DE
VENTO EM POPA
Fabio
Carvalho
Dizer
que os espectadores entram no cinema como vão, ou iriam, ao bordel, não deixa
de ser chocante, mesmo atenuando-se bastante a idéia com o acréscimo de que
isso sucede sob um ângulo bem particular do exame. As necessidades que o cinema
e a prostituição satisfazem são as mesmas. Tenho a impressão de que meus
propósitos ficarão mais claros e menos chocantes se, invertendo agora a maneira
de ver as coisas, eu lembrar que com muita frequência os homens vão ao bordel
como vão ao cinema. Os homens, os mais jovens em menor medida, e os adultos
plenamente, vão ao bordel em busca da ficção. Esta reflexão foi retirada por
mim do letreiro inicial do filme Lucia McCartney do cineasta David Neves. Tive o
privilégio de conhecer e de filmar este autor tão pouco visto ou lido do cinema
brasileiro. Assim nasce a composição, quem pensava que a fonte secou, não sabia
que a vida começou. Quando a cidade amanhecer é carnaval. Bastou uma nova visão
de três de seus filmes em sequência, no mesmo dia fervente de sábado, para
abreviar o longo percurso que tenho que percorrer em busca de mim mesmo.
Retornei ao fugidio e sinuoso caminho da minha própria sensibilidade. Formosa
não faz assim. Ficção palavra diretamente ligada à fantasia. A música e o
cinema, artes que se entendem. E eu então que sou tão só. Vale sempre lembrar o
que Jean Luc Godard disse: a ficção é o documentário do imaginário do autor.
Cinema, sonho e lucidez. Com seus olhos de inesperadas amêndoas, I love you
Maria. Teus olhos molhados. O foguetório imponderável para aquele horário da
Sexta–Feira de Verão terminou junto com a última faixa do CD que tocava no
computador, sendo assim, fiz um brinde ao mistério dos acontecimentos naturais
do cotidiano. Só com as palavras posso tentar conseguir te deixar molhadinha.
Tenho que esperar o momento exato para começar. Tudo incide na reflectância
alva daquela necessidade só minha, que não tem nada a ver com as da humanidade.
O próximo passo será descobrir as rosas em vários tons das cortinas internas,
numa saturação inconsequente. O carreto chegou com a geladeira branquinha em pé
amarrada na carroceria da Kombi velha. Depois de exibi-la aberta para a mulher
opulenta dona da porta de usados na Rua Padre Belchior, o senhor baixinho
atarracado da cabeça branca começou o descarregamento junto com o seu
assistente manquitola. Uma engenharia muito bem treinada. Ainda pivete a
personagem do Irving São Paulo fala para seu comparsa pretinho no calçadão da
lagoa Rodrigo de Freitas: “qualé mano? Jacaré que dorme vira bolsa”. Entre o
sim e o não há uma palavra o talvez. Muito Prazer o nome do filme. Três
arquitetos e três meninos de rua observam-se, entrecruzam-se, sem nunca se
misturarem diante das impossibilidades morais e sociais na zona sul do Rio de
Janeiro. E temos as mulheres. Quem não foi ao finado cine Palladium ver um
filme com este nome não sabe o que perdeu. No outro ela, a música no mesmo
espaço luxuoso de projeção: “me dá teu sorriso para guardar. Será para o mar o teu
segredo. Acaso será esta estória uma ilusão? O sol de repente para na esquina”.
A primeira visão destes filmes que contém um arguto exame das relações, na fase
de transição do fim da adolescência, justamente quando a gente acha que sabe
tudo, serviu para apertar meus parafusos e quem sabe tentar aprender um
pouquinho vivendo a vida em crescimento cabal. De toda forma tenho
sonhado, sofrido e me divertido até hoje, quase na mesma medida, tendo
aprendido praticamente nada, já que todo dia novo dia novas circunstancias se
apresentam. Vamos lá sem correr porque o que não temos é tempo para desperdiçar
com velocidades desnecessárias. O moderno teor da investigação naturalista dos
costumes contemporâneos desse cinema me deu e dá tanto prazer quanto uma degustação
do drink especial refrescante em um fim de tarde degradé acompanhado por ostras
frescas. Prazeres telúricos. Nosso Diplomata Arnaldo Carrilho descreveu o David
Neves: “era um carioca-mineiro, conheceu melhor as circunstâncias dos seres
humanos e amava suas fraquezas sem demonstrações de pejo ou distanciamentos
preconceituosos. Tudo isso está nos seus filmes, desde Mauro, Humberto, até
Jardim de Alah. Como cineasta os olhos de David conduzem-nos a essa ironia
extrema de tratar o simples com a transcendência superior da lógica. A luz do
seu pensamento jorra para dentro do seu próprio olho”. O olho do cinema
observando na altura do olho. A câmera filma o pensamento. Não temos mais
princípios é só o nosso meio. Saúde, proteção e meios desejavam nossos progenitores.
A bela personagem em sua diáfana nudez em frente ao espelho no terceiro andar
do edifício era observada por três pivetes trepados na árvore em frente à
janela através de cortinas esvoaçantes. Cruzei com meu amigo contra-baixista na
escadaria do La Traviatta, e perguntei brincando: e o baixo? Sorrindo
respondeu: está cada vez mais alto. Manhã com música. “Te quero menina, estrela
de um filme, estória de amor, te vejo em meu sonho de felicidade, luz de
verão”.
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