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sábado, 23 de abril de 2016

ARTE_PLÁSTICA


MEMÓRIAS DAS SOMBRAS
Paulo Laender

(Sobre Farnese de Andrade em 2002)

A primorosa edição do livro Farnese de Andrade, com texto do crítico Rodrigo Naves e a inclusão do DVD Farnese, registro cinematográfico realizado sobre o artista e sua obra por Olívio Tavares de Araujo em 1971, vem fazer justiça e resgatar a obra de um dos mais instigantes, criativos e emblemáticos artistas brasileiros.Morto há seis anos, em julho de 1996, esse aluno de Guignard, contemporâneo de Maria Helena Andrés, Marília Giannetti, Nelly Frade, Chanina e Amilcar de Castro, Yara Tupynambá, entre tantos daquela profícua leva da Escola do Parque Municipal, em Belo Horizonte, não alcançou em vida a dimensão do reconhecimento devido.

Avesso a todo tipo de mundanismo e ao convívio social mais amplo que o círculo das amizades próximas, mergulhado nas intrincâncias do seu universo pessoal, Farnese não cultivou, sequer se preocupou com questões de mercado, assuntos de marketing ou mídia.
Na prioridade da sua criação, na necessidade da expressão dos seus anseios, e talvez mesmo pelo seu recato e natureza reclusa, esses assuntos não lhe significaram importância.

Nascido em Araguari em 1926, oriundo de uma família de dez filhos, típica do interior de Minas ( o pai tabelião e a mãe, que, além dos afazeres domésticos, cultivava o ofício da confecção de flores para grinaldas e buquês ), Farnese teve uma infância marcada pelo episódio da morte de dois irmãos mais velhos, que não chegou a conhecer, vitimados por uma enchente.

Sobre ele e a família pesava essa perda, essa tragédia particular. A memória desse universo familiar, a solidão e o sofrimento pessoal agravado por uma tuberculose contraída por volta de 1944, quando mudara para Belo Horizonte, e cuja cura definitiva só alcançaria em 1949, já então residindo no Rio de Janeiro, iriam marcar definitivamente sua vida e obra, principalmente seus objetos e esculturas, testemunhas reveladoras das lembranças e tormentos recônditos.

Farnese teve sua formação inicial em desenho com Guignard, em Belo Horizonte, a partir de 1945. No período que se segue, e após a cura da sua doença, até 1960 trabalha no Rio de Janeiro, como ilustrador de inúmeros jornais e revistas.
Realiza suas primeiras exposições de desenhos e participa de salões de arte. Em 1961, inicia seu aprendizado de gravura em metal com Johnny Friedlander e Rossini Peres, no ateliê do MAM do Rio de Janeiro.

Quando o conheci, por volta de 1963, habitava uma quitinete em Botafogo, na rua da Passagem , dividindo ase pequeno espaço com sua prensa de gravura e as bacias de ácido. Ainda trabalhava durante o dia, se não me engano nos correios, e passava as noites imerso na magia desse pequeno ateliê, gravando e imprimindo suas chapas. É dessa época a série das “gravuras negras”, gravações em relevo profundo recobertas por uma aguatinta  geral que lhes conferia, na negritude da impressão final, mistério e preciosidade. Essa série vibrante, reveladora já da sombra que sua alma artística expressaria cada vez com mais contundência, me impressionou tão fortemente então que confesso, até hoje, ao lidar com a gravura em metal, volta e meia tais referências brotam das minhas chapas, como que identificação e parentesco dessa natureza barroca inevitável que paira sobre os mineiros.

A essa época também Farnese já coletava seus primeiros “lixos”, objetos que amontoava em um canto desse pequeno mundo onde habitava.
A praia de Botafogo, após o aterro, reconstruída com a areia revolvida e lançada pelas dragas na nova orla, lhe oferecia, a cada maré, elementos e achados com os quais ia formando “uma memória encontrada”. Passaria, a partir de então, a compor seus primeiros objetos.

Lembro-me dele contando, com humor, que durante suas caminhadas de garimpo pela praia , com uma sacola na qual depositava seus achados, a turma do futebol, que ali se reunia, o apelidara, carinhosamente de “ O Cata-lixo Barbudo”.

Pouco tempo depois, em 1965, voltei para Belo Horizonte para cursar a Escola de Arquitetura, mas ainda mantive encontros esporádicos com Farnese, quando das minhas idas ao Rio de Janeiro ou mesmo em exposições que por lá realizei. Trocamos alguns trabalhos e posso afirmar, com saudosa lembrança, que mantivemos admiração e respeito mútuos em todos os nossos encontros recheados da instigante conversa, diria quase fantástica, daquele mago.
Em 1996 Farnese volta pela última vez a Belo Horizonte para uma exposição na Pace Arte Galeria, vindo a morrer pouco tempo depois, a 18 de julho daquele ano, de edema pulmonar.

Contados de forma resumida e entrecortada, na urgência desse pequeno texto, esses episódios não espelham a extensão da vidas de um artista como Farnese, a grandiosidade da sua existência. Se o faço é apenas com o intuito de sinalizar algumas datas que localizaram nossos encontros ou momentos, a meu ver, significativos da sua vida artística e, por tal desrespeito, peço perdão. Poucos artistas brasileiros foram capazes de efetuar o “mergulho” com a profundidade com que ele o fez. Esse retorno na memória aos acontecimentos marcantes de uma infância perdida em Araguari, o estigma da doença, a consciência da presença da morte trazem a marca sofrida dos grandes artistas que, de volta a sua”Macondo”, organizam e nos revelam os arcanos comuns e universais que compõem a tragédia humana.
Farnese era o artista da composição e associação dos objetos encontrados na areia da praia de Botafogo,ou no lixo de Barcelona, cidade que habitou durante algum tempo e da qual dizia possuir o lixo mais precioso do mundo, das fotos antigas herdada do tio fotógrafo, das gamelas e das peças adquiridas em antiquários montou sua obra.

Essa forma de expressão que ele, na sua releitura renovou e consolidou na arte brasileira.
O objeto veio se fixar, definitivamente, como um segmento autônomo e próprio da nossa criação contemporânea. Próxima, pela sua metáfora e resíduo memorial, do sentimento dos mineiros foi, entre artistas , da minha e subsequente geração, que o objeto se estabeleceu como meio característico e importante.
Somada à obra de Celso Renato de Lima, outro mineiro que soube lidar com os achados, se bem que  numa outra temática, Farnese veio, com seu trabalho carregado de história e significado, instigar e referenciar artistas como Marcio Sampaio, Fernando Lucchesi, Marcos Coelho Benjamim, José Bento, Léo Maciel, entre muitos aqui em Minas.

A emoção entre montanhas se faz tridimensional, ouso afirmar, e, dentro da nossa experiência com o lidar escultórico, sempre nos detivemos em duas possibilidades ou níveis da realização volumétrica: o objeto e a escultura. Ao pensar a origem e o significado dessas manifestações,ambas frequentemente encontráveis num mesmo realizador, chegamos à conclusão de ser, cada uma delas, reflexo de um universo determinado: o objeto, pela sua característica íntima, subjetiva, misteriosa, sacralizada em caixas, busca o inconsciente de quem o faz. Realiza-se e se suporta no mergulho interior, através da memória, atravessando os véus que delimitam os diferentes estágios desse retorno ao cerne. É processo doloroso, vital para o autoconhecimento e base para a história pessoal do artista, revelador de demônios, sofrimento e, às vezes, nem sempre, consegue atingir o “lótus”, a luz por trás de todos os véus.
 Através das obras assim surgidas o artista estabelece linguagens, ponte, parentescos, identifica falanges afins que lhe possibilitarão melhor localizar-se no mundo.

A escultura, por sua vez, coloca-se em nível externo, abrangente, universal. Busca formas que possibilitem uma identidade coletiva. O escultor produz ícones, arquétipos cuja qualidade mítica poderá inserí-los no inconsciente coletivo, transformando-os em símbolos universais. Sua natureza, portanto, menos pessoal ou subjetiva, espelha síntese, busca a identificação ampla e imediata, o espaço, a grande escala, por vezes o monumental.

Farnese com sua compulsão coletora e sua ordenação de conjuntos, elaborou uma farta e requintada linguagem para a sua história através do objeto.
Sua obra, executada com primor de acabamento, exuberância técnica, virtuosismo e limpeza, consolidou essa vertente induzindo, influenciando, sugerindo a tantos artista e àqueles que o compreenderam e admiram retornar às suas origens, contar suas histórias, revistar seus quintais de infância, encontrar seus demônios, seus santos, suas dores, suas alegrias seu sagrado, seu profano e, na dualidade dessas emoções, adensar, aprofundar, enriquecer, de significados sua própria arte ou existência.

“Não tenham medo de ir muito longe…Para ser atual não precisam macaquear as modas espúrias:escutem as vozes de nossa tradição, se abeberem nas raízes”, disse Guimarães Rosa e tanto o fez Farnese em obra que, infeliz e tardiamente, o mercado, colecionadores e público começam a avaliar e compreender, na sua extensão devida, mas que, nem por isso, perdeu qualquer força, pelo contrário, cresce a cada dia como a imagem da memória que, ao distanciar-se no tempo, depura o poder do significado.



(Paulo Laender - arquiteto/escultor/designer)-( escrito em julho de 2002 revisado em abril de 2016)

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