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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

CRÔNICA MUDANA



O computador e o analfabeto

 Gilberto Felisberto Vasconcellos

Álvaro Vieira Pinto critica o deslumbramento contemporâneo com a tecnologia, livrando-a da condição de panacéia ou de causadora dos males modernos

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "A Salvação da Lavoura" (Casa Amarela). Artigo publicado no caderno Mais! da Folha de SP:

O Conceito de Tecnologia", sem sombra de exagero, monumental não por ser copioso em número de páginas é o maior acontecimento editorial brasileiro das últimas décadas, porque versa com engenho e estilo a respeito de uma coisa que pouquíssima gente sabe: tecnologia.

Karl Marx intentou escrever uma história crítica da tecnologia, só que não teve tempo de fazê-lo.

Darcy Ribeiro deixou alguma coisa em seu "O Processo Civilizatório" (Cia. das Letras), porém quem abordou a questão da tecnológica do ponto de vista filosófico foi Álvaro Vieira Pinto, uma das mais iluminadas inteligências do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em 1955 e extinto em 1964, que denunciou o mata-borrão de estrelas e medalhões estrangeiros:

"Fulano de tal representa Derrida, sicrano vai de Wittgenstein, aquele outro responde por Adorno"; todavia é difícil encontrar alguém pensando com a sua própria cabeça, sozinho ou acompanhado.

"No país subdesenvolvido, o filósofo, como só registra o que foi pensado e dito nos centros metropolitanos, pode ser chamado de tabelião das idéias. A cultura, em conjunto, constitui o cartório dos acontecimentos alheios."

A pergunta foi por ele colocada: o que significa ser filósofo num país pobre e carente de soberania nacional?

"No mundo subdesenvolvido e na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente a realidade, precisa ser analfabeto." 

O paradoxo de um filósofo "analfabeto alfabetizado" não é provocação da parte de um autor que leu tantos livros quanto Hegel ou Mallarmé.

O editor César Benjamin teve a sorte de encontrar as 1.400 páginas datilografadas no RJ. Essas páginas inéditas poderiam ter sido perdidas, e o fato de serem editadas em livro agora é motivo de júbilo para os leitores.

Depois da publicação deste livro a cultura brasileira tem de ser repensada em sua totalidade material e espiritual. As reflexões de Álvaro Vieira Pinto sobre a tecnologia, a técnica e a cibernética têm alcance universal.

Ele rompe o preconceito de que a filosofia em sua essência é grega e que somente a Europa tem acesso à visão universal do pensamento filosófico.

O autor não demoniza a tecnologia, a "ciência da técnica", como um dispositivo anti-humanista e anti-espiritual, tampouco embarca na mistificação, tão assídua nos dias de hoje, de achar que o computador seja o motor da história, que a técnica ou cibernética decida o destino da humanidade, como se houvesse um juízo final dirigido pelos computadores de Bill Gates.

Ideologia

Hegeliano-marxista, Álvaro Vieira Pinto acredita que a técnica é mediação, e que o homem é o verdadeiro autor de seu destino, e não a tecnologia. 

Ele nega que estaríamos atualmente vivendo numa prodigiosa "era tecnológica", isso simplesmente porque toda época possui a tecnologia a que pode ter acesso. 

Esse deslumbramento traz embutida a falsa idéia de que a história é um produto da técnica; trata-se de uma ideologia das nações metropolitanas e imperialistas para deixar embasbacada a periferia do mundo, conforme se observa nos filmes norte-americanos das últimas décadas em que o computador é invariavelmente o principal protagonista dos enredos.

Merece destaque a reflexão sobre a clivagem entre metrópole e colônia, principalmente porque ela desapareceu do mapa mental contemporâneo. 

Ainda que exerça um raio de ação cada vez mais devastador e abrangente, o imperialismo paradoxalmente tornou-se invisível e inabordável. 

Acredita-se piamente que é a falta de técnica a causa da fome, de modo que chegou o momento de dar técnica a quem passa fome.

A alienação que traz o pacote tecnológico externo é completada pelo investimento do capital estrangeiro.

A transferência de tecnologia é um engano, assim como a importação de tecnologia não leva ao desenvolvimento.

"Tão importante quanto elaborar a teoria do atraso do povo pobre é elaborar a da superioridade das nações metropolitanas", escreveu profeticamente Vieira Pinto.

O sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos nasceu em 1949 em Santa Adélia, interior de São Paulo. Filho de médico sanitarista, seu Zolachio Vasconcellos, e de professora primária, dona Adelaide Felisberto. Em 1968, entrou para o curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), formando-se em 1972. Da efervescência dos anos de chumbo passou incólume. Nunca se interessou pelo movimento estudantil. Mergulhou nos estudos sobre Escola de Frankfurt, psicanálise, literatura, Karl Marx, György Lukács e teoria da dependência. Considerado aluno prodígio, doutorou-se na mesma universidade em 1977 com a tese A Ideologia Curupira: uma análise do integralismo à luz da obra do professor Fernando Henrique Cardoso.1

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