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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Não vi, mas já gostei...

Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital

Máscaras de Marx

Por Jorge Grespan

Como filmar O Capital, de Marx? Era o problema de Eisenstein entre 1927 e 1929, depois de ter dirigido filmes que lhe valeram reconhecimento mundial. É o problema retomado por Alexander Kluge, importante escritor e cineasta alemão, em Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital [lançado agora em DVD no Brasil pela Versátil em parceria com o Instituto Goethe].
Os dois projetos coincidem pela oportunidade: o primeiro no vértice da maior crise capitalista ocorrida até então, e o segundo também, realizado no ano de 2008.
Coincidem ainda no fôlego: em suas nove horas de duração, o filme de Kluge nos informa que Eisenstein, tendo recebido apoio e condições excepcionais do Comitê Central do Partido Comunista soviético, chegou a filmar 49 mil metros, que deveria cortar para 2 mil, isto é, para um filme de 90 minutos.Não conseguiu, adoeceu, mudou de projetos.As dificuldades são de fato enormes. Embora trate de um objeto essencialmente histórico e tenha longas passagens descrevendo a gênese e o desenvolvimento do capitalismo, o livro de Marx não é um livro de história.
Nele são desdobradas umas das outras as formas da sociabilidade contemporânea a partir da contradição existente já nas mais simples – mercadoria e dinheiro. As análises são densas, as deduções dialéticas, precisas. Como então passá-las para a tela?
A questão fica em aberto e atravessa de modo persistente todo o filme de Kluge, estruturado não como tentativa de simplesmente resolvê-la, mas de fazê-lo pela sua explicitação e aprofundamento. A discussão será todo o tempo a da tradução de uma linguagem a outra.
Diversos caminhos são explorados – entrevistas com sociólogos e filósofos para esclarecimento de O Capital; leituras de trechos não só deste livro mas de outros de Marx; discussão de alguns filmes e peças teatrais que abordam temas correlatos; às vezes o mero registro de músicos executando obras eruditas do século 19 e 20; imagens soltas e clássicas de fábricas e supermercados, em que na produção e no consumo o fetiche da mercadoria é encenado; imagens articuladas por letreiros, à moda do cinema mudo, mas com composição inspirada nos anúncios de propaganda comercial das revistas de antigamente; esquetes curtos com diálogos e cenas aparentemente sem relação com o assunto.
Em tudo isso, fragmentos sem unidade narrativa ou causal visível.Odisseia da humanidade. É verdade que Kluge começa voltando ao problema de Eisenstein. Para ele também a solução estava muito mais em encadear livremente associações, em catalogar seus impulsos criativos e ocorrências episódicas. Kluge faz questão de falar do talento de Eisenstein para idiomas, e principalmente de como ele usava palavras de diferentes línguas na mesma frase, escolhidas conforme sua expressividade.
Nesse processo, porém, um fato decisivo é relatado. Depois de estrear o filme Outubro, Eisenstein interessou-se também pelo Ulisses, de James Joyce, a quem vai encontrar em Paris nas semanas seguintes a outro outubro, o da crise de 1929.
Joyce achava que só Eisenstein e Walter Ruttmann seriam capazes de filmar seu livro. E Eisenstein concebe a reunião dos dois projetos, de modo que O Capital seria representado por um dia na vida de uma pessoa comum, de um operário que encerra a sua jornada e volta para casa, onde o espera a mulher com uma sopa rala.
Mais do que uma história, há aqui a oportunidade de fazer todas as determinações formais da sociabilidade capitalista aparecerem tal como aparecem em nossas vidas ainda hoje.
Na odisseia desse homem comum, mais uma vez, apareceria sintetizada a odisseia da humanidade, com o trabalho morto das gerações passadas, com os condicionamentos e os desafios do presente, do futuro como luta (de classes); enfim, um filme sobre as “forças essenciais” do homem, na interpretação de Homero e de Joyce por Kluge.
A ideia em si mesma não se realiza, como já sabemos, mas permanece de certa forma no fundo da motivação, talvez também de Kluge.
Trata-se, em primeiro lugar, de saber como o capital poderia dizer “eu”. E, em torno disso, encontram seu lugar os sucessivos fetichismos do mundo atual, que compõem círculos fechados e autônomos – correlatos ao da “autonomia da arte” – numa arquitetura rigorosa a descrever o cotidiano melhor do que qualquer relato ou pesquisa empírica.
As imagens soltas ou coordenadas do filme começam a fazer sentido. Mas continuam como fragmentos, abrindo novos sentidos.
O problema da tradução é reposto, de um idioma para outro (como dizer “alma” em russo?), de uma forma artística para outra, da forma da filosofia para a da técnica. A entrevistados como Enzensberger, Negt, Sloterdijk, é feito com insistência o mesmo pedido de sugestões de imagens que pudessem representar cinematograficamente O Capital. E é interessante ver que nenhum deles tem pleno sucesso em atendê-lo.
Qual é a saída?
Ao mesmo tempo em que esse problema é posto, outro menos evidente, mas igualmente crucial, vai se tramando. Afinal, para que filmar O Capital? Intriga a decisão de Eisenstein: é a única “saída formal” possível. Por quê?
Ele queria com isso realizar um cinema de tipo novo, jamais visto. Kluge experimenta várias fórmulas, explora de várias maneiras as possibilidades próprias ao filme. Ele quer fugir assim de todo didatismo, seja na forma, seja no tema – isto é, fugir da explicação fechada da obra de Marx pelo marxismo.
Quanto a esse último ponto, deve-se dizer que a perspectiva geral da abordagem é a da chamada Escola de Frankfurt. Há uma grande valorização de Korsch, citações de Adorno e Benjamin, críticas ao marxismo soviético, com a clara intenção de impedir no expectador a associação com uma história que, principalmente para a Alemanha, dividida até pouco tempo atrás, é bastante problemática.
A ênfase é posta na atualidade de Marx como o intérprete mais bem equipado das crises sociais e, por elas, do mundo dominado pelas coisas.
A busca desse Marx fica extraordinariamente representada na parte do filme que revela não estar o seu corpo de fato enterrado no túmulo de Highgate encimado pelo famoso monumento. Os funcionários do cemitério conduzem-nos a um périplo por trilhas cobertas de mato, até encontrar uma lápide simples, rachada, num canto reservado para judeus e demais indesejáveis. Ali de fato está o corpo de Marx.
O filme de Kluge pode ser aqui talvez resumido. E a sugestão dada a ele por Sloterdijk por fim é certeira.
A saída “formal” que Eisenstein nesse ponto de sua obra procurou na filmagem de O Capital guarda um raro paralelo com a Odisseia de Homero e de Joyce pela via de Ovídio e das Metamorfoses: no dia de qualquer homem moderno reproduzem-se e condensam-se as muitas formas e as muitas mudanças de forma do valor que se valoriza, da sociabilidade nele autônoma e por ele imposta.
Não se trata mesmo de filmar uma história, mas esse desdobramento de formas sociais pela troca de máscaras do capital. A história que aí começa, a verdadeira história digna de tal nome, é a da metamorfose na “alma” de quem apreende a enfrentar as coisas e seu poder.

Jorge Grespan é professor no Departamento de História da USP

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