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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

TEXTOS DE ORLANDO SENNA

Nosso futuro chinês

Em 2013 a China se tornou a maior potência comercial do mundo, superando os EUA. É o país mais populoso do planeta (mais de 1,3 bilhão de habitantes), com uma história e uma cultura que remontam a 38 séculos. No século passado aconteceu um fato importante nessa saga milenar, que foi a polêmica Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, de onde resultou a atual e socialista República Popular da China.
Com esse currículo, a China sempre dedicou especial atenção à cultura e, na atualidade, às indústrias culturais. Segundo Sergio Capparelli, jornalista italiano radicado em Pequim, “a China está ansiosa para mostrar ao mundo que pode ser a primeira em termos globais em todos os campos econômicos possíveis, inclusive no da indústria cultural”. Em 2012 a produção dessa indústria aumentou 17% com relação ao ano anterior, respondendo por cerca de 4% do PIB. A meta é elevar a 6% nos próximos dois anos.
A indústria audiovisual é a menina dos olhos deles. Duas gigantescas instituições governamentais cuidam do assunto: a Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão (com nível de ministério) e o Ministério da Cultura. A TV é administrada pela Televisão Central da China (para se ter uma ideia, a sede é um prédio de 44 andares). O cinema está sob jurisdição da China Film Corporation, sempre em conflito com os EUA porque a China permite a importação anual de apenas 34 filmes estrangeiros.
Em 2018 será inaugurada, na costa leste chinesa, o maior centro mundial de produção audiovisual, empreendimento de seis bilhões de euros, uma parceria público privada. E por aí vai, o paisão asiático está se preparando para inundar o mundo não apenas com os produtos baratos (domésticos, digitais, cosméticos, brinquedos) que conhecemos, mas também com filmes, séries de TV, videogames, música, literatura e todos os possíveis produtos que possam mexer com nosso imaginário e com nosso comportamento. Com o nosso way of life, que eu ainda não sei como se diz em chinês, mas não demora muito e saberei. 
No seu avanço como potência planetária, a China está de olho grande na América Latina. Está de olho no mundo todo, é claro, mas com uma mirada mais amorosa em direção à América Latina, aqueles olhos puxados nos paquerando misteriosamente. Razões não faltam, a América Latina é uma região em ascensão econômica. A porta de entrada é o Brasil (tem a ver com os BRICs), o quarto principal destino de recursos chineses, atrás apenas de Austrália, EUA e Canadá. Nos últimos cinco anos a China aplicou no Brasil cerca de 30 bilhões de dólares. A modernidade humana já foi culturalmente influenciada pela Europa, depois pelos EUA, e deu no que deu. Como será o mundo sob influência majoritária chinesa? Como será o mundo para nós, ocidentais, os de olhos redondos, “olhos de diabo” como eles dizem. 

Dispensados por motivo de morte
                                                                                                          “O operário emocionado / olhou sua própria mão / sua rude mão de operário / de operário em construção / e olhando bem para ela / teve um segundo a impressão / de que não havia no mundo / coisa que fosse mais bela”. Esse poema de Vinicius de Moraes, O operário em construção, tão pungente e engajado, me vem à mente com as notícias de mais um operário que morre em acidente de trabalho nas obras dos estádios da Copa do Mundo. Já são seis vítimas fatais. Não sabemos, jamais saberemos, quantos operários caíram ou foram esmagados ou afogados ou explodidos na história das mega construções, desde as pirâmides dos faraós do Egito ao One World Trade Center que está acabando de ser construído em Nova York, com 541 metros de altura.
Estima-se que seriam necessários 100 mil operários trabalhando sem parar durante 20 anos para construir as 100 pirâmides erguidas na margem oeste do Nilo, há quase cinco milênios. O que se sabe, via pesquisas arqueológicas, é que eram turnos ou temporadas com 10 mil trabalhadores e que havia grandes cemitérios para operários ao lado das pirâmides. Sobre a Muralha da China se sabe menos ainda. Sobre a Represa Hoover, maior construção dos EUA, erguida nos anos 1930, sabemos que o governo celebrou o fato de apenas 96 pessoas perderem a vida na obra, número severamente contestado por sindicatos de trabalhadores.
Voltando ao país da Copa, as grandes obras do “milagre econômico” da ditadura são de estarrecer. Na ponte Rio-Niterói morreram 33 operários segundo o governo ditatorial e mais de 400 segundo engenheiros que trabalharam na construção. Na Transamazônica até hoje é comum ouvir uma frase arrepiante: “a beira da estrada toda é um cemitério”. A ereção de Brasília, em tempos democráticos, é uma hecatombe, somando os acidentes mortais com massacres a bala de operários pela Guarda Especial de Brasília. Os acidentados e assassinados, sepultados no cimento, nas fundações de Brasília, eram registrados como “dispensados por motivo de morte”. Vejam o filme Conterrâneos velhos de guerra de Vladimir Carvalho, está tudo lá. E também a trágica poesia de O romance do vaqueiro voador de Manfredo Caldas.
Atualmente as empresas e os governos que contratam as empresas oferecem explicações, porque antes isso não existia, tudo era “fatalidade”. Agora é defeito mecânico ou falha humana. No setor das mega construções a explicação é, na grande e vergonhosa maioria das vezes, que a culpa é do operário que morre. A vítima é culpada, não há acidentes, há suicídios. Como aconteceu nos óbitos na Arena de Manaus, onde autoridades e empresários disseram que os operários não usavam o equipamento de segurança “por preguiça”.
Um aspecto grave e inexplicável da questão é a ineficiência da tecnologia, tão avançada em tantos aspectos e não consegue resolver a segurança do operário em construção. Existem alarmes para carros que estão com a porta aberta e não existem dispositivos para impedir que um operário entre na obra sem o equipamento de segurança necessário. Comecei com Vinicius e encerro com A construção de Chico Buarque, e com dor: “e tropeçou no céu como se fosse um bêbado / eflutuou no ar como se fosse um pássaro / e se acabou no chão feito um pacote flácido / agonizou no meio do passeio público / morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.


Poluição audiovisual

> Estou vendo filmes da década 1940, franceses e estadunidenses. Em preto e branco, fotografia com forte contraste luz e sombra, narrativa com tempos para reflexão e respiração. Sem jorros de sangue ou vísceras expostas, um tratamento da violência completamente distinto do que vemos nos filmes e telesséries da atualidade. De vez em quando organizo essas mostras particulares, vistas em casa pela família, de filmes antigos. Funciona como uma desintoxicação audiovisual.

> A visita à arte cinematográfica de 70 anos atrás se me apresentou como uma necessidade sanitária porque sofremos, minha mulher e eu, forte exposição à pirotecnia e à velocidade das informações na TV. Estávamos tentando ver uma telenovela e, durante os intervalos ou porque nos cansávamos de ver, mudávamos constantemente de canal, zapeando como adolescentes. Os anúncios dos próprios canais e a propaganda comercial se transformaram em poluição audiovisual. O estilo "velozes e furiosos" produz em mim, na minha companheira, em muita gente que conheço e creio que em muita gente que não conheço uma espécie de agressão à sensibilidade, um assédio aos neurônios.

> Além de ser uma mesmice, formato igual para todos os canais (apenas alguns canais públicos não o utilizam), é de uma pobreza estética e conceitual de dar dó. A novidade e a qualidade dos videoclipes que inspiraram o formato ficaram para trás, o que hoje se vê e ouve é uma degeneração da proposta surgida há meio século (Now de Santiago Alvarez, o primeiro kinoclipe) de aceleração do ritmo ao juntar música e imagens. O que resta é um pipocar exagerado de cortes, fusões e algaravia sonora. A propaganda do comércio varejista é a pior, parece que cada cenário é uma casa de loucos em momento de surto.

> Sabe-se que a vida humana ganhou ritmos mais rápidos e sincopados nos últimos tempos e que a arte tende a acompanhar o diapasão da vida. Isso é uma coisa, outra coisa é acentuar, enfatizar além da conta, ostentar o tictac da edição em uma medida exagerada. O efeito é adverso ao que se está tentando, não resulta em uma comunicação mais efetiva e sim em monotonia.

> Nas muitas possibilitadas aventadas para a máquina do tempo, se vier a existir, está a de que um ser humano de hoje levado à Roma Antiga não resistiria muito tempo, seria sufocado pelos odores da época, pela sujeira, que para nós seria como um bafo de pestilência, um miasma insuportável. Também se profetiza que um espectador de cinema dos anos 1910, se transportado aos dias de hoje e posto diante de uma tela cinematográfica ou televisiva, além de não entender nada, seria vitimado por enjoos e náusea, por vômitos e enxaquecas oftálmicas.

> O lado bom dessa situação é que se trata de uma tendência que em algum momento será superada pelo engenho humano, agora contando com instrumentos que abrem novos horizontes para a invenção, para novos caminhos de comunicação. E também que o Cinema se compõe de várias artes: o cinema mudo provoca sensações estéticas específicas, o cinema em preto e branco é um campo até hoje inesgotável para outro tipo de apreensão também específica e Matrix gera prazeres ou rejeições que outras artes do Cinema não geram.

> Sobre o preto e branco minha companheira de vida e das mostras domésticas chamou a atenção para o não naturalismo desses filmes, embora narrados de forma realista. Porque a vida não é em preto e branco e o que isso produz, disse ela, "é pura fantasia". Na mosca: Cidadão Kane é mais irreal que Matrix. Confiemos no poder da arte.

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