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quarta-feira, 16 de julho de 2014

CONTO DE REIS

BARES TERMINAIS
Fabio Carvalho 

Cultura é o sistema de idéias vivas que cada época possui.
Melhor: o sistema de idéias das quais o tempo vive.
José Ortega y Gasset

 E eu nem quero saber se foi bebedeira louca ou lucidez, cantava o Toninho no player, made in China, comprado a preço de banana no shopping Oiapoque. Também pudera, logo que essa música terminou, ele travou e agora só toca espetado com pen drive ou transmite uma rádio AM. Asas de avião. Porque será que as mulheres adoram espremer espinhas e cravos, cortar as unhas e tocar calos e verruguinhas das pessoas próximas? Rebeka mulher inesquecível. Água boa essa que bebo agora. Um delírio metafórico do meu estado de espírito, assim a Mirisiri definiu a idéia do filminho que estou a fazer, quando contei para ela em detalhes o que pretendo transformar em imagens e sons, na varanda do La Traviatta. Brisa Secreta das Alturas. A cidade acalmou logo depois das dez. Hoje escuto as cornetas de plástico que tem outro nome durante a copa, dizendo que neste momento esqueci completamente o tal nome. Bom também. No dia seguinte, lá pelas onze e meia da manhã, o negão eletricista adentrou meio ressabiado no Bar Vem-Que-Pode do velho sempre de mau humor, chamado Euclásio. Nessa hora o Bisquira, sentado do outro lado balcão, pergunta alto para todo mundo ouvir: “ô Meia-Noite, deu pra descansar depois daquele pifão que você tomou ontem”? O negão olhou de um lado para outro, e fixando seus olhos num tonel de cachaça em cima da prateleira, respondeu calmamente assim: “descansar eu descansei, mas não dei não”. Risadinhas contidas. O silêncio voltou a reinar no recinto, ninguém deu mais nem um pio. Não sei o motivo porque gosto muito de ouvir mulheres que falam olhar acentuando o ó. Hoje no meu diário caminho matinal para as alturas, senti uma esperançosa felicidade se abater sobre mim. O dia estava muito bonito e me lembrei com alegria deslavada, do fato que tinha ficado sabendo na noite anterior através das redes sociais. Nelson, Capô e o Rô tinham tomado um tremendo porre juntos na Cobal do Humaitá. Que beleza estas três personagens tão destacadas no meu mundo particular reunidas celebrando a vida. Só neste plano, seus universos tão díspares e ao mesmo tempo tão próximos, contavam em torno daquela mesa para mais de duzentos anos. Era como se lá estivesse, posicionando a câmera no melhor enquadramento, filmando aquela cena milagrosa e viajante, com a remota cor dos pássaros. Desconfio que o cinema esteja me rondando.  E tenho que confessar que isto é muito gostoso. Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora. Recentemente descobri, para minha surpresa, que um dos ascensoristas do elevador que utilizo diariamente é intelectualmente completamente diferenciado dos seus colegas de profissão e mais, definitivamente não se enquadra no que se espera de alguém que assumiu esse tipo de trabalho tão automático e claustrofóbico. Rio de lágrimas, Tião Carreiro e Pardinho. Este personagem do meu cotidiano, não só resolveu minha dúvida entre secar ou chegar da letra da música, como me deu o nome de seus autores. É verdade que isto não é tão espantoso assim, mas conto porque foi apenas a última coisa que ele me falou quando subíamos para cá agora. Antes, na primeira vez que subi com ele, eu estava com uma camiseta do filme Harmada, que herdei do Guará, vendo o nome Paulo Cézar Péreio escrito nela, disse que tinha assistido Iracema  Uma Transamazônica com esse ator e nunca esquecido. Seus conhecimentos sobre música e cinema, além de suas opiniões existencialistas sobre as coisas da vida, tem me instigado muito nos últimos meses. Outro dia para provocar falei da sinfonia número 1 do Gustav Mahler, e ele depois de cantarolar um trecho com um leve sorriso vitorioso no canto da boca, me disse o seguinte: “sem dúvidas uma das coisas mais belas que o ser humano já produziu”.  Já estou apto após me conter durante todo este tempo, a perguntar por que um cara como ele estaria se submetendo a um trabalho tão simplório. Claro ficou que o Mahler passou a fazer parte da trilha sonora que estou a montar, junto com a voz do meu ator Mário falando um poema erótico e os ruídos do som direto captados pela camerazinha bem ruinzinha da qual me utilizei. Delicados prazeres do onanismo sugerindo mil direções. Não há liberdade sem conhecimento. O conhecimento é a maior e única forma de liberdade total. A liberdade do corpo passa pelo conhecimento, como todas as formas de liberdade. Vamos começar o jogo. Minha fome morde seu retrato. Licantropia. Lobisomem o terror da meia noite. Esta copa brasileira me trouxe de volta à música indelével do Milton e do Márcio. Que fazer Carolino amigo? Vinte fracassos e mudar de tom, vinte morenas para desejar, vinte batidas de limão. Estou bem seguro nesta casa, comendo restos nesta Quarta-feira. E amanhã mais vinte anos desfiados na Avenida, arranha céu, ave noturna no circuito dessa ferida.  O tempo morto naquele abrigo faz necessária a segunda dose. Sonhei. Não te arrependas. A fome de um dia poder morder a carne dessa mulher. Voltei a caminhar e subindo a Augusto de Lima no sol das duas da tarde, cheguei felizmente ao meu umbigo em full concert, nada foi melhor do que esse encontro naquela hora. Em volta do fogo todo mundo abrindo o jogo, conta o que tem pra contar. Pequenos fragmentos de luz. Revi a vida inteira. Não tendo mais ao que recorrer, vou aceitar a imaginação que após a perda material total, ainda me resta. A feijoada de Domingo me salvou. Ali pelas tantas, sem ter feito nada que tinha que ter feito durante a luz do dia, fui acometido de uma nova sensação, nunca sentida em outra ambiência. Não posso simplificar dizendo se era boa ou ruim, agradável ou desagradável, era somente nova e por isto mesmo boa. Tudo que esperamos é a nova, dizia o filósofo da antiguidade, sem nenhuma hesitação com alguma excitação, apontou o X9 de plantão. Embora estando eu sozinho, todos aqui em volta interrogam-me com o dedo em riste, o que quero afinal? Ao que mesmo resistente acabei admitindo que a imagem que me era recorrente era a dela, a atriz vista em contra plongé, manipulando os biquinhos dos seios entumecidos sem retirar completamente o soutien, com a boca umedecida olhando com os olhos entreabertos de prazer o infinito do céu que nos protege. Talvez seja uma imagem irrealizável, mesmo assim pretendo chegar perto. Ave Maria Nossa Senhora. Como em minhas mãos foi depositada a organização das festas, tomei a liberdade de, na reunião efetuada hoje pela manhã, incluir seu nome na comissão de ornamentação do palácio. Pensou alguns momentos, e a voz interior lhe respondeu: não.    


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