalti. Rosas mimosas. O poeta Fernando Pessoa dizia que “quando é alto e grande o pensamento, súbito a forma o busca.” Esta citação está na quinta frase da página 56 do livro CINEMA: SONHO E LUCIDEZ do baiano Fernando Coni Campos de quem vou falar na seqüência. Voltando ao MIS fiquei assombrado ao ver nos monitores o apresentador da noite, aquele ainda desconhecido e já careca Cazé, vestido de mulher, com uma peruca enorme e multicolorida, falando piadinhas tipicamente paulistas. Um horror. Cabeça faz quem têm. Tudo ia piorar. Vem uma mulher enorme de gorda com o cabelo vermelho e um mini vestido preto, carregando uma mochila preta e estufada nas costas, ela girou em frente a mim para falar com a punk que vinha atrás e nessa virada sua mochila mandou meu copo de chopp no espelho do outro lado do balcão. Nem uma gota resvalou em mim. Porém acertou em cheio um cara de óculos que estava despistando lendo o programa do festival. No mesmo movimento, vejo e ou escuto o Cazé dizendo: melhor documentário vai para: O MUNDO DE ARON FELDMAN. Tomei um choque e fiquei ali paralisado vendo ele me chamando ao palco ao lado de uma modelo com uma antena de TV dourada numa mão e na outra um envelope. Não fui. Ele ficou dizendo que sabia que eu estava lá. Passado um tempinho meio sem saber o que fazer, emendou: vamos então para o melhor vídeo o vencedor é O MUNDO DE ARON FELDMAN. Mesmo que eu quisesse ir não haveria como chegar lá, o caminho estava todo lotado. Vejo então, com seu belo sorriso de sempre, o Éder Santos subindo ao palco e, como também é mineiro, recebendo os prêmios em meu nome. Depois de milhões de intermináveis gracinhas o Cazé anuncia o vencedor do prêmio especial de criatividade Mario Gusmão oferecido pela Secretaria de Cultura da Bahia. O MUNDO DE ARON FELDMAN. Neste momento o poeta levantou-se e perguntou:
- E o que fazes dos milhões de crianças desnutridas, dos chagados, dos tuberculosos?
A morte, chocada, respondeu:
- Mas isso é um caso de polícia.
Alguém da organização veio me procurar e disse que eu tinha que ir à sala de imprensa porque o Mário Gusmão em pessoa estava lá e queria me entregar o prêmio em mãos. Eu não sabia quem ele era. No corredor branco, em frente à porta da sala de imprensa, vejo dois senhores de pé. À medida que me aproximo eles sorriem para mim. Ao mesmo tempo que não subiria naquele palco nem que vacas tossissem, eu estava meio sem graça pela minha atitude de desrespeito ao protocolo oficial. O senhor baixinho e gordinho aperta minha mão e me apresenta o outro senhor um pouco mais alto e bastante magro com um cavanhaque e os cabelos prateados como o Mário Gusmão. Ele me disse que tinha gostado muito do meu filme e me dá os parabéns. Com a outra mão ele tira um gordo envelope do bolso do modesto paletó e me passa abrindo-o para que eu visse o conteúdo, dizendo que era meu. Sem compreender muito bem olhei e vi o equivalente hoje a dez mil reais dobrados em dinheiro vivo. Fiquei de novo paralisado com aquela bomba na mão. Após alguns segundos de branco o Mário me olha carinhosamente e pondo a mão no meu ombro pergunta por que eu não tinha subido ao palco. Consegui responder que foi uma espécie de loucura que me acometeu não me permitindo que eu compactuasse com aquele espetáculo. Para meu espanto ele tornou a me olhar e disse que tinha me entendido perfeitamente. Ser entendido era exatamente para o que não estava preparado. Tive que me encostar na parede do corredor branco. A pressão baixou. Sem nenhuma violência ele me perguntou se eu gostava do cinema do Glauber Rocha. Não sei de onde saquei que quem não gostava era ruim da cabeça ou doente do pé. Pareceu e claro ficou que a ponte foi atravessada. Me equilibrei. Assim ficamos amigos. O ANJO NEGRO. A partir daí tudo ficou fácil. Ele era o DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO e a IDADE DA TERRA. Depois de tudo tive que voltar ao bar do Museu. No balcão em frente de onde estava antes, tinham duas antenas douradas de TV. Apareceu o Evandro Rogers, ficamos jogando conversa fora, enquanto várias pessoas que eu não conhecia me cumprimentavam. Fugi fingindo que ia ao banheiro. Voltei para a velha Praça da República para ver meus amigos Mosquito e Zara tocarem. É certo que cheguei ali completamente duro e saí com 45 mil, sendo que as cartas de crédito da Secretaria de Cultura de São Paulo, no valor de 35 mil, só vi depois de muito trabalho, uns três meses a frente. Os troféus antenas foram levados pelo mala carioca. Considero até hoje a melhor solução para aquelas peças horrorosas. Era uma fábula. Não sei se deveria agradecer aos céus ou à Bahia. Minha jangada vai sair pro mar. Vou trabalhar meu bem querer. Se Deus quiser quando eu voltar do mar um peixe bom eu vou trazer. I’m losing you. The magic chip or perfect harmony, well. Lost in confusion. Não senhor! E para explicar melhor serei obrigado a contradizer o que disse há pouco sobre a unidade das artes. Não é verdade que toda forma de arte tenha o mesmo objetivo. Existe uma grande diferença entre a poesia e as outras formas de arte. Enquanto nestas existe o silêncio aspirando a ser fala querendo ser palavra, na poesia a palavra que existe como dado inicial, aspira ultrapassar-se e ser silêncio. Há algum tempo tenho preferido vitimizar a ser a próxima vítima. É um duro aprendizado. Já sei que é assim mesmo. Me livrei de culpas. Penso como Vinícius. O samba é meu, mas a culpa é sua. Funciona como no Cinema; não importa o que quer dizer. A palavra sou eu. Tenho que montá-las para revelá-las por completo. Exibí-las. A expressão está por vir. A língua não é da poesia que deriva da literatura. A imagem ainda em invenção. CINEMA DE INVENÇÃO. Jairo Ferreira. Na primeira edição deste livro, tive a curiosidade despertada quando li no III- Processo Dialético. Sintonia Intergalaxial. O pequeno texto do verbete Fernando Coni Campos, que transcrevo a seguir. – Grande experimentador da boa terra: VIAGEM AO FIM DO MUNDO/1969, UM HOMEM E SUA JAULA/1971, e O MÁGICO E O DELEGADO/1983. Que arquiteto cineasta seria este. À margem de seu tempo. Contemporâneo e não codificado. Tive que procurar saber. E não soube muito. Até hoje não consegui ver VIAGEM AO FIM DO MUNDO. Baiano secreto é coisa rara. Na investigação me deparei com algumas pistas. Nem sei se conto todas. Não sou bom contador de estórias feito ele. Se tudo é carnaval eu não devo chorar, pois preciso me encontrar. BATATINHA. Eu e meu violão. Em terra tão distante. Vi LADRÕES DE CINEMA no extinto Cine Guarani na Rua da Bahia. Deixa cantar de novo o trovador. Que lindo isto. E não tem nada a ver com o texto. Dentro de um livro. Dentro da noite veloz. Vale tudo e as mulheres não vão entender. Longo o desejo do amador perdida. Pudesse eu ver a estrada. Doce luz. Sem medo. Tão fácil te perder. Num bar à beira mar.
Sei como continuo. É triste. Vou continuar amanhã. Finalmente me encontrei com o Fernando. Era ele ali no Caçapa. Quem diria. Só podia contar o que já contei. Que bom que amanhã é domingo. Ou seja, hoje. Nada me resta. A emoção musical que ficou. É apenas um slogan da madrugada. Olhos elétricos. Tocava baixo agora toco guitarra. O doutor Rosemberg me disse no bar Aurora que embora ele fosse da geração do cinema novo era na verdade identificado com a geração posterior que remava contra a maré. Fernando morreu vendo a Esther Williams em ESCOLA DE SEREIAS. Além das pálpebras. A criatividade estava ebuliente. A Roma Negra. Dez horas da noite. Na rua deserta. Quanto mais distante mais triste o lamento. O cineasta italiano Gianni Amico que era apaixonado pela música brasileira e também muito ligado ao grupo do Cinema Novo, vem ao Brasil convidar os músicos baianos para fazerem uma grande manifestação cultural em Roma em homenagem a Glauber Rocha, algum tempo após a sua morte. Daí nasceu o filme documentário BAHIA DE TODOS OS SAMBAS. Acho que o título é uma corruptela e uma menção à ficção BAHIA DE TODOS OS SANTOS do hoje líder espiritualista e escritor Trigueirinho Neto. A ficção reunia os jovens grandes atores baianos Geraldo Del Rey, Antonio Pitanga e Anecy Rocha, enquanto o ducumentário registra os shows dos grandes músicos baianos em Roma. Este demorou mais de dez anos para ser terminado. Durante este período um de seus diretores Leon Hirzsman veio a falecer e em seguida o seu produtor Gianni Amico. Sobrou para o Paulo César Saraceni finalizá-lo. A maldição do Cinema. Momentos raros são revelados pelas imagens dos fotógrafos Dib Lutf e Luis Carlos Saldanha. As baianas do acarajé passeando em volta da Fontana Di Trevi. Os capoeiristas dando seu show na rua.
E as incríveis interpretações dos mestres da música popular brasileira lá presentes. Um filme para ser visto e ouvido. O que é que a baiana tem? É uma boa pergunta sem sombra de dúvidas. Todo mundo quer saber. Nada como ser Rosa na vida. Rosa mesmo ou mesmo Rosa mulher. Sempre me dei bem com as baianas e com os baianos também. Como somos de estados fronteiriços, ainda nos miscigenamos num tipo particular que é o baianeiro. Tipos que figuraram e figuram em minha vida como uma saída esperta. Sinto que devo me aprofundar nesta questão. O Baiano não nasce: estréia. E aqui nas Minas a alegria é guardada em cofres, talvez sejamos complementares. Desconfio que sim e preciso me entregar a um mergulho neste mar e nesse ar do Abaeté, aonde tem uma lagoa escura arrodeada de areia branca.
Um dia chego neste terreiro com cabelos de prata tal qual o que eu era. E continuo sendo.
Se a noite é de lua.
A vontade é contar mentira.
É se espreguiçar...
Deitar na areia da praia.
Que acaba onde a vista não pode alcançar.

Fábio Carvalho, BH, agosto de 2011.

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