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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

CONTO DE REIS


DE VENTO EM POPA

Fabio Carvalho


Dizer que os espectadores entram no cinema como vão, ou iriam, ao bordel, não deixa de ser chocante, mesmo atenuando-se bastante a idéia com o acréscimo de que isso sucede sob um ângulo bem particular do exame. As necessidades que o cinema e a prostituição satisfazem são as mesmas. Tenho a impressão de que meus propósitos ficarão mais claros e menos chocantes se, invertendo agora a maneira de ver as coisas, eu lembrar que com muita frequência os homens vão ao bordel como vão ao cinema. Os homens, os mais jovens em menor medida, e os adultos plenamente, vão ao bordel em busca da ficção. Esta reflexão foi retirada por mim do letreiro inicial do filme Lucia McCartney do cineasta David Neves. Tive o privilégio de conhecer e de filmar este autor tão pouco visto ou lido do cinema brasileiro. Assim nasce a composição, quem pensava que a fonte secou, não sabia que a vida começou. Quando a cidade amanhecer é carnaval. Bastou uma nova visão de três de seus filmes em sequência, no mesmo dia fervente de sábado, para abreviar o longo percurso que tenho que percorrer em busca de mim mesmo. Retornei ao fugidio e sinuoso caminho da minha própria sensibilidade. Formosa não faz assim.  Ficção palavra diretamente ligada à fantasia. A música e o cinema, artes que se entendem. E eu então que sou tão só. Vale sempre lembrar o que Jean Luc Godard disse: a ficção é o documentário do imaginário do autor. Cinema, sonho e lucidez. Com seus olhos de inesperadas amêndoas, I love you Maria. Teus olhos molhados. O foguetório imponderável para aquele horário da Sexta–Feira de Verão terminou junto com a última faixa do CD que tocava no computador, sendo assim, fiz um brinde ao mistério dos acontecimentos naturais do cotidiano. Só com as palavras posso tentar conseguir te deixar molhadinha. Tenho que esperar o momento exato para começar. Tudo incide na reflectância alva daquela necessidade só minha, que não tem nada a ver com as da humanidade. O próximo passo será descobrir as rosas em vários tons das cortinas internas, numa saturação inconsequente. O carreto chegou com a geladeira branquinha em pé amarrada na carroceria da Kombi velha. Depois de exibi-la aberta para a mulher opulenta dona da porta de usados na Rua Padre Belchior, o senhor baixinho atarracado da cabeça branca começou o descarregamento junto com o seu assistente manquitola. Uma engenharia muito bem treinada. Ainda pivete a personagem do Irving São Paulo fala para seu comparsa pretinho no calçadão da lagoa Rodrigo de Freitas: “qualé mano? Jacaré que dorme vira bolsa”. Entre o sim e o não há uma palavra o talvez. Muito Prazer o nome do filme. Três arquitetos e três meninos de rua observam-se, entrecruzam-se, sem nunca se misturarem diante das impossibilidades morais e sociais na zona sul do Rio de Janeiro. E temos as mulheres. Quem não foi ao finado cine Palladium ver um filme com este nome não sabe o que perdeu. No outro ela, a música no mesmo espaço luxuoso de projeção: “me dá teu sorriso para guardar. Será para o mar o teu segredo. Acaso será esta estória uma ilusão? O sol de repente para na esquina”. A primeira visão destes filmes que contém um arguto exame das relações, na fase de transição do fim da adolescência, justamente quando a gente acha que sabe tudo, serviu para apertar meus parafusos e quem sabe tentar aprender um pouquinho vivendo a vida em crescimento cabal.  De toda forma tenho sonhado, sofrido e me divertido até hoje, quase na mesma medida, tendo aprendido praticamente nada, já que todo dia novo dia novas circunstancias se apresentam. Vamos lá sem correr porque o que não temos é tempo para desperdiçar com velocidades desnecessárias. O moderno teor da investigação naturalista dos costumes contemporâneos desse cinema me deu e dá tanto prazer quanto uma degustação do drink especial refrescante em um fim de tarde degradé acompanhado por ostras frescas. Prazeres telúricos. Nosso Diplomata Arnaldo Carrilho descreveu o David Neves: “era um carioca-mineiro, conheceu melhor as circunstâncias dos seres humanos e amava suas fraquezas sem demonstrações de pejo ou distanciamentos preconceituosos. Tudo isso está nos seus filmes, desde Mauro, Humberto, até Jardim de Alah. Como cineasta os olhos de David conduzem-nos a essa ironia extrema de tratar o simples com a transcendência superior da lógica. A luz do seu pensamento jorra para dentro do seu próprio olho”.  O olho do cinema observando na altura do olho.  A câmera filma o pensamento. Não temos mais princípios é só o nosso meio. Saúde, proteção e meios desejavam nossos progenitores.  A bela personagem em sua diáfana nudez em frente ao espelho no terceiro andar do edifício era observada por três pivetes trepados na árvore em frente à janela através de cortinas esvoaçantes. Cruzei com meu amigo contra-baixista na escadaria do La Traviatta, e perguntei brincando: e o baixo? Sorrindo respondeu: está cada vez mais alto. Manhã com música. “Te quero menina, estrela de um filme, estória de amor, te vejo em meu sonho de felicidade, luz de verão”.  

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