ABAIXO TEXTOS - CRÍTICAS - ENSAIOS - CONTOS - ROTEIROS CURTOS - REFLEXÕES - FOTOS - DESENHOS - PINTURAS - NOTÍCIAS

Translate

segunda-feira, 30 de junho de 2014

TEXTO DE CINEMA

O fantasma dentro da máquina
Está sendo lançado esta semana o livro Narrativas Sensoriais: ensaios sobre cinema e arte contemporânea, Editora Circuito, uma coletânea organizada por Osmar Gonçalves. São reflexões de treze artistas (fazem vídeos, instalações, experimentos kinoplásticos) que também são teóricos e atuam no mundo acadêmico. Já conhecia vídeos e textos de alguns e algumas, como as doutoras Beatriz Furtado, Consuelo Lins, Patrícia Moran, Kátia Maciel (“não filmo o que vejo, vejo o que filmo”) e os doutores Cristian Borges e André Parente, esse último de longa data, desde quando seu livro Imagem-máquina, a era das tecnologias do virtual, de 1993, me conquistou.
Essa turma transcinematográfica pensa o presente e o futuro da arte audiovisual e de toda a arte a partir dos progressos da inteligência artificial, uma realidade coetânea que alimentou ficções delirantes de Karel Capek e Isaac Asimov. Na década 1920 o checo Capek escreveu a peça de teatro RUR, onde inventa a palavra robô (do checo robota, trabalho forçado) para as máquinas inteligentes e narra o surgimento não programado de sentimentos nessas máquinas: os robôs começam a se amar uns aos outros. Décadas depois, no best seller Eu, Robô, o russo Asimov cria as Três Leis da Robótica, uma prevenção contra ataques de robôs a humanos, e também o “fantasma na máquina”, definição enevoada da disfunção (ou transcendência) que causaria a humanização dos robôs. A propósito, nenhum fotógrafo tem explicação para a fotogenia, o mistério por trás da predileção das câmeras por determinadas pessoas, porque as câmeras realçam “o caráter moral”, como disse Jean Epstein, de certas pessoas e de outras não. Meu livro Máquinas eróticas é uma homenagem secreta a Capek e Asimov.
As Narrativas Sensoriais me remetem, ao mesmo tempo, ao avanço da inteligência artificial no século XXI e aos cineastas puristas do início do século XX, principalmente a Dziga Vertov, tão russo como Asimov. Os puristas defendiam uma especificidade absoluta do cinema com relação às outras artes, um “específico fílmico” que não deveria ser contaminado por influências das artes cênicas, plásticas, sonoras ou literárias. Vertov dizia que a literatura é a pior inimiga do cinema (anos depois o italiano Pasolini classificou o cinema como “de poesia e de prosa” e o russo se mexeu no túmulo).
A proposta de Vertov para a preservação do “específico fílmico” era uma colaboração integral entre a câmera e o artista. Sonhava chegar a um ponto em que fosse possível a câmera filmar independente da interferência e da influência humanas, filmar tudo que lhe desse na centelha. E o ser humano organizaria essa visão da máquina na montagem, na edição. Em seu filme-manifesto O homem com a câmera há uma cena em que uma câmera sai de sua caixa, se articula sobre um tripé e vai trabalhar sozinha, livre e solta.
Os pensadores vanguardistas de Narrativas sensoriais refletem sobre “obras que se sustentam na autonomia da imagem”, uma primazia sobre a narração e qualquer outra estratégia de linguagem. Falam de uma  “lógica do sensível” em contraposição às narrativas racionais. Pensando o cinema do futuro, retomam e resignificam a ideia recorrente de que a linguagem audiovisual é subaproveitada desde quando se transformou em um veículo apenas para contar histórias, que suas infinitas potencialidades expressivas vão muito além disso. 
Há muito alguns pensadores esperam do audiovisual um papel bem mais significativo do que o atual no que se refere à filosofia, a um entendimento contemporâneo da existência, da verdade, da morte, dos valores humanos fundamentais. As tecnologias da comunicação de que dispomos, e seu progresso, apontam para a possibilidade do audiovisual transformar-se na mídia mais apropriada para filosofar, desbancando a literatura. Enfim, façam vocês mesmos suas viagens a partir desses estímulos, leiam o livro. 
Por Orlando Senna

Nenhum comentário: