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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

EXPOSIÇÃO BELO HORIZONTE

O grande mestre da ilusão de ótica

1,2 milhões ao redor do mundo já viram a exposição de Escher em cartaz no Palácio das Artes.


Maurits Cornelis Escher: “Castrovalva”, litogravura de 1930.
Por Paulo Laender*

O nome Escher nos remete sempre às perspectivas enigmáticas que suas gravuras,  minuciosamente elaboradas, nos apresentam.Tomamos conhecimento deste lado da sua obra quando do seu reconhecimento internacional ao final de 1960 início dos 70.

Em meio ao universo lisérgico daqueles anos as imagens de Escher nos bateram como um grande enigma sobre a visão da realidade convencional.Aquelas gravuras com  escadas por onde a água sobe e, ao final, derrama em cascata; onde o céu está abaixo e o chão acima, causavam estranheza e dúvida.

A realidade em si é o que achamos que estamos vendo ou isso não passa de uma ilusão criada por uma convenção?

A imagem do mundo para um egípcio antigo ou um camponês da idade média certamente se baseava em parâmetros completamente diferentes entre si e em relação ao nosso tempo que, por sua vez, com sua velocidade cibernética e a contínua amplificação dos limites espaciais do universo muda, a cada momento, tais conceitos.

A concepção da imagem condensada na representação da perspectiva linear, como a conhecemos e a utilizamos, se codificou durante o Renascimento através dos estudos e experimentos, principalmente de Filippo Brunelleschi, a partir dos ensinamentos da geometria euclidiana e, posteriormente ampliados e empregados por Leon Batista Alberti, Piero de La Francesca, Leonardo da Vinci e Albrecht Durer.

Do Renascimento até o advento do cubismo a percepção visual do mundo se restringiu aos dogmas da perspectiva linear. Apesar de reconhecermos outras possibilidades da representação visual a partir das revelações do cubismo, do expressionismo, do surrealismo, do modernismo e do próprio abstracionismo a perspectiva linear ainda se mantém como cânone ordenador da imagem de uma realidade, dita cartesiana, baseada no equilíbrio e harmonização da representação das formas e suas proporções espaciais.

Grande parte da obra de Escher está direcionada ao questionamento desta perspectiva clássica. Sua proposta de um universo, aparentemente regido por medidas exatas mas impregnado de situações irreais, se tornou sua marca registrada.

Aliam-se a estas experimentações com a perspectiva as sua incursões por uma catalogação matemática do “ladrilhamento”, fenômeno da partição geométrica do espaço e do seu arranjo gestaltiano entre frente e fundo criando um jogo interminável de composições daí advindas. Este trabalho, que demandou a maior parte da última fase do artista, e que encerra sua obra, trouxe-lhe um estigma de realizador mais matemático do que propriamente artístico.

Passo rapidamente por essas considerações iniciais sobre as duas fases mais divulgadas e conhecidas deste autor para chegar ao ponto que mais me interessou e surpreendeu, emocional e artisticamente, na mostra Magia de Escher. Refiro-me à sua primeira fase como gravador: o conjunto de obras realizadas a partir da sua permanência na Itália durante os primeiros anos de sua carreira entre 1922 e 1935.

As paisagens italianas com suas montanhas, seus rochedos, o mar, a Arquitetura e a flora desde o mediterrâneo ao sul, pela Toscana até Roma, revelaram-me o que melhor e mais me encantou em toda a sua obra. Considero estas gravuras a nata do trabalho deste grande artista.

Em depoimento no documentário, exibido paralelamente à exposição, o próprio Escher diz “não saber explicar a sua atração inicial, o seu fascínio, pela paisagem italiana e pela Arquitetura nela inserida’’. Mas, basta um pouco mais de atenção para se perceber a evidência da magia destas paisagens onde, quase sempre, a mão do homem constrói sua casa.

As gravuras daí realizadas anotam, com precisão e sensível escolha, os pontos de vista que ocasionam enfoques e perspectivas primorosos. Revelam-nos um sentimento de mímese - artista/ambiente - e uma interpretação magistral da fusão mediterrânea da Arquitetura com a montanha (o rochedo).

Aliam-se a estes componentes, rocha/Arquitetura, a proximidade do mar definindo proporções; o céu ampliando e marcando o horizonte; e a vegetação exuberante com sua organicidade temperando a dureza da pedra.

São imagens que interpretam e nos apresentam a Arquitetura emergindo, ou se mesclando, com o solo rochoso como cristais harmoniosamente alinhados e e incrustados ao perfil do rochedo.

Este sentimento de harmonia fruto da necessidade do homem de construir sua casa, desde o primata das cavernas, sobre o terreno mais sólido, a rocha sob seus pés e, com este terreno se mesclar, é o que Escher me passa nas suas gravuras italianas.

Para ilustrar apenas com o preto e o branco da gravura Escher desenvolve o que em arte definimos como “schematta” ou seja: um código riquíssimo dos traços, dos entalhes e linhas criando em suas xilos e litos uma gama de claros, escuros e meios tons que tornam estas imagens completas, únicas e belíssimas.

Quando me dizem da genialidade de um artista plástico pergunto logo sobre sua gravura - pois sendo esta uma técnica de execução difícil, ás vezes cruel, que exige labor e virtuose, na qual tudo o que se tem para descrever o motivo é a dicotomia entre o preto e o branco - conforme o nível de qualidade alcançado aí posso avaliar a maestria de um autor.

Escher, enfim, executa com total domínio técnico e encanto os claros e escuros que definem suas imagens atingindo um grau máximo de expresividade e drama na sua interpretação da Arquitetura de Roma, realçada pela iluminação noturna.

Com exceção de alguns grandes fotógrafos atuais vivemos um tempo em que raríssimos artistas plásticos dedicam sua atenção à paisagem.

Seja por falta de um mínimo domínio básico da técnica do desenho, seja pela presunção  causada pela postura da “arte contemporânea” a valorizar pretenciosas e primárias ações do ego criativo.

A verdade é que os artistas se afastaram do modelo natural. Não existe mais tempo ou disposição para se envolver com tal motivo. Dentro do contexto caótico e da “civilização imediatista do espetáculo”, a que estamos imputados no momento, não cabe o olhar mais amplo e profundo.

A perda do contato referencial com a natureza e o sentimento da ocupação harmoniosa do homem sobre ela é um fato lastimável do nosso tempo, prenúncio de um futuro cada vez mais nebuloso.

Ao final da minha visita à exposição de Escher, enquanto viajava por estas imagens icônicas, me dei conta de que mais de 90% das pessoas que ali estavam, e não eram poucas, disputavam filas  para fotografar ou se fotografarem nas instalações e ambientes espetaculosos - que a curadoria da mostra montou a partir dos experimentos de Escher como, talvez, uma forma duvidosa de atrativo para a maior visitação ou seja: criar o espetáculo - e passavam Escher desapercebidos pelas imagens tão significativas e profundas talvez as mais relevantes do trabalho deste mestre.

Busco em John Ruskin e suas palavras extremadas para encerrar este relato e expressar meu sentimento por tamanha alienação : “Para centenas de pessoas que conseguem falar, uma consegue pensar. Mas para milhares de pessoas que conseguem pensar, uma consegue ver”.

A exposição “A magia de Escher” fica em cartaz de 20/09 até 14/11 no Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1537). Visitas de terça a sábado, das 9h30min às 21h e domingo, das 16 às 21h.
*Paulo Laender é arquiteto, escultor e designer.

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