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domingo, 12 de dezembro de 2010

MEMÓRIA VIVA

A Verdade Desconhecida
Parte III

Era tudo previsível quando recebi da mão do poeta Pedro Maciel e li a coletânea dos poemas mineiros que deveria ser publicada no jornal, isso foi feito depois de muita insistência dos poetas para serem publicados, estavam se sentindo rejeitados, já que o periódico estava se tornando a Ponta de Lança da arte de vanguarda que se fazia em Minas. Todos queriam estar nele, era o único órgão informativo do estado que professava a liberdade de expressão nos seus editoriais.
Não tínhamos compromissos com nada a não ser com a arte do bem fazer.
Eu sabia de cara, quando li, que o poema do Sebastião era uma bomba de efeito retardado, um teste de caráter, ele não acreditava que eu fosse publicá-lo e assim poderia dizer que sofreu censura do jornal, mas o que ele não sabia é que a publicação do seu poema evidenciava uma situação de conflito que já existia quando fui convidado a assumir aquela diretoria, ato este que não agradou a elite mineira que havia se apossado, na figura de Ângela Gutierrez, da Secretaria de Cultura do Estado.
Eu estava chegando do Festival de Cinema de Berlim quando fui convidado pelo governador. Pensei que seria a época propícia para me lançar na política, ali poderia dar os primeiros passos, me fazer conhecido, preparar a minha candidatura a deputado ... Não seria uma madame empreiteira, muito menos um governador analfabeto que interromperia a seta libertária do Jornal Ponta de Lança. Eles teriam de me colocar na rua e fechar o jornal. Teria assim o apoio dos artistas, criaria o debate e tentaria uni-los em torno do meu nome. Depois de transformar aquele cemitério das artes, com a colaboração das melhores cabeças da minha relação, em um centro de cultura viva, onde se respirava o ar puro da livre criatividade, não deixaria de lado a minha equipe, as minhas convicções, por um projeto pessoal e político.

O pau ia quebrar enquanto muitos queriam ficar no quartel da saúde. Não abandonaria o jornal, seria a nossa bandeira no campo de batalha. Aos poucos fui percebendo que estaria sozinho nesta guerra.Ameaças bisonhas e rancorosas eu sofri dos eternos comensais da burocracia que queriam me ver longe do pequeno poder que eu exercia... Entrei apimentado no gabinete do Dalton e as palavras foram jorrando da minha boca: - Quando muitos tentam me sabotar unindo-se contra o jornal Ponta de Lança, contra a liberdade no espaço de criação que implantei aqui na Fundação, preparo-me para o conflito que já se avizinha. Sempre achei que é chegada a hora de transformar o velho no novo introduzindo o visto pelo não visto nesta polêmica que se inicia. Estão nos forçando a uma censura velada, escondida, e vocês querem sumir com toda essa edição histórica? Pondo fim no jornal, vocês vão queimar mais uma vez o professor Darcy Ribeiro, que está nele presente com alguns fragmentos do seu próximo livro. É um desrespeito com todos que neles escreveram e trabalharam, vocês vão queimar o dinheiro do contribuinte só para satisfazer uma falsa moral palaciana? Estamos dando o primeiro passo no lamaçal da política. Não vamos aceitar o jogo dessa gente! São oportunistas de plantão que na calada da noite procuram uma maneira de exterminar a luz das idéias que tanto lhes incomodam... Assumo todos os riscos em nome da minha posição de independência, sem fugir das minhas responsabilidades... Não se apavorem, vocês não serão os enforcados, eu criei o jornal Ponta de Lança em homenagem a Oswald de Andrade e a nossa liberdade, não posso trair nem um, nem outro. O jornal será distribuído e nada vocês podem fazer para impedir e vocês continuarão limpos com o governo...ninguém vai perder o seu empreguinho! Dalton, estatelado, boquiaberto, ouvia a tudo no mais lúgubre silêncio e assim que terminei, ele olhou primeiro para seu amigo Paulo e depois para seu assessor Luiz Carlos e sem dizer uma palavra levantou o ombro, esfregou as mãos e sentou-se na poltrona do gabinete onde reza o silêncio, a prudência e não o saber.
O jornal não conseguiu a distribuição de antes, mas foi disputado no câmbio negro a tapas. Mais de 1000 jornais que ficaram na minha sala sumiram tal qual pão quente, cada um que chegava na sala carregava um fardo, a edição evaporou-se. Foi um sucesso. O que não devia ter sido lido, foi amplamente divulgado por toda uma cidade sedenta de culpados. Passou-se uma semana e os jornais só falavam disso, eu já cheio daquelas lorotas de salão sobre as cabeças cortadas, aporrinhado pelas demissões dos meus amigos que se fazia a pedidos daquela madame coberta de ouro e colecionadora da memória alheia, resolvi não ir mais a Fundação. Fui para o Rio de Janeiro para terminar o meu filme sobre o maestro Camargo Guarnieri, que havia feito quando o maestro Airton Escobar o convidou para um concerto comemorativo dos seus 80 anos na Fundação.
Nesta manha de quarta-feira abro o caderno de cultura do jornal Estado de Minas e como sempre não havia nada de novo, mas folheando o resto do jornal, vi estampado na manchete da página 5 do primeiro caderno, os primeiros acordes do grotesco absurdo que se seguiu...
Estou voltando novamente para o Rio de Janeiro e faço como fez o poeta Carlos Drumond com Itabira, dependuro o seu retrato na parede e vejo a praia de Copacabana... Mas como dói.

O POEMA DO SEBASTIÃO NUNES

Deitado de costas o presidente ronca.
Deitada de bruços a senadora sua.

Ajoelhado no tapete o ministro chupa.
De pernas abertas a deputada goza.

O líder do governo propõe uma suruba.
Em regime de urgência o plenário aprova.

Pelo buraco da fechadura o secretário.
Enrolado nas cortinas o mordomo.

A afilhada do prefeito sobe a rampa.

Poetas que participaram da página maldita da edição Ponta de Lança de maio de 1988.
Sebastião Nunes; Márcio Almeida; Laís Corrêa de Araujo; Pedro Maciel; José Américo; Afonso Ávila e Carlos Ávila.

Jornal Ponta de Lança – artistas que participaram da sua curta existência: J.E.Ferola; Leonardo Fróes; Eid Ribeiro; Helvécio Ratton; Sérgio Lara; Mario Drumond; Wilson Simão; Nise da Silveira; Teodoro Rennó; Éolo Maia; Tonico Mercador; Adão Ventura; Carlos Herculano Lopes; Uilcon Pereira; Oscar Nieneyer; Jose Paulo Paes; Maria do Carmo Arantes; Marcus lontra Costa; Moacyr Laterza; Fernando Peixoto; Nivaldo Ornelas; Rogério Sganzerla; Silvio Potestá; Floriano Martins; Tomie Ohtake; Antonio Beneti; Denise Stoklos; Marcelo Dolabela; Adélia Prado; Darcy Ribeiro; Augusto Boal; Ciro Barroso; Ricardo Bada; Paulo Augusto de Lima; Carlos Scliar.
Corpo editorial: Pedro Maciel; Osvaldo Medeiros; Jose Sette; Fernando Tavares; Daniel de Oliveira.

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