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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ENSAIO

GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Carlos Sepúlveda
Certa feita, indagado por que seu romance era tão difícil de ler, Guimarães Rosa respondeu que apenas chamava as coisas pelo nome.
De outra vez, questionado acerca da mesma dificuldade de leitura, Rosa argumentou que seu romance não era para ser lido, mas sim para ser declamado, como um epos grego.
Nestas duas anedotas, já parte do folclore sobre um autor que Carlos Drummond de Andrade certa vez perguntou se existia de se pegar, pode se esconder uma face importante da explicação deste extraordinário romance, um dos livros mais belos jamais escritos na língua de Camões.
Se prestarmos um pouco mais de atenção ao que foi dito, vamos notar que, de um lado, existe a nomeação que é, afinal de contas, por onde se conduz toda e qualquer arte de contar, uma vez que narrar, contar, ficcionar constituem um artifício de realidade, um fingimento, um fazer de contas. É a nomeação que nos conduz como leitores, no sentido de levar para o outro lado, para além dos vínculos do cotidiano, da finitude burocrática de nosso horizonte corriqueiro e imediato. Afinal, o leitor só existe porque o real é pouco e pobre, em face da facticidade obrigatória do viver.
Assim, chamar as coisas pelo nome é uma forma de possuí-las, é reintegrá-las em outro universo de significação, fazendo nascer outros vínculos, surpreendentes e inovadores, desterritorializando-nos ao apelo comum do mundo e das coisas, das palavras e as coisas.
Nomear é instaurar mundos. É o poder babélico do mundo a ser desmoronado ou o poder do clarão de pentecostes para um mundo a ser fundado. Os limites do mundo são os limites de minha linguagem, recitaria o inexplicável Ludwig Wittigenstein.
Esta é, talvez, a grandeza primeira e imediatamente compreensível nesta obra magistral. Retornarei a este ponto mais adiante.
A segunda réplica aponta para a oralidade.
Ao reivindicar o aspecto declamatório de seu discurso, GR busca recuperar a discursividade, no sentido de aproximar o mundo narrado de uma fala do outro para o outro da fala. Com isto, desfazer o nó logocêntrico que manteve cativo um número considerável de narradores, sobretudo durante o período romântico, que se caracterizou pela formação das grandes narrativas.
Com isto quero dizer que Guimarães Rosa parte da ruptura moderna em torno a todo saber teórico, isto é, o saber presidido por uma relação de identidades entre a tradição e a autoridade que são as formas clássicas de transmissão do saber. O acento na oralidade significa a opção pelo pragmatismo, pelo senso-comum, a meu juízo o elemento fundamental, a base mesma do argumento desta estória monumental. Voltarei a este ponto mais adiante e com mais detalhes.
Por enquanto, vale lembrar o modo como o autor introduz seu enredo.
Na cena comunicativa de Grande Sertão: veredas, estabelece-se a figura de dois personagens apenas: Riobaldo e seu ouvinte ilustre, um doutor da grande cidade que passou, acidentalmente, pela propriedade do jagunço aposentado e lá permaneceu por três dias. Assim, simples e direto, sem grandes rodeios, o que há é uma prosa mineira, em busca de um consenso em que nenhum dos dois interlocutores dispõem do monopólio da verdade, por isso mesmo trata-se de um espaço de convivência radicalmente aberto, livre, emancipatório.
Mas, qual o tema da conversação? Nada menos do que a travessia, isto é, o nonada da vida, a vida nonada, este intrigante e indecifrável estar-no-mundo.
Pretendo com estas observações preliminares estabelecer meu modo de compreensão desta obra ímpar em nossa literatura, deste texto surpreendente, esperando desta generosa audiência que lhe faça justiça com uma visita ou uma re-visita. Não creio que um brasileiro que se suponha culto, no sentido acadêmico da palavra, possa dispensar esta leitura.
Resumindo, pois, minha hipótese de trabalho: admito três aspectos estruturais, de início:
a) nomeação, isto é, os vínculos estabelecidos entre o nome e a coisa, no romance, como uma espécie de função encantatória da linguagem e que promove uma espetacular ruptura nos clássicos modelos de verossimilhança. É o que acontece sob a rubrica do maravilhoso e do fantástico na palavra SERTÃO. Nada do que o narrador conta existe antes ou depois do ato de nomear. Tudo só existe enquanto na emergência do que está dito, no exato momento em que escutamos, como um acontecimento fundador. O resto é silêncio, ou melhor: o resto é nonada.
b)A oralidade, isto é, o revolucionário estatuto do narrador-Riobaldo, abrindo um abismo entre o narrar enquanto saber centrado e concentracionário e o narrar-com, verdade que se constrói ao lado de, sem exclusões. Narrar como se vida fosse, mas vida enquanto totalidade do vivido, incluindo os interditos, a falta, os fracassos, porque, como na palavra poética de Cecília Meirelles, a vida só é possível reinventada. Diadorim, Dia-dorim, é a metáfora deste transitar transgressor.
c) O senso-comum, isto é, a mathesis ou, se preferirmos, a matéria mesma que faz deste romance um dos mais competentes acervos da sabedoria do jagunço ( quer dizer:do simples) que nos conduz a uma dimensão transcendental, para além de todo particularismo, abrindo uma nova percepção do regionalismo. É esse verdadeiro tratado universal do senso-comum que nos possibilita recolher, neste particularismo ontológico, a dimensão do eterno, do tesouro comum da humanidade. É por este caminho que nosso Guimarães Rosa é um iluminista radical, sobretudo no sentido da liberdade. É também por este trajeto que sua narrativa é moderna, no sentido de recolher o eterno daquilo que é efêmero, transitório, cotidiano. É aí, na transcendência do familiar que o senso-comum se constitui em discurso literário.
Espero, pois, conduzindo estes três aspectos em permanente diálogo, complexo como convém a uma obra desta importância, chegar a uma interpretação crítica deste romance excepcional em nossa produção contemporânea.
Nas edições de Grande sertão:veredas pela editora José Olímpio, há um apêndice em que se reproduz a nota escrita pelo autor e na qual se lê o seguinte:
Aos leitores, e aos que escreverem sobre este livro, pode-se não revelar a seqüência de seu enredo, a fim de não privarem os demais do prazer da descoberta de Grande sertão: veredas.
Peço licença, pois, ao velho e querido e encantado Rosa para não obedecer o seu pedido, uma vez que seria impossível falar desse romance na suposição de que todos tivessem lido. Não parto desta hipótese.
É necessário, portanto, adiantar alguns aspectos e revelar o enredo, para que se possam entender as considerações que se seguem.
Trata-se, na verdade, de uma estória até certo ponto, singela, muito simples em sua superfície, como aliás são todas as estórias complexas e geniais. A complexidade, porém, se desvenda à medida em que o enredo vai-se desdobrando enquanto cifra da memória do narrador-personagem.
Riobaldo Tatarana, o Reinaldo, o Urutu Branco, é um jagunço em retiro na sua propriedade. Velho em busca da sabedoria, espelhada no compadre Quelemém, ele é um depósito inesgotável de memórias e de reflexões luminosas sobre a existência, sobre a vida e sobre a morte, sobre as coisas, o estar-no-mundo. Com seu compadre, Quelemém, kardecista, trava longas discussões sobre a transcendência, sobre os mistérios de viver e morrer, Deus e o diabo.
Este velho jagunço em preparação para a morte recebe, por três dias e três noites, a visita de um homem da cidade, isto é, de um citadino, supostamente cosmopolita e culto, no sentido elitista do termo, um doutor, que se dispõe, aparentemente com boa vontade, a ouvi-lo. Não há, em nenhum momento da narrativa, a fala explícita desse ouvinte, apenas, no discurso de Riobaldo ou através dele, é que se supõe a fala do outro.
De um ponto de vista estrutural, trata-se de um deslocamento da grafocracia para a escuta, a oralidade, pois é um longo monólogo em que o narrador e seu ouvinte atravessam, pelo viés da memória do primeiro, as trilhas e veredas imaginárias do Grande Sertão.
Vamos nós também, intrusos nesta prosa, com um terceiro ouvido, seus leitores, a partir da primeira palavra dessa grande fala ( nonada) viajando juntos, como ouvintes do ouvinte, intrusos, como dissemos, onde não fomos chamados, que ouvimos atrás da porta uma conversa de dois.
Mas o que nos seduz nesta interminável conversação e que nos leva a querer saber qual seu desenrolar – o seu novelo – são os conflitos entre a vida vivida pelo narrador e sua interpretação depois do vivido: isto é, a essência mesma daquilo que o narrar é, o porquê precisamos contar, da originalidade de todo ato de ficcionar: o verossímil.
Para dar sustentação a este jogo, Guimarães Rosa, com sua diabólica sensibilidade e sutileza, introduz Diadorim, certamente ao lado de Capitu os dois mais intrigantes enigmas de nossa literatura romanesca, ambas emulações de uma fina ambigüidade.
Pois bem, é isto e nada mais. Acontece porém que esta aparente redução acaba se desenrolando ao longo de 500 páginas, num jogo de extraordinária humildade, de sedução, encantamento e lucidez, porque narrar é também um certo sabor de saber.
Haja leitor para tanta obra prima!
Cumpre-se aqui o preceito da poética de Aristóteles segundo a qual a verdade poética é superior – enquanto dizer essencial – à verdade histórica. Acho mesmo que não exagero se disser que Grande Sertão:Veredas é, de certo modo, um elogio da verdade poética, como o elogio da loucura de Erasmo também o é. Um elogio da inesgotável possibilidade de falar o homem naquilo que ele tem de universal, transcendente e, sobretudo, provisório.
É este aspecto que gostaria de enfatizar neste momento.
Não pretendo dizer com isto que a verdade poética e a verdade histórica sejam territórios autônomos e que se podem estabelecer hierarquias imperiais entre uma coisa e outra, não se trata disto. Pretendo que haja uma verdade essencialmente vivida pelo homem, como experiência única, para além de todo particularismo, de toda convenção e que vale para além de sua precária temporalidade e finitude e que isto não anula o fato de que viver é circunstância, que o sujeito é sempre situado. O que imagino, e que Grande Sertão:Veredas me permite fazer entender, é que na condição de ser histórico e situado, falado em suas inscrições na sociedade, na história, no desejo, Riobaldo é a metáfora do homem onde há este mistério, com o qual está condenado a viver: a vontade de transcendência, de ir-além e para além do Bem e do Mal. Só o homem pode viver a experiência da verdade como revelação. Ao contrário dos outros animais que se ocupam das coisas, o homem se pré-ocupa com as coisas.
Podemos talvez chamar a isto liberdade, no sentido sartriano do termo, na ânsia de tornar-se livre, autônomo, face-a-face com seu advento. Portanto, estou falando de uma antropologia metafísica mas também de uma ontologia fundamental e enquanto achamos que esta possibilidade existe, acontecemos humanos, repetindo as palavras do Professor Manuel Antonio de Castro em suas análises heideggerianas desse romance.
Mas humano é uma coisa que somos ou em que nos tornamos? É uma construção, uma determinação, uma invenção?
Eis o mistério de todo Saber, pois só nos reconhecemos humanos porque incompletos na busca dessa comunhão essencial: o Ser é transitório, transitivo e travessia.
Voltemos agora ao primeiro aspecto que mencionei nesta conferência: a nomeação.
O romance é um poema, no sentido de que se move no reino das metáforas e das palavras que precisam ser deslocadas de seu acervo semântico habitual e condicionado. Justifica aquela assertiva de Fernando Pessoa quando diz que em prosa é difícil de se outrar. Trata-se pois de um exemplo perfeito do que, no seu clássico ensaio, Roman Jakobson denomina função poética da linguagem.
Diadorim é um duplo, uma travessia, uma revelação feita a Riobaldo na outra margem do rio e que vai fasciná-lo a vida inteira com seu misterioso poder de sedução. A ele e a nós, leitores enveredados, surpreendidos que somos por aquilo para que o autor pediu silêncio.
Lembro que o primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim acontece justamente nas margens do rio, na terceira margem do rio.
Diadorim é uma mulher, chama-se Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, que nasceu para guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor.Diadorim vai seguir o pai e depois vingar-lhe a morte. Transveste-se de homem e vive, com Riobaldo, todas a dimensões de um amor ambíguo, no possível impossível do desejo não realizado, enquanto peleja a vingança, por Joca Ramiro.
É neste conflito que o autor joga toda a essencialização e todo o engenho de seu narrar intertextual, tanto que, se este aspecto fosse eventualmente excluído da narrativa, simplesmente não haveria narrativa a se cumprir, como obra de arte superior e incomparável, como é superior, este texto magistral. Por que é lá, no fundamento desta ambigüidade, no lugar desse desejo, que se realiza a força do não dito, que se desvela, no fim, no dizer fundamental:
Sendo isto. Ao dôido, doideras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (79)
Este outro para quem Riobaldo conta suas aventuras no Grande Sertão e de quem se espera alguma decifração é parte do enigma. Não pode ser descartado mas também não dispõe de razão suficiente para mergulhar no enigma do mundo do Ser do Sertão. Sua razão é desse mundo e a razão de Riobaldo não está nas coisas, mas no que se esconde por detrás delas, ele quer o avesso, a sobrecoisa, porque o outro não se deixa eliminar, subsiste, persiste; é o osso duro de roer, lá onde a razão perde os dentes ( Antonio Machado)
Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez. Mas não se avexe, não queira chuva em mês de agosto. Já conto, já venho – falar no assunto que o senhor está de mim esperando. E escute. (370)
Voltemos agora ao primeiro aspecto do que lhes falei em minha interpretação: a nomeação.
O romance é um poema, no sentido de que se move no reino das palavras que precisam ser deslocadas de seu acervo semântico habitual. Trata-se, pois, do que no seu já clássico ensaio Roman Jakobson denomina função poética da linguagem.
A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação
Isto significa, em última análise, uma desautomatização do signo, isto é, uma relação diferente entre o liame significado-significante, abolindo os referentes condicionados na e pela experiência do cotidiano e, mais ainda, a autonomia do dizer que não tem mais a obrigação de restringir-se aos referenciais imediatamente reconhecíveis. Ao contrário, o privilégio na equivalência da combinação ( sintagmas) sobre a seleção ( paradigmas) liberta o sentido e desobriga a lógica deste mesmo sentido, por isso a alogicidade é uma das marcas mais importantes do lirismo.
Assim é que no dizer poético reside a possibilidade de recolher a experiência do fundamento, aquilo em que nos tornamos enquanto ser-aí e que só a linguagem pode revelar, porque somente ela, a linguagem, sabe mais do que nós.
A nomeação poética é como fundar outro idioma dentro de nossa própria língua, por isso existe a língua portuguesa, sistema lingüístico comum aos falantes, e a língua de Guimarães Rosa. Daí que ler Rosa é como exercitar uma tradução.
O que pretendeu o autor com esta nomeação fundamental? Que vínculos se estabeleceram a partir das novas possibilidades de significação entre o nome e a coisa, experiência historicizada pela geração de 1945? Que leitura foi esta que os modernismos de 22 e 30 fizeram e que levou muitos críticos, como José Guilherme Merquior, a chamar a geração de 45 de falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa?
Estou, é claro, levantando alguns problemas que este romance suscitou quando de sua publicação em maio de 1956.
Sobre este último aspecto, é preciso que se esclareça o fato de que a palavra poética, conduzida como um retorno a uma certa sofisticação, não estava de todo ausente do programa modernista. O que houve foi um certo exagero nas posições radicais da geração combativa de 22 e que se expandiram, especialmente no sentido de uma aproximação com o discurso cotidiano, na língua coloquial. Deste último aspecto, Guimarães Rosa utilizou-se plenamente: GS:V é pura oralidade.
Não que o coloquialismo seja um dialeto menos ou mais poético, não é esta a questão. Mas é que há sempre o risco de, sob a rubrica do coloquial, cair-se na banalização pura e simples do discurso de comunicação de massa e com isto perder-se o vigor essencial da nomeação poética que é, sobretudo, uma busca do sentido mais profundo ( puro) para as palavras da tribo, portanto menos visíveis nas falas habituais. O que não quer dizer que não se possa, a partir destes dialéticos, encontrar o fundamento do dizer essencial. Mas aí é outra coisa…
Guimarães Rosa fez algo de genial neste romance. Tomando o coloquialismo do jagunço, sua fala social e sertaneja, por ele recriada, conseguiu um tal nível de expressividade poética que a conduziu até ao lugar privilegiado da verdade por excelência, isto é, criou um novo idioma, que é uma forma de verossimilhança radical, no sentido de que, quem cria linguagens, produz mundos. Do mesmo modo, por exemplo, Cervantes fez com o espanhol pouco refinado que usou, no século XVII; que Kafka fez com o alemão de Praga, enquanto língua menor, no dizer de Deleuze e Guattari.
Depois deste romance, podemos dizer que há uma língua portuguesa, que é uma coisa, e a língua portuguesa de Guimarães Rosa, que é outra, sem deixar de ser a mesma.
Pois é este novo liame entre o nome e a coisa a mais radical possibilidade de dizer a diferença, de transformar o silêncio em expressão poética, num trabalho de Sísifo capaz de tornar dizível o indizível.
É neste sentido que a obra de GS, à semelhança dos grandes gênios da literatura é uma metaliteratura.
Eis aonde a nomeação nos conduz.
Complementarmente a esta característica, segue-se a oralidade.
O narrador supõe um ouvinte ilustrado para o qual conta sua vida, como Scherezade conta suas estórias para um Califa entediado e predestinado. Esta figuração é propriamente um epos, uma épica, conduzindo, pois, à estrutura do épico.
Se buscarmos com cuidado, vamos notar que lá estão as marcas clássicas de um discurso épico: o narrador, o desenrolar progressivo da matéria narrada, a autonomia das partes, a articulação entre o real e o maravilhoso, o plano histórico confluindo com o mítico, as intertextualidades, etc…
Quem pretender pesquisar nesta linha, como fazem alguns pesquisadores brasileiros, com notável competência, terá aí material para muito trabalho.
Do ponto de vista que escolhi, no entanto, imagino articular esta oralidade mais no sentido de um diálogo intertextual com os narradores modernos ( e eventualmente pós-modernos), em especial aqueles narradores que se descentram de suas certezas e narram, como no caso de Machado de Assis, seus fracassos também, isto é, narram suas trajetórias. Porque a vida é trajetória e nela cabem todos os eventos que nos afetam.
É aí que a condição épica clássica se despe de suas marcas genéricas, fato que o professor Anazildo Vasconcellos da Silva analisa muito bem em seus textos sobre o modelo épico moderno.
Seguindo seu ponto de vista, com o qual concordo inteiramente, o narrador épico moderno ( no caso, Riobaldo) não pode narrar senão suas perdas, até porque a imagem do mundo que ele elabora se perde na impossibilidade de confrontá-la com a ordem do real, em razão do caráter fragmentário imprimido pela técnica moderna ao mundo familiar. É a dissolução do mundo contemporâneo que Weber denominou Entzauberung, algo como desencantamento.
Este descentramento encontra uma espécie de apoio tático no ouvinte, para quem Riobaldo desenrola sua vida. É neste contar, miudamente, que ele pode – como Brás Cubas, Bentinho, Aires, em Machado de Assis – recompor seu viver, semelhantemente ao que sucede na metáfora das Mil e uma noites, onde Scherezade encontra no narrar a possibilidade de não ser morta pela Califa de Bagdá. Ela se salvou porque sabia contar estórias. Riobaldo quer atravessar seu rio-baldo, onde a água se torna rasa e ele pode fazer sua travessia, ou melhor, sua baldeação.
Cumpre-se então a identidade entre o narrar e o viver. A oralidade é seu ritual, seu gesto, sua instituição.
Neste jogo entre dizer e escutar, mil segredos se confundem até que o narrador se recolha no humano, seu enigma e desafio, dolorosamente marcado em sua alma com o ferro e o fogo de uma perda irreparável.
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece um pau grosso, em pé, enorme… Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.
∞ (460)
O infinito que encerra a grafia do texto é o símbolo matemático remetendo a um tempo mágico e circular, ao Mistério do nada. Não exatamente o infinito, porque já seria um lugar determinado, mas ao não-finito, ao indeterminado do que não tem fim. A temporalidade negada pelo signo é, antes de tudo, negada enquanto linearidade, racionalidade previsível.
Nosso terceiro e último ponto é o que se refere à mathesis, isto é, à matéria mesma com que o autor elabora sua poiesis e sua semeiosis. Mais explicitamente: uma narrativa – qualquer narrativa – é uma re-elaboração do material disponível, por meio da verossimilhança que, por sua vez, articula, invariavelmente, quatro elementos- a retórica, a sociedade, o estilo e a representação.
Estes elementos transitam como linguagem que nos conduz, nos remete, para o outro lado – a metáfora – em que se transmigra toda e qualquer estória.
Assim, pois, Guimarães Rosa utiliza, como elemento funcional de seu romance, o senso-comum, isto é, o acervo de um saber original, e originário, simplesmente, no que é imediato. Esta aparente pobreza é, na realidade, o maior tesouro desta extraordinária obra de arte.
Gostaria de enfatizar este ponto.
Trata-se de um tema caro ao cristianismo, portanto, à herança do saber ocidental, a partir dos Gregos. Trata-se de ver, na indigência e na simplicidade do mundo em redor, no despojamento, na kenosis paulina, a possibilidade de um encontro com o Ser, com a iluminação, com a verdade revelada, sem a autoridade do adequatio res ad intelectum, porque significa superar todo saber codificado, institucionalizado, transformado em disciplina e em poderes, portanto um saber organizado e patrimonializado que se encolhe e se perde na impossibilidade de falar o que é humano, porque confinado nos limites de uma lógica formal.
Trata-se do encontro da coisidade das coisas, aritotelicamente proposto e que parte do progressivo despojamento do que está demais, dos excessos, da hybris, para encontrar a substantia do essencial. Alguém já se perguntou porque os grandes iluminados da humanidade, esses homens superiores, sempre nascem na pobreza, no despojamento?
Heidegger no seu Sobre o humanismo, em competente tradução de Emanuel Carneiro Leão, copila o seguinte encantamento:

De Heráclito se contam umas palavras, ditas por ele a um grupo de estranhos que desejavam visitá-lo. Ao aproximarem-se, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Detiveram-se surpresos, sobretudo porque Heráclito ainda os encorajou – a eles que hesitavam - fazendo-os entrar com as palavras: pois também aqui deuses estão presentes. ( 86)

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