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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Um Conto de Reis

MINHA ATRIZ NAQUELES DIAS
 Fábio Carvalho

Ave Maria Nossa Senhora! No mundo há pessoas que dão pena, outras dão asas. Uma frase anônima que não lembro mais de onde recolhi. A chuva tamborilava no telhado de zinco quente enquanto a gata branca, imóvel como uma esfinge, olhava dentro dos meus olhos fixamente. Comecei a ficar incomodado com aquela inquisição enigmática, dispersei-me então para o outro cômodo interrompendo meus afazeres como se estivesse fugindo da cruz assustado pelo maremoto que se passava dentro de mim. É certo que uma hora terei que enfrentá-lo, não existe transição sem turbulência onde é necessário ao menos um pouco de coragem para arriscar. Consegui escapar ainda longe do mar. Mário, o ator, me mostrou uma colagem da sua mais nova safra, quando fui visitá-lo no trás ante ontem. Vi mucos, mucosas, glandes, vulvas, clitóris, pequenos e grandes lábios, mamilos, gengivas, céus da boca e línguas em primeiro plano por sobre abstrações sem cor ou descoloridas antes do preto e do branco. A cor de amora e o calor umedecido construíram uma tessitura de sexualidade profunda, violenta, explodindo como mênstruos na água. Na conceituação do artista plástico ali estavam o movimento e o equilíbrio convergentes para um ponto de fuga, era isto que o resultado da obra revelava. Pensei em vão.  A linguagem é secreta na viagem livre e solta com passagem só de ida. Belo quadro. Mudando de pau pra cavaco, continuando nas artes plásticas, na segunda feira pela manhã estavam parados em frente à banca tem tudo do Salim, o Véio, o Feio e o Pereirinha, conversando entre pausas com muita seriedade. Disfarcei comprando um jornal e percebi que negociavam sobre a divisão das duas garrafinhas pitchula com pinga que tinham conseguido comprar na vaquinha, assunto realmente muito importante. Negativos valem ouro. Tortura mental, saudade é o meu mal. Válvula de escape, enquanto todos corriam atrás da idéia fugidia, parecia que nada ia dar certo, logo ela, a primeira do lado B veio me salvar: Rosa Menina. O tempo todo dia é menos do que ontem. Nem estou sabendo se hoje é ontem ou se agora é amanhã. Também pra que saber. Dizem que não existe vida sem esperança, hoje estou completamente desesperançado. Vou votar, coisa que não faço há anos por desobediência civil. Desci das alturas, vejo na esquina da Rua dos Guajajaras com a Avenida Amazonas uma mendiga negra sentada em cima de vários sacos de plástico cantando em altos brados afinadíssimos, com letra corretíssima, o Hino Nacional, algo de dar inveja a qualquer desportista que mastiga e finge que sabe o que finge cantar em close com olhos embargados. Quem vem lá, chegando lá de trás do mar. Refoga e escalda o sururu, apura o vinho de caju amigo. A bela bailarina Flor não se animou com nenhuma das músicas de vários gêneros que as outras mulheres da festinha no apê colocaram para dançar, curioso, perguntei qual música movia a bailarina a bailar, ela respondeu: é samba-rock meu irmão. Depois mais tarde ouvi a Flor bailarina falando para a Mariana que seu esmalte preferido chama-se “Flores para Iemanjá”, verde azulejo piscina. Luxuriante é a mesa vestida de chita com o verde translúcido da garrafa de Heineken misturada lá fora com lua crescente já visível no céu azul anil acima da comunidade multicor. A origem do mundo. Nada como a tristeza para te trazer a beleza, enquanto a alegria é a prova dos nove. O Lírio, que é uma planta subterrânea, se estressa com tanta secura quando ao primeiro pingo de água se reproduz loucamente nascendo em flor para salvar a espécie. Segundo disse o Rodolfo durante a primeira cerveja pública depois da eleição de frente ao lava-jato onde a garçonete da padaria trocava a roupa de porta aberta. O soutien e a calcinha eram pretos em combinação. Brilho de purpurinas, bolas e serpentinas, som vibrando metais, nus foliões, casais e eu sem ter você... Estou totalmente Moacir Santos. E veio a Quarta- Feira, cinzas, contrição e Orfeu. Peras de Rio Negro na falta de água. Recentemente aconteceu com meu pai um fato curioso, ele foi roubado dentro de casa pela menina que minha mãe trouxera do interior para trabalhar com eles. Ela levou uma pochete contendo todos os documentos, cartões de banco e algum dinheiro. Foi identificada pela câmera de segurança do caixa eletrônico, que ela se utilizou para sacar tudo que pode. Muito a contragosto, já que gostava da menina, meu pai foi convencido pelo banco a registrar uma ocorrência, fui com ele. Na delegacia, como não tinha mais documentos, o policial começou a procurar pelo seu nome na central de identificações, não encontrou.  Então pediu a filiação e tentou em nome do meu avô falecido em 1940, sem sucesso. Meu pai não lembrava o nome completo de sua mãe, assim ligou para minha tia, sua irmã, para perguntar: ô Dayse, como é que mamãe chamava mesmo? Nada foi encontrado. Com um sorriso maroto ele se virou para mim, do alto dos seus oitenta anos, perguntando sem duvidar: será que eu não existo? Certa vez o Guará me contou que ficou mais de dez anos sem vir a BH, com isso sem ver seus familiares, esteve durante este tempo viajando cinematograficamente pelo mundo afora. Rio, Londres, Paris, Marrocos, Índia, Afeganistão, Trancoso e por aí vai. Um dia sem aviso voltou, desceu do taxi em Santa Tereza em frente à sua casa, onde uma senhora regava as plantas. Foi correndo abraçá-la e beijá-la dizendo: mamãe que saudade! No que a senhora retrucou prontamente: não sou sua mãe, sou a vizinha, sua mãe está lá no quintal cuidando da horta. A sensibilidade apocalíptica. Voz interior que fala: felicidade inexprimível de estar ali, tendo em volta a “Rosa da África”. O professor olha a estudantada preta, invadido por aquela exaltante voz interior: o seu “idealismo”, o seu “estado de poeticidade”... Escreveu Pier Paolo Pasolini em “O Pai Selvagem”.  Continuei vagando, deambulando pelo mesmo trajeto, coisa que está enchendo meu saco. Cambiar se faz necessário.  Depois dessas implosões inter-galáticas, consegui terminar mais um pequeno filme. Nascido de um escrito que fiz por encomenda do meu ouvido e dos planos que filmei com a camereta fotográfica ao hazard, esse quadro movimento musicado me mostrou outras possibilidades de prazer, me fez enxergar mais adentro. Próximo ao meu inferno astral, não podemos dificultar o amadurecimento.  Não sei por que falo no plural novamente, deve ser meu outro eu. O Pica Pau está recostado em um galho de árvore sonhando com o prêmio da loteria que ele tem certeza que vai ganhar. Dentro do balãozinho que indica seu sonho está escrito o que o dinheiro vai lhe trazer: mulheres, iates, mulheres, mansões, mulheres, carrões, mulheres, viagens, mulheres, caviares, mulheres, champagnes, mulheres, banquetes, mulheres e etc. A mulher tem muito mais complexidade do que mulheres. Não deixa de ser engraçadinho o sonho do Pica Pau, seria mais ou menos como ser amado ou ser o amado. Naquele final de manhã, caí num botequim horroroso na Rua dos Caetés depois do teste de projeção, ele já estava ficando até agradável quando fui ao mictório e vi um cartaz onde estava escrito em letras garrafais: proibido dançar. Meu corpo de baile ali não teria vez, pensei com grande desilusão. Decidi parar de fumar e beber de uma tacada só, achando que não iria mais me reconhecer quando me olhasse no espelho, apesar do entorno insistir que esse pensamento era uma tremenda bobagem. Novamente ela sorriu para mim e passou. Fui cedo ao Mercado Central em busca de um prato feito, tudo estava lotado, de súbito encontrei-me com o Biscoito, o mundo se encheu de esperanças mais uma vez, subi de elevador.


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