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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Quatro Textos Brasileiros


GUERRA DE CANUDOS

Canudos é a nossa guerra-síntese.
Uma comunidade pobre lutando contra os poderes locais e as condições difíceis do sertão baiano, liderada por um religioso carismático, é massacrada pelas forças do governo após o engajamento quase unânime das elites políticas, das populações urbanas e da imprensa.
Jornais de todo o país, aliados de interesses políticos e econômicos agrupados com o recente surgimento da República, começaram a divulgar os “perigos” da existência de uma aglomeração de despossuídos que desenvolviam atividades de subsistência e se recusavam a reconhecer a autoridade do novo regime – inclusive se negando a pagar impostos para um governo no qual definitivamente não confiavam.
Para a “opinião pública” nacional, urbana, branca e instruída, tratava-se de um bando de miseráveis e fanáticos, mestiços, negros e índios que não se enquadravam na ordem civilizada que se espalhava a partir do sudeste desenvolvido.
Canudos devia ser destruído.
E assim foi feito. Os habitantes do arraial, inicialmente preocupados em sobreviver e rezar, resistiram, atraíram adeptos de outras áreas do nordeste, organizaram grupos que caçavam soldados da ordem como costumavam caçar animais em tempos de fome aguda e impuseram derrotas vergonhosas às forças oficiais. Mas, ao fim, caíram: foram massacrados sem piedade, com tiros de canhão, incêndio generalizado e degola indiscriminada de prisioneiros dominados.
Euclides da Cunha, que nunca foi um homem suave, deu o tom do evento: Canudos foi um crime. Este crime, podemos acrescentar hoje, foi construído paulatinamente nas páginas de uma imprensa associada aos interesses dominantes em uma sociedade profundamente desigual.
Sabemos que a História não se repete, às vezes em farsa e outras vezes em tragédia, mas temos a sensação de que seus capítulos mais sombrios custam a terminar.


SERPENTÁRIO DE INTRIGAS

Viver demanda muita urticária e pouco siso. Requer extremos de agonia e muita baba cósmica para entender o serpentário de intrigas que nos rodeia. A cada esquina um bote sorrateiro de cobra cascavel. Estas até que são singelas amigas se puder compará-las com as cobras de duas patas que andam de tocaia, em cada rua ou em cada esquina. Se descuidar, o veneno entra pela sua jugular e causa morte instantânea.
“Navegar é preciso; viver não é preciso”, já dizia o poeta italiano Francesco Petrarcha. Esta frase pode ser o cerne do entendimento humano, adaptada por Fernando Pessoa, poeta lusitano, em determinado trecho: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso.” / Quero para mim o espírito desta frase, / transformada a forma para casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. / Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. / Só quero torná-la grande, / ainda que para isso tenha de ser o meu corpo / e a minh`alma a lenha desse fogo”.
O grande dilema humano está na decência de ser decente ou na penúria de ser um reles bastardo, sem escrúpulos. Se, preciso for, é capaz de pisar na garganta do amigo para satisfazer seu ego pouco produtivo e se apequenar no puxa-saquismo para manter o status quo.
A mim me parece que ser o serpentário de intrigas produz tantos ninhos de cobras que o Butantã ficaria feliz de tê-lo por perto. Entretanto, o veneno sem modificações mata. E assim, as víboras se disfarçam em companheiros para inocular o veneno. A alma decente, que nada teme e nem produz substâncias maléficas, tem sempre o antídoto de reserva.
Ah! que bom seria de nós se não tivéssemos amigos tão vulneráveis ao desejo de traição? O que seria de nós se não pudéssemos ter inimigos travestidos de amigos? O que seria da nossa alma se não pudéssemos reconfortá-la com doses homeopáticas de perdão?
Não bastasse o maldito e eterno patrulhamento ideológico, vivemos debaixo de nefastas intenções, onde o vale-tudo é a porta de entrada para a satisfação do ego multifacetado de gente que se esconde até da própria sombra. Ou de gente tão narcisista, que, dependendo do dia, se olhar no espelho, dá uma porrada para destruí-lo.


UM SONHO QUE TIVE COM VOCÊ
Jose Luiz Vieira

Bicho! Que sonho eu tive essa noite com você...
Estávamos nós dois em uma casa que dava de frente pra um morro íngreme e sem fim que acabava no céu de tão alto.
Era um lugar estranhíssimo quando de repente eu comecei a ver rolar uns torrões de terra, como no início de uma avalanche, mas era tudo em câmera lenta... Pareciam flocos de terra rolando.
A coisa foi ficando crítica, mas ao mesmo tempo era tudo tão lento que parecia inofensivo até que um torrão te acertou na cabeça, mas nada te aconteceu de grave, apenas ficamos mais apreensivos com o que poderia ocorrer e acabamos abandonando a casa.
Passou um tempo e eu não me lembro de o que aconteceu logo após sairmos.
Sei que fui dar uma volta e andando no meio de um areal comecei a reparar que no céu as nuvens formavam nítidas figuras femininas, mas nada muito realista. Então resolvi fotografar com meu celular pra te mostrar porque estavam interessantes, mas quanto mais eu fotografava mais nítida iam ficando e começavam e se colorir e a se movimentarem como se estivessem vivas. De repente milhões de figuras se formaram no céu: hipopótamos que corriam pelo céu e iam descendo em direção ao areal, mas não corriam com os pés no chão, flutuavam sobre a areia em direção ao mar.
Um ônibus passou e eu adentrei na intenção se sair logo dali porque já estava meio assustado com tudo aquilo e também queria logo te mostrar as fotos...
No meio do caminho percebi que o ônibus ia para um lugar estranho e saltei dele depressa. Mas ao descer vi uma sacola no chão, peguei-a porque resolvi levá-la também até você.
Passou um longo tempo e nos encontramos não sei onde. Era outro apartamento. Cheguei com ansiedade que me é característica, louco pra te mostrar as fotos e fomos tentar vê-las no celular...
As fotos haviam se tornado vídeos - não sei como, e começamos a enlouquecer assistindo, porque tudo era muito colorido e as figuras louquíssimas... Mulheres extravagantes, hipopótamos voadores, etc.
Então depois de um tempo você me perguntou que sacola era aquela que estava comigo. Não soube te responder, apenas disse que estava na rua e a peguei ao descer do ônibus.
Vamos ver o que tem aqui dentro! Eu disse colocando a mão dentro da sacola. Lá de dentro saíram várias fotos de pessoas as quais nenhuma eu conhecia e você, para meu espanto, conhecia todas. Havia uma foto de um cara que parecia muito com o teu pai, mas não era exatamente ele, apenas lembrava.
Depois de vermos as fotos você me perguntou o que mais havia ali dentro e eu, sem saber te responder, coloquei a mão pra averiguar... Saiu lá de dentro um objeto enorme sem a menor função prática, apenas decorativa, mas muito antigo e lindo feito de madeira e vidro. Eu percebendo que você se encantou com objeto logo disse "eu achei e é meu! Mas também não sabia o que fazer com aquilo e você novamente me perguntou: - O que mais tem ai? Fui eu novamente colocar a mão na sacola e saiu outro objeto e mais outros eram todos lindos e pareciam coisas de outras épocas feitas por outras culturas... eram utensílios que não sabíamos pra que servia ...mas a gente ficava maluco ao vê-los porque eram lindos ...e não sabíamos como aquilo tudo saía da sacola que era de papelão e pequena...
Não me lembro de mais nada...


REFLEXÕES DE JABUTICABA
Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora.
Sinto-me como aquela menina que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras ela chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. (...)
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos: quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir dos seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados e deseja tão somente andar ao lado do que é justo.

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo. O essencial faz a vida valer a pena" (Rubem Alves, 1933-2014)

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