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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

ARTIGO

" A contraofensiva das elites dominantes "




Nils Castro nasceu no Panamá, é doutor em Letras e licenciado em História da Arte. Participou de iniciativas para o reestabelecimento da democracia em diversos países na América Latina. Foi professor em universidades no Panamá, Cuba e México, e diretor do Grupo de Contadora, coletivo integrado por México, Panamá, Colômbia e Venezuela como resposta à retomada política intervencionista norteamericana na América Central. Nils escreve para diversas publicações da região, inclusive do Brasil.


Em fins do século passado tivemos na América Latina um auge dos movimentos sociais, acompanhado de sucessivos êxitos eleitorais de determinadas organizações de esquerda. A conseguinte aparição de significativo numero de governos progressistas no início do século XXI, fez sentir que uma “nova esquerda” tinha entrado em cena. Contudo, esta expressão jornalística, mais que introduzir um novo conceito político, refletiu o fato de que em nossa América a realidade experimentava mudanças de crescente importância, ainda que não seja fácil defini-las em conjunto, pela diversidade de processos nacionais que tornaram factível que esses êxitos e governos acontecessem.

Não obstante, seria ingênuo supor que estes acontecimentos pudessem se repetir e consolidar sem suscitar uma reação dos interesses transnacionais e locais e relacionados com as direitas. Assim o demonstram o golpe militar perpetrado em Honduras em 2009, a conspiração para invalidar o governo da Guatemala em 2010, a intentona golpista cometida no Equador em setembro de 2012, assim como o golpe parlamentar no Paraguai. Em outro plano, as derrotas eleitorais infringidas à socialdemocracia no Panamá em 2009 e à Concertación chilena em 2010, bem como as tramoias que impediram a vitória do PRD mexicano e a participação da candidata da UNE guatemalteca.

Ao mesmo tempo se evidenciou que essa contraofensiva não se limita ao retorno das direitas tal como as conhecemos, mas que inclui vê-las voltar equipadas com outro discurso, formas e métodos e traçando para si metas mais radicais que podem estar acompanhadas tanto de poses socialdemocratas e até “lulistas”[i], como de descarados populismos neofascistas[ii]. Isso não quer dizer que todas as variantes da direita latino-americana já assumiram um novo padrão ou irão adotá-lo em seguida e de modo uniforme, mas que em cada circunstância o implementarão nas formas, combinações e ritmos que melhor às respectivas condições e conjunturas locais.

Não obstante, é necessário ter presente essa mudança, porque é parte de uma evolução que ainda dará bastante o que dizer. Em um mundo onde já não só campeia a globalização mas também a crise, as elites econômicas transnacionais e locais igualmente se adaptam e modificam, mudam suas formas de fazer negócios e associar-se, adotam novas tecnologias e estilos e, com isso, substituem atores e renovam formas e meios de apresentar e reproduzir sua hegemonia e de justificar suas tropelias[iii].

Sua atual acometida faz pensar que estamos diante de um conjunto –multifacetada mas consistente – de características e procedimentos políticos que dão forma a uma direita “nova”, quer dizer, a um adversário que renovou imagens e procedimentos, cuja evolução é preciso examinar.

As esquerdas: um processo incompleto

Os êxitos eleitorais que certas esquerdas latino-americanas alcançaram e mantiveram durante este período constituem uma das consequências das reações populares causadas pela deterioração da situação material e cultural sofrida durante os anos precedentes e, da conseguinte busca por respostas políticas que as grandes massas de latino-americanos começaram a reivindicar. Isto é, o que ocorreu reflete uma mudança no estado de ânimo desses setores populares, manifestado ao voltar a conquistar a oportunidade de reivindicar suas demandas através dos instrumentos democráticos disponíveis.

Trata-se de um fenômeno real, porém temporal e ainda incompleto. Com os matizes próprios das respectivas circunstâncias nacionais, seus êxitos foram alcançados especificamente no campo político, ou político-eleitoral, sem que – pelo menos até o momento – essas esquerdas contassem com as condições culturais e organizativas necessárias para remover as demais estruturas de suas respectivas sociedades.

Esta limitação se deve a que o desgosto dos eleitores ainda não teve oportunidade de amadurecer o desenvolvimento ideológico e organizativo que falta para propor-se objetivos de maior projeção. Em outras palavras, que sua cultura política ainda não elaborou outro modo de questionar a realidade, nem tampouco um projeto confiável com o qual tomar a decisão de transformá-la. Se o que ocorreu reflete uma mudança no estado de ânimo da massa de eleitores, isso significa que ainda não estamos diante de uma nova consciência que se distinga pela consistência de seus postulados, mas diante de uma maneira de raciocinar que em certo momento se expressou como voto de repúdio à situação precedente, mas que mais tarde poderá ir-se à deriva em outras direções.

Contudo, nestes anos as esquerdas latino-americanas demonstraram que – até o atual nível de inquietação e desenvolvimento sociopolítico de seus respectivos povos e região – elas não só adquiriram uma experiência de governo como também provaram ser capazes de administrar o regime capitalista melhor que as próprias direitas. E ao fazê-lo melhoraram significativamente as condições de vida e de participação de milhões de latino-americanos. Ainda que também ao mesmo tempo demonstraram que por esta via ainda não estamos com a capacidade para substituir o regime existente por outra formação histórica mais avançada.

Em outras palavras, agora estamos diante de processos que, por um lado, estão por consolidar-se e ainda sujeitos a uma contraofensiva das direitas. E que por outro, não conduzem, nem espontânea nem automaticamente, por si mesmos, a substituir o capitalismo por outro modo de produção o que obriga a pensar em que é o que falta para alcança-lo[iv].

Uma direita vencida mas não derrotada

Se bem no campo eleitoral o grande capital e seus políticos, partidos e meios de comunicação sofreram um importante revês em vários países latino-americanos, os núcleos medulares das elites econômicas e seus colaboradores políticos conservam seus instrumentos básicos de controle, atuação e poder. Apesar do desconcerto que esse revês lhes causou, eles ainda controlam importantes instrumentos do sistema político existente, bem como o domínio dos meios de comunicação mais poderosos[v]. Quer dizer que nestes anos as esquerdas venceram politicamente as formas tradicionais das direitas, mas não derrotaram a direita “como tal” posto que sua elite socioeconômica manteve as bases de seu poderio e os principais instrumentos midiáticos de sua influência.

Por fim, ao contrabalançar as experiências vividas, os talentos e os meios e comunicação das direitas – hoje hegemonizados pelo capital associado à manipulação neoliberal da globalização – já tiveram oportunidade de decantar e renovar suas alternativas estratégicas e de reatualizar suas opções políticas. Nestes últimos anos sua contraofensiva foi sendo reorganizada tanto nos países onde alguma corrente de esquerda ganhou as eleições ou esteve próximo disso, como também naqueles onde isso ainda está por ocorrer.

Isto não tem sido tramado em vão. O clima é propício para que essa contraofensiva possa afetar as camadas sociais subalternas, e também lhe favorece o ambiente de desencanto e desintegração ideológica e política ocorrida depois do refluxo dos projetos revolucionários dos anos 1970 e o colapso da URSS. Explorando esse ambiente potencializou-se a ofensiva neoconservadora dos anos 1980 e 1990, da qual ainda padecemos importantes sequelas ideológico-culturais. Refluxo e colapso que os representantes do capital transnacional utilizaram para justificar os “reajustes” neoliberais, diante da desorganização das propostas que neste momento poderiam as esquerdas contrapor e a temporal insuficiência dessas esquerdas para assegurar a nossos povos outra alternativa, apesar das calamidades sociais que tais reajustes em seguida começaram a provocar.

Naquela situação, as esquerdas em fins do século enfrentaram a ofensiva político-cultural da direita neoliberal mais com críticas do que com contrapropostas. Enquanto isso, essa direita, por sua vez, aproveitou a conjuntura como a oportunidade para recolher e agitar em seu favor uma parte significativa dos desgostos sociais que pouco antes ela mesma contribuiu para agravar, desorientando as demais forças políticas.

Porém agora não só presenciamos uma mudança nos pretextos, métodos e linguagens da elite dominante e seus operadores políticos, como também podemos observar como seus meios intelectuais e jornalísticos se esforçam por clausurar as esquerdas em uma agenda temática definida conforme o interesse estratégico da “nova” direita. Nesse afã participam paritariamente as agências de notícias, fundações privadas e interesses empresariais dos Estados Unidos e de certos países europeus. Assim sendo, não se trata só de desenvolver as ideias de interesse popular entre os temas em voga mas de colocar em voga os temas que são de maior interesse popular.

Do modelo autoritário ao neoliberal

Ao falar em surgimento de uma “nova” direita não sugerimos que esta seja uma corrente política, ideológica e metodológica homogênea em toda nossa diversidade de países, nem menos ainda que ela expresse um modo de pensar que se possa considerar inédito. Em realidade se trata de um conglomerado em que coincide uma variedade de interesses, cujos objetivos essenciais, métodos e discursos têm precedentes de velha data.

Em seu momento, as velhas direitas latino-americanas – como expressão política das elites socioeconômicas ou “oligárquicas” associadas a uma hegemonia estrangeira – estiveram intimamente ligadas aos regimes de democracia restrita e ditadura militar que predominaram nos anos da Guerra Fria, de duas formas. A primeira, quando diante das mobilizações democratizantes, nacionalistas e progressistas dos anos 1960, elas sem demora correram aos quarteis a solicitar a repressão e instaurar governos autoritários.

A segunda quando, ao amparo dos conseguintes regimes ditatoriais não só resguardaram seus antigos interesses – com frequência ligados à economia agroexportadora tradicional – como em seguida incursionaram nas novas oportunidades do capitalismo dependente, como as do setor financeiro, os serviços internacionais e a exploração de novas tecnologias, campos tanto mais lucrativos em tempos de globalização. Ademais de salvaguardar-se, empreenderam novas atividades, subordinaram-se a outros poderes transnacionais e, em consequência, assumiram novas aspirações e necessidades.

A abertura econômica, a privatização de valiosos patrimônios nacionais e a transferência de importantes empresas do país às companhias estrangeiras ou transnacionais modificaram a natureza das relações da burguesia local com o país e, por consequência, a integração e o perfil dessa burguesia.

Como o tempo não passa em vão, nos anos 1980 já não se podia esconder que as sociedades latino-americanas – assim como o próprio capitalismo – não só tinham crescido como se tornaram mais diversificadas e complexas, enfrentavam outros problemas, davam lugar a novos participantes e requeriam formas de gestão mais avançadas. Assim que demandavam outro gênero de governos, para isto e também para justificar as reformas neoliberais e até infundir esperanças em seus resultados, coordenar sua aplicação e administrar politicamente suas eventuais consequências mais detestáveis.

Como consequência, o processo de mudança das formas de governo não só respondeu ao incremento da complexidade sociocultural dos países, e à complexidade de suas relações com um mundo em globalização, como também à transição que vinha ocorrendo nos núcleos mais dinâmicos das elites econômicas locais e nas suas vinculações com o mercado transnacional. Parte significativa dos proprietários e dos capitais ligados à economia rural e às exportações tradicionais se deslocaram para os negócios característicos da economia de serviços, com substituição de suas conexões, dependências e subordinações internacionais e incorporação de tecnologias que exigiam diferente entorno institucional e instrumentos políticos.

Foi necessário organizar transições controladas, dirigidas a constituir regimes mais legitimados e eficientes e ceder determinados espações (e limites) para a distensão social, a circulação de ideias e a inovação. A disjuntiva estava entre ceder uma democratização dosificada ou ater-se às opções de desordem ou revolução que já começava incubar-se. Isso fez com que a própria elite socioeconômica e seus meios de expressão política levassem a cabo suas respectivas transições para novas formas de governar e de manejar a opinião publica. Onde a oligarquia local ainda estava infensa seus poderosos associados estrangeiros tiveram que intervir mais diretamente na tarefa de empurrar essa evolução[vi].

Nessa necessidade de dipor de novas alternativas políticas, esse foi um período de “modernização e mundialização política” propício, em muitos de nossos países, para as performances da democracia cristã. Como também a de conspícuos partidos e dirigentes com discursos socialdemocrata, vindos uns da reconversão de personalidades liberais e outros da cooptação de ex socialistas abrandados pelos rigores da Guerra Fria[vii].

Do descalabro neoliberal à nova direita

Porém, cedo ou tarde toda transição se esgota. Os novos regimes de democracia pactada e restrita, quase sempre ungidos na tarefa de administrar as reformas neoliberais – as aberturas e privatizações, bem como a redução e desmantelamento das faculdades e dos poderes do Estado, e de suas obrigações assistenciais -, pouco mais tarde tiveram que encarar sua responsabilidade pelos dramas sociais e os descontentamentos que essas reformas agravaram, e seus altos custos políticos. Regimes que durante algum tempo gozaram de bom nome e certa autoridade cívica alguns anos depois foram suplantados pela insatisfação popular[viii].

No final o que restou foi uma ampla percepção não só do descalabro econômico, mas também do descrédito do sistema político instaurado durante a “maré” democrática, inclusive o esgotamento de seus partidos e dirigentes representativos. Generalizou-se a tendência - também instigada pelos grandes meios de comunicação – de responsabilizar o sistema institucional, os partidos e estilos políticos, e aos parlamentos pelas consequências da gestão neoliberal: a fragilidade do emprego, a degradação dos serviços e a seguridade social, o individualismo não solidário, a corrupção, a insegurança nas ruas, a angústia das classes medias, etc.

Claro que, se ao Estado se lhe reduziram as faculdades e meios necessários para regular a economia e intervir em seu curso, isso concedeu ilimitadas liberdades aos investidores e especuladores estrangeiros e nativos para multiplicar os negócios lícitos e também os ilícitos. Com as atividades econômicas e financeiras sem nenhum controle também viria sua desmoralização, de efeitos conhecidos no campo da transnacionalização de velhas e novas formas de delinquência.

A quem culpar, depois, por esses malefícios? O que fazer para acabar com eles de uma vez por todas? Para a direita, os estragos que ela previamente causou agora deverão ser remediados apelando à “mão dura”. Porque para a crônica descuidada ou intencionalmente superficial a culpa está nos maus costumes e nos indivíduos desgarrados, já que é mais fácil culpar o mais aparente que revelar as estruturas sociais ou, melhor dizendo, para evitar que se questione essas estruturas. Assim, enquanto que a reflexão da esquerda investiga opções e constrói propostas, a “nova” direita se satisfaz com argumentos cosméticos e desembaraçados que podem ser mercantilizados sem exigir esforço intelectual.

Porque esta direita vem para salvar tanto os fundamentos como as aspirações do sistema socioeconômico com que ela se identifica, buscando não apenas preserva-lo mas “liberá-lo” do acervo de restrições que o humanismo, a tradição liberal ou as conquistas do movimento popular tenham interposto em qualquer tempo anterior, e a instaurar as formas de hegemonia e de gestão de classe que melhor lhe convenha. Isto é, ela se propõe a desembaraçar a economia capitalista e restabelecer as liberalidades do capitalismo selvagem para recuperar a taxa de lucro. E ela vem determinada a tomar os atalhos mais curtos para executar esse objetivo. Dai o estilo peremptório e “macho” dessa missão, que não quer perder tempo com escrúpulos nem controvérsias.

Tal como essa direita é “nova” por seus pretextos, métodos, estilos e procedimentos, suas intenções e conteúdos são mais reacionários que conservadores. Sem passados ocultos, suas intenções veem dos tempos da acumulação primitiva, anterior al desenvolvimentismo capitalista dos tempos do pós guerra. Mesmo com roupagem cintilante, seu conteúdo já não é velho mas sim antigo.

Se estas apreciações parecem exageradas, os próximos parágrafos ajudarão a avalia-las em seus contextos mais imediatos.

A (contra)revolução conservadora

Esta reatualização do pensamento, a firma e estilo da “nova” direita latino-americana ocorreu sob assídua influência das direitas estadunidense e espanhola, que igualmente se apresentam a si mesmas como as destinadas a garantir um roll back, seja atual ou preventivo.

Como se recordará, nos Estados Unidos a auto denominada “revolução conservadora” propôs acabar com as heranças do New Deal de Franklin D. Roosevelt e a Grande Sociedade de Lyndon B. Johnson. Estas representavam as conquistas sociais alcançadas pelos movimentos sociais e as reivindicações liberais norte-americanas, tais como uma ampliação dos direitos civis, a orientação keynesiana da economia e a regulamentação pública de determinados setores estratégicos como o complexo militar-industrial. Depois de vários decênios, levaram os estadunidenses a encarar o Governo Federal como um amigo paternalista.

Em contraste – de mãos dadas com Margaret Tatcher – o mandato reacionário de Ronald Reagan agitou o slogan de que “o Governo é o problema, não a solução”, e iniciou um brusco recorte das faculdades e serviços do setor público. A ofensiva neoliberal limitou a participação do Estado na economia através da desregulamentação e as privatizações, redução dos impostos para a minoria mais endinheirada e se incrementaram os gastos militares (e as políticas que os justificassem).

Uma política governamental muito ideologizada marginou os sindicatos e demais organizações sociais dos centros de decisão, argumentando que suas demandas eram incompatíveis com a racionalidade econômica e o interesse nacional. Aos que não comungavam com os dogmas de liberalização dos mercados, eliminação do setor público empresarial e equilíbrio orçamentário além dos ciclos econômicos, foram marginalizados dos meios acadêmicos, consultorias, organismos multilaterais e grandes meios de comunicação. Nos anos 1980 a hegemonia dessas teses chegou a ser tão asfixiante que imperaram como pensamento único, ao extremo de que até em nossos países ainda restam zombies que com elas circulam.

Não obstante, a “revolução” conservadora por fim perdeu folego, depois de afundar os Estados Unidos no maior déficit fiscal da história, gerar um aumento exponencial da desigualdade e exclusão sociais, e provocar uma sequência de crises financeiras que, como consequência da globalização tiveram efeitos de abrangência internacional. Na Inglaterra tanto como nos Estados Unidos, o desencanto social decidiu as seguintes eleições a favor da oposição. Mesmo assim, a volta dos democratas ao governo estadunidense e dos trabalhistas britânicos mostrou quanto essa “revolução” conservadora tinha afetado a cultura política das elites dominantes em ambas nações. Os governos de Tony Blair e Bill Clinton respeitaram as teses do conservadorismo conformando-se com adoçá-las com paliativos, no que Joaquin Estefanía qualificou como “um tatcherismo e um reaganismo de face humana”[ix].

Os “neocons”: a contrarrevolução permanente

Enquanto o Partido Democrata governou, os artífices estadunidenses da “revolução” conservadora permaneceram atrincheirados em diversas fundações e think tanks financiados por grandes transnacionais. E nesse lapso elaboraram o chamado Projeto para um novo século americano, sua proposta doutrinaria para lançar uma grande ofensiva neoconservadora para o século XXI – de onde lhes saiu o apelativo de neocons -.

Personagens como Cheney, Wolfowitz, Perle, Rumsfeld, Rice, Ashcroft, Kristoll e Kagan, junto com outros maquinadores do conservadorismo dos anos 1980, adotaram a George W. Bush como seu candidato, submeteram o “partido das ideias” ao “partido dos negócios” e ajudaram a derrotar a candidatura do democrata All Gore apesar de ter tido votação majoritária. Conceberam sua missão como uma cruzada dirigida a implantar uma era conservadora no plano cultural e moral, a erradicar a concepção laica da vida – desde a obrigatoriedade da reza nas escolas públicas até a proscrição da teoria de Darwin -, a combater o igualitarismo, o ecologismo e o feminismo, e a entronizar a prominência da segurança do estado sobre as liberdades civis.

Para impor essa nova era, os neocons idealizaram essa cruzada como uma contrarrevolução permanente destinada a impulsionar e consolidar sua perpetuidade[x]. Seu afã foi (e é) reverter o enfraquecimento da hegemonia estadunidense e a decadência de sua concepção de democracia para “restaurar” um corpo social ordenado, disciplinado e hierarquizado. Daí sua pressa por implementar algumas das principais requerimentos da “nova” direita: traduzir o sentimento de incerteza causada pela globalização e a crise a uma situação de temor coletivo pela segurança; converter as controvérsias políticas e socioeconômicas em conflitos étnico-culturais e religiosos; construir “inimigos” e ameaças que justifiquem generalizar medidas de exceção, e desqualificar sistematicamente a toda crítica e alternativa política.

Seu objetivo é varrer as restrições que as passadas reformas liberais e movimentos sociais antepuseram ao capitalismo selvagem. Esforçaram-se por beneficiar as grandes corporações, instigar o fundamentalismo cristão e entronizar a noção norte-americana de civilização e democracia por qualquer médio, inclusive o militar. O apogeu de sua influencia foi coroado com o máximo de aproveitamento da oportunidade oferecida pelos brutais atentados do 11 de setembro, que lhes facilitaram ampliar o controle sobre os meios de comunicação, regredir as liberdades públicas e desatar as guerra contra o Iraque e o Afeganistão.

A variante espanhola

A direita espanhola, por sua vez, tem na América Latina uma trajetória que vem desde os tempos da “hispanismo” franquista (de Francisco Franco) e abarca duas grandes experiências contrarrevolucionarias. A primeira remonta ao “levantamento” fascista contra a democrática República Espanhola e a sangrenta repressão que veio depois. Sua influencia em nossa América se prolongou em colaboração com as “oligarquias” que então dominavam em nossos países e com grande parte da hierarquia da Igreja católica da época.

A segunda deriva do papel que a direita espanhola assumiu depois da transição democrática e a europeização, em que voltou a se conceber como destinada a reverter os progressos sociais e políticos que os povos de seu país conseguiram recuperar durante o processo pós franquista. Esta “nova” direita aparece menos vinculada à hierarquia eclesiástica e dotada de uma linguagem mais contemporânea e midiática, em correspondência com seu vínculo com uma classe empresarial mais cosmopolita, em que os operadores das empresas transnacionais – e especialmente as espanholas – têm importante presença.

Também contribui para este esforço o fato de que na América Latina (como na Espanha) as velhas formas de hegemonia política e governabilidade estão muito questionadas, como demonstra a crise dos velhos partidos e a emergência de governos progressistas. No interesse de remoçar os métodos e estilos políticos a direita espanhola assessora e auxilia a suas congêneres latino-americanas, ao extremo de animar a mudança de nome de vários partidos conservadores e democrata-cristãos da região que agora, na moda de seu irmão mais velho peninsular passaram a partidos “populares”.

A preocupação diante da perda de eficácia dos sistemas políticos vigentes, de seus partidos e das instituições parlamentares – bem como diante da superficialidade dos meios de comunicação com relação às novas demandas sociais -, levou a buscar novos enfoques. Na América Latina a “nova” direita agora apela a se apresentar como uma opção antipolítica. Isto é, fazer-se ver como crítica do sistema estabelecido e, por consequência, como uma força extra-sistêmica supostamente disposta a mudá-lo. Isso obriga a um esforço por se apresentar como a opção para o “esquecido” homem comum, de seus medos e aspirações diante de um sistema político insensível e imóvel, diante do qual ela se promove como a alternativa de “mudança”. Tentativa que a leva a maquilar-se com o perfil populista que José María Aznar recomenda a seus pupilos latino-americanos, além da mera substituição do nome de seus partidos.

A direita norte-americana na hora do chá

A incapacidade do presidente Obama para atual a altura de suas promessas e rápido regresso a várias políticas do governo anterior, constituem motivos adicionais para animar a direita “popular” norte-americana a lhe cobrar o preço pelo revês eleitoral. Para preparar sua ofensiva nas eleições parlamentares de meio período em 2010, foram realizados separadamente os encontros do Tea Party Movement – o ramo mais rústico do fundamentalismo conservador – o do chamado Conservadorismo Constitucional – a direita elegante -.

Ambas as vertentes coincidiram no propósito de desencadear “a mais implacável campanha de descrédito e desgaste contra um governo eleito de que se tenha memória na política norte-americana”[xi], um governo que desde a primeira hora acusaram de “socialista”. Esses encontros mostraram que os neoconservadores não se conformariam com recuperar em seguida o controle do Congresso e logo o da Casa Branca, mais sua decisão de eliminar definitivamente os contrapesos institucionais e legais que anteriormente lhes havia obstruído o caminho ao neofascismo nesse país; ou seja, a mudar todo o sistema.

Muito do linguajar desses dois encontros logo impregnaria o discurso das direitas espanhola e latino-americana.

Sob a regência do presidente da Fundação Heritage, o Conservadorismo Constitucional proclamou a Declaração de Mount Vernon, que recuperou o essencial do Projeto para um novo século americano, de fins doa anos 1990. Esta declaração retoma o clássico recurso de invocar, a sua maneira, os princípios da Declaração de Independência e da Constituição, e usá-los para argumentar que nas últimas décadas esses princípios foram minados e adulterados por sucessivos extravios radicais e multiculturais na política, universidades e cultura estadunidenses. Isto plasma seu repúdio às conquistas obtidas desde meados do século passado, e não apenas às iniciativas que a administração Obama pudesse acrescentar.

Em consequência, a Declaração alega que urge uma “mudança” que volte a por o pais no rumo daqueles princípios. E para isso prega um conservadorismo “constitucional”, dirigido a conseguir um governo de salvação nacional “que garanta estabilidade interna e nossa liderança global”. Entre esses princípios se destacam, claro, não só a liberdade e a iniciativa individuais, mas a irrestrita liberdade de empresa e as reformas econômicas com base nas relações de mercado, ademais da tradicional litania sobre a defesa da família, a comunidade (local) e a fé religiosa.

O que nos coloca diante de um claro apelo não apenas a empreender uma contrarreforma mas a realizar a “contrarrevolução preventiva”[xii], e não só em escala norte-americana mas global, como de depreende da argumentação em que esse apelo se apoia e do dever que este movimento lhe atribui e aos Estados Unidos bem como da natureza da potencia em cujo nome se proclama esse relançamento de um “destino manifesto”.

Os meios: retóricas por realidades

O perfil populista da “nova” direita é reforçada através de seu persistente interesse em explorar os meios e as técnicas de comunicação e publicidade massivas como principal instrumento político, no lugar das debilitadas formas tradicionais de gestão político-eleitoral. O modo de fazer reflete sua afeição pelo estilo norte-americano para aproveitar os instrumentos midiáticos. Na América Latina, esta direita se apoia especialmente nesse recurso e o assume com assessoria de especialistas norte-americanos e de latino-americanos formados nas escolas estadunidense de pesquisa e manejo da opinião pública.

Hoje vivemos em meia a demandas e tensões sociais más complexas e dinâmicas que as existentes quando se formaram os atuais sistemas de representação e manejo político. Os procedimentos e partidos tradicionais perderam a confiança pública, enquanto que os meios de comunicação mais poderosos superam a capacidade dos partidos para contatar a uma massa plural de grupos sociais que carecem de outras vias para perceber e interpretar a realidade. Grande parte da população tem limitações para conhecer os acontecimentos como partes de um processo que a envolve e afeta, e no lutar de ver o conjunto apenas avista as imagens fracionadas que os meios oferecem.

Nestas circunstâncias, o populismo de direita assume a indústria da comunicação como veículo de performance que – substituindo a velha propaganda – entroniza uma retórica destinada a suplantar a realidade, ao mesmo tempo em que alinha os meios de maior penetração como instrumentos de poder político.

As retóricas midiáticas são exploradas como um sucedâneo que acomoda a substitui a realidade efetiva.. Quem domina os meios está em vantagem para impor os temas onde se dirige a atenção de grande parte da sociedade e para qualificar aos atores políticos e os conteúdos em discussão. O predomínio midiático permite destruir ou construir reputações, tanto de ideias e de pessoas como de propostas, assim como ignorar ou falsear opções e fazer que outras prevaleçam. Também permite substituir os temas relevantes com variadas sacadas de trivialidades.

Com esse apoio essa direita pode converter as novas formas de vestir a opção reacionária em uma alternativa mais difundidas “popular’ que as colocadas pelas esquerdas; sobretudo quando estas últimas não souberam renovar e promover suas propostas através de métodos e linguagens mais frescos e persuasivos.

No modelo midiático que articula essa combinação de lugares comuns sedutores coincidem tanto os neocons como os Berlusconi. Sem considerar que esses meios de comunicação “normalmente” são de propriedade – ou estão sob controle – de interesses sociais, econômica e ideologicamente afins às elites que patrocinam as campanhas conservadoras, que por sua vez constituem um conglomerado capaz de alçar as iniciativas de direita por cima dos antigos partidos conservadores.

Com isso finalmente a relação se inverte: o “estado maior” do conglomerado midiático – o “partido” midiático – é quem fixa a agenda para as organizações políticas, revolvendo os termos entre o supremo manipulador informativo e o partido que deve dar a cara por ele.

Como em família

Assim, cabe reconhecer um conjunto de características que as diferentes modalidades locais da “nova” direita em diferentes graus compartilham. Sem esgotar a lista, nem supor que todas estas características sempre estarão presentes em cada caso particular, sobressaem nove atributos comuns.

Procura-se generalizar a atmosfera de descrédito dos atores e organizações políticas conhecidas e se extrapolam as acusações de real ou presumida corrupção, insensibilidade, banalidade ou incompetência dos políticos, de seus partidos e parlamentares e da própria política. Para isso se explora a existência real de não poucos casos de atores e organizações que defraudaram as expectativas populares, para absolutizar o repúdio aos atores políticos e parlamentares e entronizar a imagem de que todos devem ser varridos da cena. Com isso se descarta a existência de líderes honestos e propostas válidas, e da política como atividade confiável para solucionar os problemas sociais. Se avaliza o clima de “todos para a rua” e propiciar sua substituição por outro gênero de agentes, supostamente “apolíticos”, cuja legitimidade corre por conta dos meios mais influentes.
O campo clássico da política é invadido por um personagem da elite empresarial, na direção de seus associados e operadores. O argumento é a suposição de que o estilo de mando da gestão empresarial é mais eficaz e pode ser aplicada à gestão pública. Esta invasão se justifica com o argumento de que tornará menos deliberativa e mais expedita a administração do Estado, como se os processos e confrontos sociais – e as opções de solução política – pudessem ser decretada por um chefe de empresa, como as decisões gerenciais[xiii].
A pretensão e o discurso messiânicos, segundo os quais a perpetuação da ordem sociocultural e econômico “ocidental e cristão” – ou alguma noção equivalente – está ameaçado pelos excessos do legado liberal, a permissividade, a decadência do sistema político ou das ideias socialistas, o que torna necessário uma cruzada preventiva ou corretiva para restaurar os valores tradicionais, reinstaurar a ordem, a disciplina e as hierarquias sociais, reestabelecer a segurança pública e, particularmente, melhorar a rentabilidade do capital para atrair investimentos[xiv].
Não obstante a prioridade da elite econômica que lidera essa direita não necessariamente é controlar o poder político para governar conforme o interesse global de sua classe, mas tomar o poder público para impor seus interesses pessoais ou de grupo, inclusive aos demais setores da burguesia, e até despojá-los, como Ricardo Martinelli, no Panamá. Este propósito inclui apelar sistematicamente ao suborno, chantagem, à intimidação, as penalizações extrajudiciais e o escracho destinado a amedrontar a terceiros, aplicados de forma seletiva, discreta ou ostensível de acordo com as conveniências do momento em que são empregadas.
Adota-se uma retórica e atuação agressivas que se destacam no debate publico como um pacote de advertências e um estilo cesarista e messiânico, para justificar medidas de exceção e instalá-las como rotina de governo. Por exemplo, o reiterado apelo que fazia George W. Bush de citações bíblicas como argumento para impor políticas de exceção e cercear direitos cidadãos com o argumento de combater espantalhos externos como o terrorismo internacional, fantasmas domésticos como o narcotráfico e os imigrantes. Em definitiva o que se combate não é o mau que se menciona mas o espectro construído com o qual o tema se presta para golpear a terceiros, inclusive mais que aos próprios causantes ou atores reais do perigo que se diz querer reprimir[xv].
Para implementar esse cesarismo, destaca o afã obsessivo e imperante por controlar e subordinar os outros Órgãos do Estado e demais instâncias da gestão pública, e concentrar o poder em mãos do Executivo. Adota-se um modo vertical de mando que reduz e estreita os âmbitos de consulta e deliberação, que margina as organizações da sociedade civil e põem em crise a institucionalidade democrática, desconhece seus âmbitos de autonomia, anula a segurança jurídica e desvanece os limites entre o público e o privado. Para isso a “nova” direita – enquanto que extrema direita – não reconhece a legalidade por seus méritos sociais, mas como instrumento que se pode implantar para fins particulares, ou como obstáculo que vale eludir ou remover quando convenha.
Se entroniza uma forma populista de mandar que, com apoio midiático massivo se arroga a representação da massa dos cidadãos anônimos. Espalha entre estes as promessas de ocasião que permitam aparecer diante das câmaras atendendo seus anseios, sem calcular a prioridade e sustentabilidade de tais oferecimentos, nem sua pertinência com relação a uma estratégia de desenvolvimento sustentável. Cultivar midiaticamente a imagem populista leva a apropriar-se dos temas, modismos e personagens de maior rating e instrumentá-los. Como parte do charm exigido, a “nova” direita faz uma prolixa exibição de atitudes, formas de vestir, procedimentos e extravagâncias que a façam se vista como “antipolítica”, mascarando-se com as características de um gênero atípico de liderança – resumidamente anti-sistêmico ou outsider – contrário aos hábitos característicos das instituições e dirigentes tradicionais[xvi].
Redirecionar as insatisfações sociais para outros alvos, escolhidos para a ocasião, o que implica mobilizar uma permanente ofensiva midiática em torno a determinadas ideias-força, selecionadas conforme os objetivos do regime, a conjuntura política a escolher e as características – e vulnerabilidades – dos adversários que se pretende desqualificar. Para isso se seleciona e caracteriza o inimigo a combater (seja a esquerda, os sindicatos, os corruptos, os negro, os judeus, os imigrantes, a delinquência, o terrorismo ou alguma combinação disso tudo) e se lhes dedica a atenção midiática do caso, para justificar medidas punitivas que na prática também afetarão a maioria das demais pessoas. Para isso a “nova” direita elege, estimula e teledirige mal estares reais existente na população e os perfila contra os alvos escolhidos para que sobre eles se canalize o mal estar coletivo[xvii]. Como, ao mesmo tempo, constrói metodicamente a imagem de uma liderança e um propósito desejáveis, tais como “a mudança” , a segurança nas ruas ou o cárcere para os anteriores governantes. Quem domina os meios não necessita explicar a natureza da “mudança” como tampouco provar a culpabilidade dos acusados, posto que os linchamentos midiáticos o dispensa.
Com frequência, a todo o anterior se agrega um persistente afã por anunciar e inaugurar obras ou ações monumentais, não necessariamente imprescindíveis mas sempre de notável impacto visual e alto custo. Esse afã da “nova” direita pelo monumentalismo repete uma característica típica do fascismo, como formas históricas da extrema direita.
O clima e a ocasião oportunos

Qual o transfundo motivador da “nova” direita nas Américas de nossos dias?

A universalização da crise que emergiu em 2008 – que não é só mundial por sua extensão mas também porque tem presença funesta em múltiplos campos da realidade[xviii] – exacerba as incertezas e frustrações próprias da declinação do capitalismo, pelo menos a do capitalismo que conhecemos.

Agregada à falta ou insuficiência de projetos alternativos, a crise acelera sentimentos coletivos de incerteza, pela precariedade do trabalho, da segurança pessoal, da saúde a velhice e de confiança nas expectativas. Na Europa e Estados Unidos, a crise tenciona a relação com pessoas e coletividades de outras etnias e culturas e exacerba o racismo.

Em um ambiente de flutuações econômicas, políticas e socioculturais imprevisíveis, uma plebe despojada e ofendida pelos efeitos da recessão porém extraviada, desloca-se no amplo espectro político de tal maneira que num dia elege a um mandatário e noutro dia o rechaça[xix]. Isso também proporciona ao ambiente psicológico propício ao discurso messiânico, demagogicamente prometedor de “mudanças” e de certezas cosméticas que a “nova” direita oferece pela boca de líderes machos que dizem saber o que fazem e ter a coragem (ou falta de inibições) para realizar imediatamente. Como também uns adversários convenientemente selecionados para quem desviar as insatisfações acumuladas pela situação[xx].

Porém, o autentico motor do assunto está no objetivo de garantir a segurança e a rentabilidade do capital, não só diante da crise mas diante do perigo de que a inconformidade social se traduza em transbordamentos e rebeliões, seja como caos ou como revolução. Quer dizer, o objetivo de proteger o capital adiantando-se a reimplantar as condições de ordem e hierarquização sociais que falta, não só para salvaguardar o regime capitalista, mas também para tirar de seu caminho as restrições que no último séculos limitaram a taxa de lucros: as normas de seguridade social e de direitos sindicais, de direitos a investigar e informar, organizar-se e rebelar-se, etc.

Por conseguinte, detrás dos bastidores o que há é um programa neofascista, mesmo que chamado de outra maneira. A “nova” direita não é conservadora mas extrema direita, tanto por seu projeto econômico como por sua fundamentação ideológica e política. O diferente está na época e no mode de se apresentar, agora equipada com outros instrumentos, os de um fascismo civil vestidos em formas más atraentes, para um público que os meios mantêm mais fragmentado e desmemoriado.

América Latina: uma contenda sobre terreno instável

Em grande parte da América Latina os movimentos e partidos progressistas mantêm a iniciativa política, so que agora se encontram diante dessa ampla contraofensiva de uma direita remoçada. Encontramo-nos diante de uma extensa pluralidade social que está em disputa e – como corresponde em tempos de transição – em que há uma diversidade de opções abertas. Por um lado, essa “nova” direita tende a prevalecer sobre as formações conservadoras tradicionais, mas sem descarta-las. Por outro lado, o panorama das esquerdas é mais variado, como é natural a sua natureza questionadora e criativa, que explora e propõem diversidade de caminhos.

Em nossa América os problemas desatados tanto pelas políticas neoliberais como por seu fracasso se superpõem com os feitos do anterior abandono dos projetos desenvolvimentistas, revolucionários e nacionalistas dos anos 1960 e 1970. E a insuficiência das novas propostas com que enfrentar os tempos que correm. A crise social está muito mais avançada que o desenvolvimento de novas propostas político-ideológicas.

Depois de tantos anos de insatisfações as pessoas estão fartas, sem que isso signifique que já estão conscientes de suas possíveis opções históricas. Assim sendo, esse difuso e multiforme mal estar tem contribuído a fortalecer o apoio eleitoral às ofertas progressistas, porem não necessariamente está preparado para aceitar alternativas mais radicais. A dor e a irrigação pelas consequências da desigualdade extrema, a precariedade do emprego e a miséria convivem com o descrédito dos partidos e sistemas políticos conhecidos e, ao mesmo tempo, com uma enorme sensação de temor que resulta da falta de certezas e a frustração de expectativas.

É nesse contexto que há que se medir força com uma direita remoçada que entra a disputar no campo político. E que vem com os recursos que já sabemos: predomínio midiático, boa orquestração continental e umas consignas populistas que têm as vantagens de uma brutal simplificação dos problemas e expectativas populares que facilita sua propagação[xxi], ao deslizá-las sobre o limo dos estenótipos do chamado sentido comum.

Em períodos assim o solo político é movediço: abundam os realinhamentos – táticos, programáticos e ideológicos – das direções dos partidos políticos e organizações, como também dos setores sociais que eles pretendem representar. Isto é um espaço propício para qualquer gênero de aventureiros, como antes foi Fujimori e depois Álvaro Uribe, Maurício Macri ou Otto Guevara. Quer dizer, da crise geral não só se pode sir pela esquerda, como também pela direita, como em seu tempo ocorreu com o fascismo depois do impacto da Grande Depressão.

Não obstante, isto não nega mas sim recorda que do lado das forças progressistas subsiste, como a parte visível do iceberg, uma enorme incubadora social espontaneamente orientada à esquerda. Está no seio da própria população. Sem bem seja certo que a crise – econômica, sociopolítica e ideológico-cultural – propicia confusões e recomposições, isso não conduz a um suposto “retorno à direita” tal como hoje predizem certos “analistas”[xxii]. Ao contrário, em nenhum país latino-americano existe um movimento de massas que apoie projetos contrarrevolucionários.

Embora aqui ou acolá a esquerda política ainda não conseguiu renovar e unir suas propostas, a vida sim impulsiona a uma esquerda social que se expande sob a superfície, mesmo não estando ainda conceitual e organizativamente desenvolvida. Se no lugar de perguntas nas pesquisas sobre as siglas dos partidos se perguntasse sobre os problemas diários, constatar-se-ia que é falto que nossos povos derivam à direita. Por isso mesmo as campanhas da “nova” direita se mostram tão necessitadas de remedar os discursos progressistas[xxiii].

O que ocorreu no Chile nas eleições de 2009 não demonstra outra coisa. A Concertación por la Democracia, que governo esse país durante 20 anos, não foi um exemplo de reativação que as esquerdas latino-americanas experimentaram a partir de finais dos anos 1990 em rechaço às teses e sequelas do neoliberalismo. Ao contrário. A Concertación foi produto de uma etapa anterior, de transição pactuada da ditadura à democracia neoliberal (que ocorreu paralelamente à claudicação da socialdemocracia diante do neoliberalismo). Sobrevivência do modelo pinochetista de Constituição, institucionalidade pública, sistema eleitoral e economia de mercado assim o comprova, ao mesmo tempo que representa o fantasma de uma transição democrática que ficou sem terminar.

A articulação desta ofensiva

Ainda que a tradição das esquerdas, o internacionalismo e a solidariedade ocupem um lugar relevante, na atualidade a maior parte de suas organizações latino-americanas consome seus escassos recursos em tarefas nacionais. Nos últimos lustros, depois da ofensiva neoconservadora dos anos 1990, todas não vão além do plano declaratório. As organizações e foros internacionais das esquerdas dão mais oportunidades periódicos para compartilhar reflexões, do que oportunidades para organizar cooperações de maior magnitude.

Na direita se instrumenta um internacionalismo mais prático. Hoje em dia a sustentação de cenários e atividades de instrução e colaboração política internacional é muito mais constante e efetiva para suas organizações. Para isto há um polo articulador: na América Latina todos os partidos direitistas de alguma importância têm vinculações com o Partido Republicano e com fundações e universidades conservadoras dos Estados Unidos, da mesma forma que o Partido Popular espanhol e as fundações que lhe são próximas[xxiv].

Os quadros jovens dos partidos de direita frequentam cursos patrocinados por fundações e universidades conservadoras, particularmente na área relacionada com o marketing político com ênfase na pesquisa e manejo da opinião pública e as técnicas para dirigir as comunicações sociais. Miami alberga um grande conglomerado de instituições e cursos de formação nessas especialidades par os novos quadros da direita latino-americana.

Além disso, é claro que essas jovens promessas político-empresariais estudam nas universidades estadunidenses. Uma notável proporção dos dirigentes das direitas latino-americanas são ex condiscípulos de formação, cursos e pós graduação nessas instituições.

Proliferam igualmente os eventos de capacitação político-ideológica que propiciam encontros das jovens promessas da direita com seus veteranos referenciais europeus, latino-americanos e estadunidenses. José Maria Aznar, por exemplo, sem que seja sequer um intelectual de médio brilho, passa o tempo voando, no sentido literal da palavra.

Por sua vez os mais importantes não só assistem as mesmas conferências nos Estados Unidos ou as proferidas por gurúes estadunidenses em cidades latino-americanas e, como se não bastasse, não poucas vezes em coincidências com reuniões da juntas diretoras e reuniões de acionistas das empresas. Empresas que a cada dia operam em maior número de países da região, e fundem seus respectivos interesses sob o guarda-chuva das transnacionais. Em consequência, não surpreende que pensem a nossa América com os mesmos parâmetros, assumam projetos políticos similares e se ponham de acordo para harmonizar suas atividades políticas.

As esquerdas latino-americanas não dispõem de nada parecido. Se bem seus encontros oferecem oportunidade a meritórios esforços de reflexão, não cobrem esse ambicioso espectro de homologação estratégica.

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