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domingo, 20 de dezembro de 2009

Último Libelo

Não queria mais falar sobre o complexo e misterioso sistema que movimenta o cinema brasileiro, mas, com as últimas notícias recebidas, não posso me furtar a algumas verdades e tenho que escrever, talvez, um último libelo sobre a ignorância dos organizadores de mostras e festivais de cinema por todo o país e também no exterior.

O cinema, para mim, mais que a literatura, é uma leitura sofisticada do saber humano aos olhos de um observador atento. Um observador que saiba ver e tenha visões.

Alguns observadores são distintos: um intelectual bem informado; um bom artista; um ser inteligente, alguns pretensiosos, destrutivos; um crítico pernóstico, invejoso; um taumaturgo apaixonado pela magia do audiovisual; um déspota disposto a por fogo em Roma; um anarquista desordeiro; um músico sensível e outro ordinário; um pintor de quadros e outro de paredes; um burocrata arrogante; um profissional libertino; um liberal punheteiro; prostitutas e madames, autores e estrelas.

Para cada espécie de observador existe um texto, um filme específico, que na certa eles vão se identificar e gostar, mas a grande maioria dos que observam a grande tela, são diletantes, pessoas que entram na sala de cinema levada pela mídia, hoje massacrante, das grandes empresas de comunicação.

Essas pessoas, da classe média, que não passam de 12 milhões de espectadores, em um país de 300 milhões de habitantes, é o público alvo para os grandes sucessos dos filmes nacionais e estrangeiros. São eles que geram o aumento da fortuna daqueles privilegiados que já estão muito ricos, produtores e exibidores de cinema, pois fazem e continuam produzindo no Brasil os seus filmes comerciais com os milhões necessários da renúncia fiscal. Pergunto: por que não se cria um cine banco de investimento para os filmes que pretendem conquistar o grande público?

Digo isso para mostrar que os festivais de cinema no Brasil, também produzidos com valores superiores a um milhão de reais e incentivados com dinheiro da renúncia fiscal, deveriam continuar a existir, mas que fossem precisamente direcionando o observador atento as novidades do mundo cinematográfico, para o novo, em termos de estética e linguagem, que o cinema contemporâneo e de invenção, feito no país, está criando, geralmente filmes de baixíssimo orçamento, novos e experimentais e não, unicamente, se direcionar para os filmes que têm todas as mídias a sua disposição, com lançamento simultâneo em salas por todo Brasil. Para que eles precisam dos festivais?

Não estamos falando que se devem eliminar as grandes produções de serem exibidas nos grandes e pequenos festivais, são mais de cem no Brasil, mas sim, que cada festival tenha espaço de divulgação para um cinema inventivo, visionário, poético, diferente daquilo que o seu público já está acostumado. Na questão do filme Amaxon, meu único interesse era de exibi-lo, de graça, para um público seleto que freqüenta os festivais – nada mais.

Nunca, nenhuma das três cidades citadas, poderia recusar uma única exibição deste filme, que é, no mínimo, uma contribuição nova ao famigerado universo das artes cinematográficas brasileira, principalmente, se ele foi realizado por um diretor – produtor – fotógrafo – roteirista – editor - experiente e consagrado, por mais de vinte filmes de longa, média e curta metragem, alguns deles até premiados. Alguma coisa anda errado com as cabeças privilegiadas deste país.

Faz muitos anos que não mandava meus filmes para nenhum festival de cinema. Eu já sabia quais eram os critérios adotados por todos eles – a exibição e seleção única dos filmes que possam interessar ao grande público, excluindo todos os outros que possam criar polêmicas desnecessárias a indústria do entretenimento.

Por insistência da família, preocupada com o meu isolamento, pedi ao jovem fotógrafo do meu filme que remetesse um DVD para os últimos três festivais que no final deste ano apresentavam-se abertos a novas inscrições. Pareceu-me interessante a experiência – Cuba – Natal – Tiradentes, e me preparei para o pior – pois, fico arrasado quando se recusa o óbvio irrecusável.

É quase um acinte: o filme foi sumariamente recusado, como eu previa, pelos três festivais.

Recusado três vezes pela ótica mercantilista, retrógada, mesquinha, insensível, colonizada, cega e estúpida, destes observadores desatentos de porta de festival, principalmente os nacionais, os de Natal e de Tiradentes.

Pensando bem, podes crer que eles estão certos em recusar o meu filme – polêmico, anarquista, novo, inteligente, poético, inventivo – diferente de tudo que eles tenham assistido na suas insignificantes vidas. Para um amador é difícil aceitá-lo. Eu é que estou errado em ter mandado a suas considerações a minha pequena obra-prima. Mas a recusa de Cuba, em mim, foi a que causou o maior espanto. Eles podiam até não gostar do filme, mas, talvez, por não entenderem ou se sentirem agredidos com o enorme caralho que avança na mão de uma donzela angelical, numa dança erótica, em direção ao assustado burguês. Ou, talvez chocados com a poesia louca, abstrata e inventiva da criação? Mesmo assim não tinham o direito de censurar um filme que é libertário, mas também de vanguarda e posso até dizer comunista, pois trata-se de um texto poético sobre o massacre capitalista contra a liberdade de criação de uma escritora, de uma artista, encurralada pela vida.

Espero que a cópia em DVD deste filme caia em boas mãos, nos bastidores da burocracia e seja pirateado, para que muitas pessoas, independente da censura dos festivais, possam assisti-lo. Pois na certa não ficarão impunes ao que ele tem para dizer.

Quanto a vocês, organizadores de festivais estatais do cinema brasileiro, que nunca fizeram cinema, mas que vivem e muito bem dele e que estão sempre acompanhados por jovens burocratas da arte, vampiros oriundos das universidades dos picaretas, vips que se espalham pelos brasis afora, viajando como consultores, sensores, selecionadores, jurados e professores de oficina de cinema, que vivem como nômades a custa do erário e que são muitas vezes também financiados por fundações hostis aos interesses nacionais, é preciso que eles aprendam a respeitar os seus artistas mais velhos, que ainda permanecem rebeldes e iconoclastas, mesmo sem compreendê-los, pois eles representam o seu futuro.

Para não dizerem que falei em causa própria, e que se o filme não entrou é porque não merecia, eu gostaria de repetir aqui o texto completo da primeira crítica que obtive do filme:

AMAXON (Primeira Crítica)

“Uma coisa são sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela. ”CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE “AMAXON, UMA ODISSÉIA NA CRIAÇÃO PENSADA “Em memória de Jairo FerreiraTalvez tenhamos nos transformado nessa máquina horripilante de negação dos sonhos! E no que trituraram todas as singularidades, fomos transformados num exército de múmias, de burocratas, de deslumbrados e idiotas. Uma nova encenação do que seja, não pode ser mais uma condenação a nociva prostituição, achatada à TV. Deve-se ousar na desarmonia, do desnudamento da carne e do abandono na subjetividade. Ora, se o cinemão se realiza sem subjetividade criativa alguma, a nós deve interessar fundamentalmente uma nova linguagem gerada na teatralização de transcendências. Acrescente-se a isso que o país vive do seu esvaziamento a 509 anos, e mais programadamente a 55 anos. Ou seja, desde o golpe militar de 1964. Ora, como purificar artesanalmente esta quantidade infindável de urina e excremento?“AMAXON” é um esforço poético-radical, para nos fazer pensar na complexidade do processo criativo. Ora, de que nos adianta fazer trabalhos de encomenda? Cinema virou filminho publicitário? O que muda nessa falência global de desencontros? O mundo hoje visto pela TV, é só o lixo como mercadoria de quinta, obviamente espetacularizado. Putas e canastrões são vendidos como profundos e sensíveis. Mas a quê? A “nota”? José Sette vai no sentido contrário de tudo e todos, elaborando com o seu terceiro longa-metragem, uma projeção de palavras a serem pensadas, fazendo um delicado filme que dá representabilidade a um pensamento sombrio expressivo, nessa sua transfiguração da normalidade do processo de criação. Sette vai aos extremos, numa escalada implacável rumo à uma poesia ainda que delicada, difícil para o grande público, todo condicionado a Hollywood e a TV. “AMAXON” é o hospital-Brasil, em que todos somos condenados. A personagem da escritora reage ao internamento e tratamento, e se debate com uma coragem incrível. A linguagem do filme atravessa uma infinidade de vísceras, infernos e imaginações. A carne-viva exposta, torna-se uma espécie de gozo-trágico. Um filme-dor que nos remete ao teatro de Artaud. Incomodo aqui. Indizível ali. Longe e próximo de todos nós que sobrevivemos ao apocalipse de 1964. Não poderia ser um filme diferente. Foi difícil não apodrecer junto, e continuar sonhando com um Brasil mais justo, humano e para todos. Ainda assim, salvaram-se os poetas e artistas. Vera Barreto como escritora, é uma espécie de vísceras expostas; sendo recolhidas para continuar a ser demasiadamente humana.Pouco importa que não seja um filme fácil, ou para muito. É cinema! Uma cinema que emerge de toda essa putrefação de 1964 à 2009. Sette trabalha com precisão a sua não-linguagem fácil, pois lhe interessa mais um fluxo poético de contradições gramaticais voltadas para o pensamento-profundo e o cinema autoral. É o velho-jovem cineasta independente que agiganta sua escritora na solidão e na coragem de não ser comum. Que entre só sofrer e morrer, prefere escrever enfrentando os seus muito demônios. Que lê, bebe, fuma... se debatendo entre contradições geradas na TV, por um jornalista que como todos, espetaculariza o caos ameaçando com a onda gigantesca, definitiva. Onda que até é mostrada, mas que não chega pois é apenas uma manipulação da comunicação, do dinheiro e da morte que sempre nos acompanha.E se a representação do mundo e da política se tornou imbecil, compete a arte transformar todo esse excremento, numa espécie de teatralização de uma “escrita-física” que Vera Barreto faz muito bem, num trabalho raro e exemplar, onde se realiza em sua intimidade frente a insatisfação da obrigação: a do livro de encomenda que precisa ser escrito. E uma vez mais, o conceito de subordinação ao dinheiro como a arte terapia dos tantos e tantos eletrochoques de nossas vidas. É onde os porco se acham mais fortes.Entre livros e copos de vinho, em sua solidão pensa na grande onda da sua insatisfação. A onda que está fora, está dentro e que desencadeia contradições levando-a nua aos seus próprios limites grandiosos de exposição poética. É uma escritora, mas é também atriz e mulher. E que ao entregar-se as suas pulsões transforma-se em crítica de si mesma, ainda que aguçando o seu desprezo pela “lógica” imperceptível da mercadoria e do consumo. O sistema sabe bem o que faz, e se não tivermos um mínimo de sonhos, seremos transformados em imagens despotencializadas e vazias. A TV não faz isso todos os dias?Sette não faz um cinema-coisa, a logo ser esquecido ou descartado. Nesse ponto aproxima-se de Tonacci, Sergio Santeiro, Eliseu Visconti, Jorge Mourão e da nova geração. E se “o mundo é apenas engano”, como afirmava François Villon, “AMAXON” o subverte desprezando o patamar qualitativo do sucesso fácil. Arbitrário, como postura, investe no estilo insurrecional como ruptura e negação do obscurantismo avançado da domesticada política cultural do governo, seja lá de que Partido for. E não são todos iguais lutando apenas pelo poder? E se a chantagem e o obscurantismo servem ao poder, de nada serve um cinema essencial a representabilidade de uma vanguarda que não conseguiram matar. E que hoje convence muito mais que no passado.É preciso frisar a importância de um filme feito do nada e que não se reduz a razão que tudo tenta explicar. Nesse sentido reintroduz no cinema brasileiro, complexas subjetivações necessárias ao crescimento de um público menos contaminado por Partidos, por prostíbulos e pela TV, pois transgride permanentemente a ordem como instituição sagrada. A Sette e sua equipe interessa abandonar o manicômio das disciplinas do certo e do errado, sem sacrificar mais nada. Ao seu cinema interessa as diferenças e os deslocamentos possíveis, como acesso a um permanente ultrapassar-se. Sua trajetória é impar no nosso cinema. É um experimentador muito além do buraco negro em que transformaram o cinema brasileiro, e que fez um novo filme de uma lucidez atrozmente insuportável.Sette torna profundo e feminino o discurso da personagem da escritora, e com suas imagens poderosas desfaz o território pouco ou nada significativo da TV, pois faz Cinema! Dá significação a um novo olhar. Enfim, produz intensidades poéticas. “AMAXON” são pedaços restituídos a um corpo ainda que amordaçado pelo tempo que passa para todos, poderoso e uma vez mais agigantado, pois se assume, indo além da representação e da escrita. E a vida que não deveria ser pobre e empobrecida como é, torna-se gozo por parte de todos. Filme infinito ao reinventar a criação simbólica imperfeita. Ainda bem.LUIZ ROSEMBERG FILHORJ, 2009

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