ABAIXO TEXTOS - CRÍTICAS - ENSAIOS - CONTOS - ROTEIROS CURTOS - REFLEXÕES - FOTOS - DESENHOS - PINTURAS - NOTÍCIAS

Translate

domingo, 4 de janeiro de 2015

CINEMA ITALIANO


CARTA A ÍTALO CALVINO
Pier Paolo Pasolini

Que eu sinta ou não saudade deste universo camponês, isto é, de qualquer modo, problema meu. Isto não me impede, de fato, de agir sobre o mundo atual, assim como na minha crítica: ou antes, tanto mais lucidamente quanto mais dele me destaco e quanto mais aceito vivê-lo apenas estoicamente.
Disse, e repito, que a aculturação do Centro consumista destruiu as várias culturas do Terceiro Mundo (falo agora em escala mundial, e me refiro também às culturas do Terceiro Mundo, às quais as culturas camponesas italianas são profundamente símiles): o modelo cultural oferecido aos italianos (e de resto a todos os homens do globo) é único. A conformação a tal modelo se acha antes de tudo no vivido, no existencial; e, portanto, no corpo e no comportamento. É aqui que se vivem os valores, não ainda expressos, da nova cultura da civilização do consumo, isto é: do novo e do mais repressivo totalitarismo que jamais foi visto. Do ponto de vista da linguagem verbal, se tem a redução de toda língua a língua comunicativa, com um enorme empobrecimento da expressividade. Os dialetos (os idiomas maternos!) estão afastados no tempo e no espaço: os filhos são coagidos a não falá-los mais porque vivem em Turim, em Milão ou na Alemanha. Lá onde esses dialetos são falados agora, eles perderam sua potencialidade inventiva. Nenhum rapaz das periferias romanas seria hoje capaz de, por exemplo, compreender a gíria dos meus romances de dez ou quinze anos atrás: e, ironia do destino!, ele seria obrigado a consultar o glossário anexo como um bom burguês do Norte!
Naturalmente, esta minha “visão” da nova realidade cultural italiana é radical: observa o fenômeno como fenômeno global, não as suas exceções, as suas resistências, as suas sobrevivências.
Quando falo de homogeneização de todos os jovens, segundo a qual, desde o seu corpo, desde o seu comportamento e desde a sua ideologia inconsciente e real (o hedonismo consumista), um jovem fascista não pode ser distinguido de todos os outros jovens, enuncio um fenômeno geral. Sei muito bem que existem jovens que se distinguem. Mas são jovens pertencentes à nossa própria elite, e condenados a ser ainda mais infelizes que nós: e, portanto, também provavelmente melhores. Digo isso devido a uma alusão (Paese sera, 21-6-1974) de Tullio de Mauro, que, depois de ter se esquecido de convidar-me para um congresso linguístico de Bressanone, reprovava-me por não ter a ele comparecido: lá, disse ele, eu teria visto alguns jovens que contradizem a minha tese. É como dizer que, se algumas dezenas de jovens usam o termo “eurística”, quer dizer que tal termo é utilizado por cinquenta milhões de italianos.
Você dirá: os homens sempre foram conformistas (todos iguais uns aos outros) e sempre existiram elites. Eu respondo a você: sim, os homens sempre foram conformistas e o mais possível iguais uns aos outros, mas segundo a sua própria classe social. E, no interior dessa distinção de classe, segundo as suas particulares e concretas condições culturais (regionais). Hoje, ao contrário, (e aqui reside a “mutação” antropológica) os homens são conformistas e todos iguais uns aos outros segundo um código interclassista (estudante igual operário, operário do Norte igual a operário do Sul): ao menos potencialmente, na ansiosa vontade de uniformizar-se.
Enfim, caro Calvino, gostaria de fazer-lhe notar uma coisa. Não como moralista, mas como analista. Na sua apressada resposta às minhas teses, no Messagero (18 junho 1974), escapou a você uma frase duplamente infeliz. Trata-se desta frase: “Os jovens fascistas de hoje não conheço nem espero ter ocasião de conhecê-los”. Todavia: 1) certamente você não terá nunca tal ocasião, também porque se, numa cabine de trem, na fila de uma loja, na rua, em uma sala de visitas você encontrasse jovens fascistas, não os reconheceria; 2) felicitar-se por não encontrar nunca jovens fascistas é uma estupidez, porque, ao contrário, nós devemos fazer de tudo para identificá-los e para encontrá-los. Eles não são os fatais e predestinados representantes do Mal: não nasceram para serem fascistas. Ninguém – quando eles se tornaram adolescentes e ganharam capacidade de escolha, segundo qualquer razão ou necessidade – colocou neles de modo racista a marca dos fascistas. É uma atroz forma de desespero e neurose a que precipita um jovem a uma escolha como essa; e talvez bastasse uma só experiência diversa na sua vida, um simples e só encontro, para que o seu destino fosse diverso. "
[1] A tradução toma como base a versão publicada em: PASOLINI, P.P. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 2013. Prefazione di Alfonso Berardinelli. Settima ristampa.
[2] Publicado em “Paese sera” com o título “Carta aberta a Italo Calvino: aquilo de que sinto saudade”http://outraspalavras.net/…/o-desejo-anticapitalista-de-pa…/

Nenhum comentário: