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sábado, 3 de outubro de 2015

O HERMENEUTA


O SENTIDO DO DUPLO
 Carlos Sepúlveda

       Estamos acostumados ( ou seria “condicionados”) por força dos nossos regimes democráticos a desconfiar dos sentidos, tanto dos sentidos óbvios quanto dos mais elaborados. Aliás, nada irrita mais a modernidade do que o singelo ato de “fazer sentido”.
       Estamos convencidos de que não existe discurso inocente, por isso ficamos muito espertos, ou quase. É um prazer inexcedível quando encurralamos um interlocutor ingênuo toda vez que esta ingenuidade é surpreendida por nossas suspeita profissional.
       Afinal, tudo o que se diz não passa de uma forma de enganar, de iludir. E se todo discurso é um duplo sentido, a possibilidade de verdade é um inútil exercício de paciência, até que firme uma operação válida de fazer sentido.
       É a marca mais contundente da baixa modernidade em que nos arrastamos. Ignoramos, faz tempo, que vivemos a era da suspeita.
       Suspeitar é um dever, uma cidadania imperativa para se viver nesse bravo  ( nem sempre admirável) mundo novo.
       Lembro-me de uma passagem de Umberto Eco na qual, com seu humor ácido, observou que tudo andava muito esquisito, muito suspeito. Sempre, por volta das seis horas matutinas, o sol nascia outra vez, e quase sempre no mesmo lugar. Isso é muito estranho.
       Preguiçosamente, adotamos o estranho hábito de criar, para uso próprio, uma outra modalidade de dúvida metódica, o instrumento de que se serviu Descartes para dar vaidade à racionalidade cartesiana. Estamos falando de uma radicalidade mais profunda, a mesma de que Kant ser serviu para escrever suas três críticas. No caso de um discurso normativo, autotélico, o que se produz é dúvida, como num vórtice.
       Se possível, e se você quer ser alguém ” aggiornato” destrua ou desconstrua até não sobrar a mínima possibilidade de se cumprir a tarefa para a qual os discursos foram  criados: fazer sentido, pois este é a maior aspiração de um discurso: fazer sentido. Está no Evangelho de João; no princípio era o logos ( o verbo, o discurso).
       Com vistas a corroborar o escândalo e para impedir a possibilidade de fazer sentido, apela-se para uma multiplicidade de sentidos; vários duplos, de modo a inviabilizar qualquer tentativa de… fazer sentido.
       Ora, acabamos reféns de uma nova hermenêutica cujo credo advoga, para todos os participantes da razão comunicativa, o princípio da hierarquia da interpretação que culmina na máxima: “ o importante não é o que se diz, mas o lugar de onde se fala.”
       Se é verdade que está garantida a pluralidade aparentemente inesgotável dos duplos sentidos, então na há mais um terreno seguro para um discurso que garanta a validade do que outrora chamávamos verdade dos fatos consumados, embora Fernando Pessoa nos tenha alertado de que só há argumentos contra fatos consumados. Evidente que se, um fato já é consumado, não há que se falar em argumentos a não ser por um inesperado altruísmo intelectual.
       Sabemos que não é mais a verdade dos fatos que importa, o que importa é a verdade dos fatos consumidos posto que a verdade, hoje, foi recolhida ao museu das inutilidades funcionais e desartáveis. Afinal se tudo se pode comerciar, precificar, trocar, marcadejar, por que não o sentido?
       Talvez seja por essa razão que a possibilidade do discurso único, garantido pela verdade dos fatos, já não parece fazer mais sentido.
       No comércio da convivência do homem moderno com outros homens, é sempre possível perceber a disputa pela hegemonia do melhor discurso, isto é, daquele discurso que se constitui como validado  pela chamada “verdade dos fatos”. E se esta verdade não consegue validar-se como fato, pior para os fatos.
       Funda-se uma espécie de “neonominalismo”, adornado por um tipo de retórica meramente conceptista. Não se pode mais conceber uma verdade, mas pode-se conceber um discurso que substitui e se sobrepõe  ao que antes se entendia como verdade.
       A moderna concepção de verdade não pode mais se dissociar dos discursos, não lhes antecede nem precede, apenas os substitui.
       Como a pedra que se abre à exortação do “abra-te sézamo”, liberando o acesso aos produtos de uma razão corrompida pelos ladrões de Ali Babá, também o discurso como a verdade vive do roubo, do crime. Vive do prazer de se deixar interpretar pelo avesso, e o avesso é sua neurose.
       Mas o truque , a trampa, consiste em produzir uma rede ampla de sentidos de modo a não substituir verdade alguma.
              Und ob ein tausand Wört habt
              Das Wort, das Wort ist tot
Então, se não há como se salvar  do naufrágio,  vivamos o relativismo, aquele parente da má-fé, cujo efeito é moral e, quanto a isso, não importa o sentido que tenha pois na esfera dos valores, nada é para sempre. Viver um relativismo complexo dá muito trabalho.
Por isso, eis a lição de Mateus 5, 37
“Diga sim quando for sim
E não quando for não.
O que você disser a mais vem da boca do maligno.


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