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terça-feira, 4 de março de 2014

UM CONTO DE REIS



SUAVE ALTERAÇÃO DA SÍNCOPE

 Fabio Carvalho
“Não digo que todos devemos proceder mal,
mas devemos dar a entender que podemos”.
Orson Welles


Um tipo entrou no botequim e se aproximando do balcão de vidro foi logo pedindo para a parede de ladrilhos brancos manchados de gordura e asfalto: ô meu irmão bota uma cachaça aí! Como o Nada consta não estava lá, nada se ouviu de resposta. Ele então olhou ao redor com cara de nada entender e o ao redor olhou para ele entendendo tudo. Neste instante, de dentro da caixa registradora surgiu o amarra cachorro careca do responsável por aquela esquina de três portas, e assim respondeu com a seguinte pergunta: ô Nas, você quer a Fofa Tóba ou a Incha Pé? Voltei para as alturas pensando em mais uma oportunidade que desperdicei de soltar os bichos com o microfone delicado daquela bela jornalista na minha boca dentro da tenda cinematográfica da pequena cidade de Tiradentes. Ainda bem que existe o Rosemberg para falar o que tem que ser falado, atenuando minha dor covarde, então pude me salvar de mim mesmo exercitando a indulgência. Tenho que aprender a tocar minha melodia sem medo. Além de tudo ainda existem as pessoas. O inferno são os outros. Quero meu corpo bem livre do peso da minha alma. Essa interessante frase, estava escrita no azulejo, em cima do mictório no banheiro do Cine Belas, por onde entrei esbaforido pelo apertão na bexiga pouco antes da primeira sessão da tarde calorenta do filme Ninfomaníaca – Parte 1 com cortes. Tudo resolvido, assisti ao filme, com a imagem daquela frase muito bem grafada em batom vermelho na tela de dentro da minha cabeça. Então Deus adormeceu e começou a se arrepender de tudo o que tinha feito. Outra frase que li ou ouvi não sei mais onde e até agora repica nos meus olhos e ouvidos. Outro dia, chegou primeiro o elevador automático, entramos eu e duas mulheres muito magras ambas de óculos com lentes fundo de garrafa. Uma era muito mais velha que a outra, parecendo ser sua mãe ou talvez sua avó. Esse elevador é bastante apertado, com duas portas pantográficas, você entra por uma e sai pela outra. Postei-me ao lado da placa de metal com os botões de comando e as duas ficaram de frente para mim nariz com nariz, a mais nova olhando fixamente para o mostrador dos andares, que naquele elevador há muito estava travado num sinal luminoso de interrogação. Fomos subindo dentro da engenhoca, ouvindo os sons de uma velha máquina em pleno funcionamento sem interrupções como murmúrios doces de fluidez. O trajeto vertical era longo, subitamente o silêncio foi interrompido pela mais jovem, que mudando a direção dos olhos arregalados para mim por trás dos óculos, disse com a voz desafinada: Otis que está escrito ali é o nome do inventor do elevador. - Nossa! É mesmo? Nunca soube disso. Disse eu, com espanto verdadeiro. Os olhos fixos nos meus, e agora com leve satisfação transparecendo em seu semblante improvável, continuou: é sim, vi num filme da (esqueci o nome) e da Meg Ryan. Pausa. Só vi esse filme porque a (esqueci o nome) só faz romance. E eu só vejo romance, né! Outra pausa. Balançou o rosto afirmativamente e emendou: é sim, veja também o filme (esqueci o nome), que o senhor vai ver! É sim. Outro longo silêncio se seguiu até chegarmos ao meu andar. A porta pantográfica se fechou após boa tarde para lá e para cá, as duas continuaram subindo. È difícil porque é muito simples, disse a artista-plástica- cantora Leonora Weissman na TV Cultura. Do meu secreto observatório bem acima do chão, aquela chuvinha fininha e retinha, que caia sem ruído, em um silêncio surdo e abismal, me encantava como se fora a neve. A visão das gotas perpassadas pela luz trêmula e branca me trouxe um êxtase libidinoso. Algum tempo depois debruçado na janela do mesmo bureau nas alturas, estou completamente estabilizado, meu estabilizador chama-se Eternity. Pergunto a mim mesmo: pra quê outro estabilizador? Não me respondo. Continuei a procura daquela ilusão perdida naquela tarde de Domingo sem o Cantus Firmus de Bach. Agora estou aqui sentado escrevendo e dois helicópteros da polícia chegaram tão perto que quase entraram no meu esconderijo. Ou erraram o trajeto, ou estão me observando. O fato é que eu os observo muito bem. Linguagem é o nome do filme que todos deveriam ver na tela grande. O cinema serve para mostrar o que a gente não vê. Sigamos sem teorias paranoicas e desviantes. Naquela outra manhã acordei com os Otomanos na cabeça. Fiquei meio invocado. O quê o Império Muçulmano tinha a ver com a bela Terça-feira, onde vários afazeres chatinhos me aguardavam? Nada é claro. Cheguei à conclusão através de uma louca analogia, que o otomano, me veio sonoramente porque na noite anterior ficamos falando de otorrino. Realmente uma viagem na maionese enquanto me preparava para sair. Encontrei o que anotei num papel pautado para usar de epígrafe em um filme que ainda vou fazer, não sei mais de quem é a quadra, visto que escrevi ao lado os nomes do Machado de Assis e do Ruben Dário, aí vai: jamais ficou comprovado que aqui habitam fantasmas. Entretanto eles circulam mesmo sem comprovação. Na sequência uma argumentação sobre o filme em questão. – Estamos diante do problema das chaves (...). A aula de como se usa o Xilon (deve ser estudada). A junção dela com o discípulo é o X da questão. A cenografia dos interiores feita em estúdio deve ser ultra- carnavalesca- radical, feita pelo arquiteto Éolo Maia (mosteiro com diversos tipos de cômodos, longos corredores com grandes portas, Laboratório alquímico e uma caverna labiríntica). Zózimo (Guará agora Otávio III) fazendo experimentos no seu laboratório e ensinando durante os sonhos a seu discípulo, definindo seu potencial violento. O problema se acirra com a insônia que persegue Marion (João Velho). Louco para dormir e receber o mestre em sonho, pouco a pouco encontra mais dificuldades para buscar o sono, o que o leva a ter surtos de extrema irritação agravados pelo uso contínuo de drogas pesadas e do sexo desvairado. As sequências a serem roteirizadas devem levar intransigentemente em conta as locações, a cenografia e antes de tudo a relação desenvolvida dos atores dentro do quadro na proposição do movimento não natural. Elemental. Nessa procura da não verbalização dos acontecimentos, e sim de sua visualização. Recorreremos ao simbolismo presente na improbabilidade dos figurinos e nas caracterizações dessas personagens (como barba, bigode e cabelos) que devem conduzir a ação da maneira mais realista possível de forma ralentada e quase didática. Expressionista. Mais uma frase bastante interessante estava anotada no fim da página. Novamente não sei mais de onde a tirei. Oh Virgem Maria, que conceber sem pecar, permita que eu peque sem conceber... O conhecedor Mário Alves Coutinho escreveu sobre o mestre de todas as gerações Jean Luc: Godard procura o definitivo por acaso. É certo que prestei mais atenção no meu trajeto diário, já faz quase dois meses, do bairro da Serra até a região central de BH. Como sempre, não sei bem porque, elegi um mesmo caminho em zigue-zague que percorro a pé todos os dias pela manhã. Não passo de um metódico. Nele desço a Avenida Afonso Pena até a Praça Tiradentes onde quebro a esquerda na sombra pela Rua dos Aimorés e chego pela frente a Igreja da Boa viagem, por onde subo pela rampa principal e atravesso a grande porta de madeira antiga que dá no altar, até o maravilhoso jardim lateral, com enormes e frondosos Fícus ameaçados pela praga e pela idade de mais cem anos. Defronte a mais bela destas árvores, invariavelmente sentado no banco da alameda, um padre de batina marrom, muito parecido com o Guignard, com os olhos fechados, as mãos cruzadas envolvendo a barriga e uma bengala deitada sobre as coxas. De inicio achava que ele ficava ali rezando, hoje tenho quase certeza que ele tira é um cochilo esperto. Sem dúvidas um quadro parado tirado dos filmes do Luís Buñuel. Saio pela Rua dos Timbiras e na esquina com Sergipe, exatamente embaixo da placa como um sentinela, o senhor negro de cabelos e bigodes brancos, numa cadeira de rodas, sempre com camisas sociais muito bem passadas e engomadas. Trocamos todo dia um bom dia. Subo pela Rua dos Guajajaras até encontrar a Rua da Bahia que desço meio quarteirão e entro na galeria do mítico edifício Arcangelo Maleta, passo pelos bares e saio pela porta principal, já na Avenida Augusto de Lima. Por vezes retomo a Rua dos Guajajaras e desço direto ao meu destino, em outras sigo pela Avenida até o Bar Banzai, onde tomo um café amargo com o gordo dono da loja de tintas, fazendo a resenha do futebol. Quando vou por aí, ainda passo por dentro do Mercado Central. Como se vê um verdadeiro périplo. Dê Lírios. Como prestei mais atenção dessa vez, percebi que atravessava vários portais todo dia e me voltou o sintoma da minha velha doença, velho! Apesar de ter jurado a mim mesmo e prometido aos meus comparsas mais constantes, que nunca mais faria nenhum trabalho, sem antes arranjar as condições para tal, pensei em um filme para ser realizado imediatamente. Bastava arrumar uma mini-câmera e filmar uns três planos sequencia do meu caminho diário e montar tirando a continuidade das ações. Cheguei entusiasmado com a ideia, ia documentar meu trajeto. Em seguida olhando pela janela, achei isto tudo uma descarada bobagem, nada original, o que mais se tem feito por aí, são esses documentários subjetivos, uma tremenda egolatria. Ademais todo caminho é interessante, não seria o meu que teria alguma onda mais que os outros. Mudei de direção e fui fazer uma coisa que nunca tinha feito na vida, comprar talheres. Quando muito raramente vou comprar algo, só me interesso por promoções. Nessa busca, andando pela Rua dos Caetés, vejo o que procurava e entro na loja, quando vem vindo lá do fundo uma mulher negra belíssima, rindo para mim, era ela a vendedora. Mais alta que eu, com os cabelos cacheados e cheios aumentando sua altitude, olhos rasgados cor de cobra e dentes branquíssimos contornados pelos lábios desenhados, além de um corpo escultural. Não me lembrava de ter visto tanta beleza exuberante, reunida numa pessoa só. Como mágica descobri a nova onda daquele filme. Então, como estou sentado no sofá e só vejo o céu e as nuvens, dei inicio a mais essa viagem inconsequente. Ela seria da seguinte forma: a vendedora vestida com um pano trabalhado enrolado pelo corpo vive o contra plano do caminho que eu faço, agora filmada de frente por um fotógrafo steadicam, ou seja, ela seria eu, a minha personagem. Depois na montagem, as imagens da mini câmera seriam a subjetiva dela/eu. Seguindo ela sobe num elevador antigo, anda por longos corredores, até chegar de frente uma porta de correr, onde toca a campainha. A atriz Michelle, no vestido que ela usou no lançamento do filme do Éder em Sampa, abre a porta e a recebe com um abraço e um beijo na boca, lânguido, romântico e apaixonado. Câmera lenta ou música de câmara. Lá dentro tomam champanhe, enquanto a personagem da Michelle prepara uma Guacamole para o jantar à luz de velas. Tudo termina com uma noite de amor entre as duas, que não é mostrada. Enfim uma chuva forte limpou a tela seca e poluída, veio em ficção. Ainda inventei estes dois títulos esdrúxulos: No Centro do Bureau Secreto e A Língua Roxa da Cantora. Pode ser que o segundo não sirva para esse filme, mas há de encontrar o seu. O cineasta David Neves escreveu: Paulo Emílio Sales Gomes colocou bem essa definição (por via de comparação com o teatro) do que vem a ser o cinema: a aflitiva tranquilidade das coisas definitivamente organizadas. Voltando ao meu umbigo, talvez por ter escrito mais esse experimento absolutamente desnecessário, consiga escapar de ter que filmá-lo.

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