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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

UM CONTO DE REIS

EU ACREDITO
 Fábio Carvalho

A chave do mistério. Estava no meu ponto de observação com três portas abertas, na mesma hora que a bela mamãe vinha saltitante subindo a rua, tão radiante como nunca havia visto. Ela puxava algo com rodinhas que a princípio achei que era uma mala. Elucubrei então que retornava de alguma viagem, indo alegre rever as três crias que ficaram com a avó. Depois que ela passou por mim, notei que o que ela puxava era um carrinho de bebê vazio. Resolvi a questão entendendo que ela deixara as crianças na escolinha, assim teria aquela tarde todinha livre só para si, felicidade total para uma jovem tão atarefada naquela missão criatória. Muito compreensível. Outra noite encalorada, eu dormia na minha cama embaixo do ventilador de teto ligado, coisa que nunca faço, quando vi e ouvi nitidamente uma mulher que pegava minha mão e sussurrava repetidas vezes: vamos ali comigo, vamos ali comigo...  Lutava para acordar, queria muito ir, não conseguia de jeito nenhum. Num estalo acordei e vi que era só um sonho, embora não parecesse, o relógio marcava três e vinte da manhã. Levantei- me e fui até a cozinha no escuro, tomei uma água gelada, voltei pra cama e tornei a dormir.  O sonho recomeçou só que agora eu sabia que era sonho mesmo dormindo. A mulher estava do outro lado da cama olhando pra mim de maneira lânguida e triste ao mesmo tempo, a realidade do meu quarto se dissipou e fui transportado para o alto de uma cachoeira, onde me equilibrava para seguir a trilha escorregadia sem nada para me segurar, desejava a todo custo voltar para meu quarto e revê-la, tudo foi ficando branco e acordei de novo, o relógio marcava seis e vinte da manhã. O fantasma da liberdade. Aquela vez vinha subindo a Rua do Ouro ao anoitecer, quando um conhecido, artesão de oratórios, me parou e contou a estória mais estrambótica do universo. Lembrei-me imediatamente que Tim Maia dizia o seguinte: mal de malandro é achar que todo mundo é otário. Tenho certeza que não era sonho. Voltei ao velho Maletta para almoçar no velho Lucas com amigos estrangeiros depois da sessão. Logo que encontrei meu lugar à mesa, a simpática garçonete me perguntou com o sorriso vermelho, se eu desejava algo para beber. Balançando a cabeça respondi: um rum. Ela se preparou para anotar perguntando: qual bebida então senhor? Falei com o dedo indicador apontando para cima: um rum. Ainda sem entender, enquanto todos ao nosso redor riam, sem graça se aproximou de mim e disse: desculpe senhor, mas qual bebida o senhor quer? Sem apertar a saia justa que estava repeti pausadamente: um rum com gelo e limão sem Coca-Cola. Ela abriu o sorriso mais vermelho de alívio, pediu-me três vezes desculpas, mandou o pedido para outro garçom servir, sumiu e nunca mais voltou. Fiquei com saudades pela tarde afora, gostei de seu entendimento concentrado. A concentração no gestual das pessoas também desperta os sonhos. Trilha sonora. Um disco voador me trouxe de volta para as alturas do edifício JK, quando despertei não sabia mais remontar meu trajeto dentro da espaçonave para chegar até aqui, lembrava-me apenas de uma imagem interna que tentarei descrever a seguir. Uma mulher negra linda, completamente nua, estava deitada no sofá de fibra ótica ao lado da escotilha aberta por onde se viam estrelas. Ela tinha cabelos castanhos dourados, encaracolados e compridos de aplique espalhados ao redor do seu rosto, olhos virados para cima na direção do céu, boca entreaberta por onde emitia estranhos sons lembrando o resfolego das pombas. Cada uma das mãos com unhas vermelhas cor de sangue seco estavam pousadas levemente nas virilhas, uma das pernas dobrada no encosto outra descia até o chão. Com o deslizar da nave gotas de suor emergiam por todo seu corpo, em movimento centrífugo cintilavam estrelas. Por um breve período durou esse vislumbre. Depois do transe ela se levantou em câmera lenta, passou por mim, foi até a cozinha americana de condutores transparentes, se pondo de costas pra minha visão, enquanto preparou um chá aromático. Notei que todo lado esquerdo de seu dorso até as ancas, era muito marcado de queimadura. Subitamente ela se virou e me perguntou com voz mansa: isto te incomoda? Voltei com pergunta: o quê? Ela trouxe uma xícara para mim, sentou-se ao meu lado e disse: minhas marcas, muitas pessoas sentem asco. Respondi: ao contrário acho até bonito. Ela sorriu com belos dentes e contou o que originou tamanha cicatriz, uma bola incandescente veio do céu em direção aos seus olhos, nesse momento no susto se virou, ao chocar-se com suas costas, a bola se transformou em champanhe borbulhante e fervente. Agora estava se submetendo a um tratamento inovador com a feiticeira mais velha da congregação para evitar queloide. Não doía mais nada. Cruzei com a Melodia toda de branco prata em Viracopos. O devaneio da parceria no filme nasceu de forma natural a partir das marinhas que registrava pelo celular. Na minha marola pensei em batizá-lo de Marinas Sem Consequência, mas parece que vai se chamar Marinas Ilhoas.  Vejo a belíssima atriz Hanna Schigulla, velhinha parecendo uma boneca de porcelana, falando sobre sua alucinante interpretação da personagem Maria Brown. Acho que tudo que fazemos é a reunião de todas as experiências que vivemos, disse seu diretor.  Não podemos considerar minha infância normal, eu era um adulto enquanto criança. O direito do mais forte é favorecer a liberdade do mais fraco, lhe dando um pouco de sua luz. Cinco filmes em um ano era uma meta meio alemã, o medo do goleiro diante do pênalti, um tipo de doença mental meu velho. Já na escola primária, houve por assim dizer, uma espécie de flash, sempre em busca da melhor luz. Nunca soube por que ela era tão linda na fotografia, Mata Hari do milagre econômico. Hashtag desejos e sonhos. Nas manchetes de todos os jornais daquele dia, estavam estampadas fotos de uma loura bonita com os seguintes dizeres: dentista é presa em seu consultório na zona nobre da cidade, por tráfico de armas e drogas. O Guará levantou-se no meio da multidão e disse num tom cândido: surpreendente jamais poderia imaginar que ela era dentista. Ela viu aparecer uma suave manhã e se calou discretamente, enquanto Matisse pintava. Para Jurerê tomamos o caminho do Rei, trapiches e mar aberto. Senti claramente a presença da minha tribo amalgamada nas pedras, no vento, nas areias e nas Tainhas que saltavam das águas cristalinas em minha direção. Magia, arte e tramóias ilhoas. Mesa de bar, cochilo no avião, em plano geral a morena esplendorosa desce na arrebentação até a altura do meio de suas coxas, com os braços erguidos, faz uma saudação ao infinito reluzindo toda beleza daquela ilha paradisíaca. As praias desertas continuam esperando por nós dois. Em Canasvieiras perto da Terra Santa, encontrei o Pajé Tibicuera, já careca e bastante envelhecido depois de ter atravessado todos os tempos, queimando um morrão. Ele confirma o que meu amigo grego me contara, que logo ali foram mortos e enterrados nossos antepassados, os verdadeiros donos daquela região de beira de mar. Mostrou-me ainda as formações de pedras talhadas pelas ondas que serviam de caldeiras para a feitura dos sopões de peixe e de crustáceos, que continuam abundando por aquela localidade no sul do Brasil. No sonho dos meus sonhos quando eu sonho o mundo está pra se acabar. No fato do relato quando eu faço o mundo está pra se acabar. Qualquer um, no enredo da graça nós somos cachaça pra se beber... Se beber. Você precisa morrer algumas vezes antes que você possa viver, disse Henry Chinaski em altos brados para o porteiro daquela espelunca na zona da luz vermelha. Só depois da meia noite fui à Taberna dos Piratas e a Capetaria, por lá novamente sorvi a loucura perfumada que se ofereceu para mim. Pelada na areia que coisa boa. Entre o polvo provocante e a lagosta atrevida, fiquei com a ostra gratinada na manteiga ao vinho branco, em frente ao mar aberto de Sambaqui na divisa com Santo Antônio de Lisboa. Isso tudo porque a onívora poesia pasoliniana devora muito de tudo: o claro e o obscuro, o coerente e o contraditório, o formal e o informal, o óbvio e o obtuso. Sem disfarçar, aquela mulher gorda se masturbava junto às pedras esquentadas pelo sol, no canto da praia onde todos andavam nus. Talismã cor de rosa. Hoje lá pelas seis horas da manhã, enquanto sozinho passava o café para o coletivo, tive um acesso interminável de riso ao lembrar não sei por que da música do Baiano e os Novos Caetanos que dizia o seguinte: Vou batê pá tú batê pá tú, pá tú batê, pá amanhã a pá não me dizer que eu não bati pá tú, pá tú podê batê.

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