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sexta-feira, 16 de novembro de 2012



O SANTO E A VEDETE
Fabio Carvalho

“O momento em que o desejo se humaniza é também
aquele em que a criança nasce para a linguagem.”
Jaques Lacan
Consegui finalmente voltar ao Rio de Janeiro. Por culpa do meu elementar mau comportamento, acabei indo sozinho. Antes de atravessar o túnel da serra de Petrópolis, na segunda-feira à noite eu descia a Rua do Ouro, ao tempo que vinham subindo três meninas lindas, batendo palmas ritmadas e rindo muito. Fiquei contagiado com tamanha beleza e frescor que ao cruzar por elas entrei no ritmo e também bati palmas. Elas retribuíram me sorrindo. Uma era muito parecida com a atriz Leandra Leal com olhos claros e cabelos cacheados, livres ao vento como os das outras. O mito das três graças. Hoje, terça-feira, após esta viagem que estou a narrar, vai acontecer uma eclipse solar. Queime tudo que puder, disse o poeta Ledo Ivo. Na primeira noite no novo aparelho do Rio, uma chuvinha fininha com certa tristeza quente, o extraordinário Macunaíma restaurado na tela grande e um sanduíche de filé no Bar do Manolo. A imprensa na porta do Samaritano esperava sem sucesso a passagem do nosso grande arquiteto. Sonhos em profusão na janela que dá para a direção do velho estabelecimento chamado Aurora. Via mundo. Vamos ao que interessa. Cinema. Você alcançou mulher. O mesmo velho mar, ouvindo o vento ventar. Apenas mais uma rima fácil, que não fui eu que fiz. De Pernambuco só quero a Céu. Rosa Passos da Bahia. O RÔ decifrou como escrito estava, o enigma da Esfinge sobre o amálgama visual sonoro batizado de O Anjo Devasso. Podemos ficar chocados, a melhor personalidade de cantora popular no Brasil, que por enquanto conheço, sem sombra de dúvidas são duas ou três: não digo para não causar espanto. O escândalo já não é mais possível. Lenha na fogueira.
“Vocês que vão emergir das ondas que agora nos afogamos, pensem quando
lembrarem de nossas fraquezas dos tempos sem sol de que tiveram a sorte de escapar.”
Berthold Brecht
Com esta inscrição se inicia a questão do filme que vamos ver. Devemos lavar e descansar a visão. A percepção que a encomenda pode suscitar aos olhos do artista um exercício livre da subversão, me é muito atraente. O inconsciente rigoroso. A intuição é a sofisticação máxima da sensibilidade. Nada mais político que a arte pela arte, mas quando é a encomenda que não a permite, aí pode se instalar a subversão: a mais honesta posição que se espera do artista. O seu almoço não justifica o seu trabalho. Pois bem, vamos ao começo das imagens e dos sons. Dentre muitas outras coisas, como claramente se nota, aprendi com o Luiz Rosemberg, autor deste filme, o valor da epígrafe. A partir dela podemos atacar por todos os lados e dimensões. O time deve jogar para frente. Disfarçada de bode está a exaltação da vida. É só o que nos resta. Belíssima política. Magnífica expressão de afeto. É cinema por que é, mas poderia ser outra coisa. Uma colagem de amor. Ser ou não ser. Tolerantes ou intoleráveis. Vamos decidir acompanhados das dúvidas e não me digas talvez. O que seria da atuação sem os atores? Afinal não são eles que atuam? Serão eles humanos? Ao que parece alguns já morreram, no filme não. A vida da personagem de dentro para fora. A impressão em cores de figuras formadas em um outro universo semelhante e paralelo a este, o Brasil é aqui e lá também. Depende de qual posição se pode escolher. Pornochanchada? Era esta a encomenda. O filme escapa aos gêneros. Pode ser qualquer um deles, advindo da qualidade da fruição. O discurso gago da engalobação é ouvido por todos os pelegos de todos os setores de nossa tragicômica sociedade de estátuas, embebidas pelos catarros brancos da mediocridade.
“É preciso arrancar alegria ao futuro.
Nesta vida morrer não é difícil, o difícil é a vida e o seu ofício.”
Maiakowski
O Santo e a Vedete, um filme para ser visto ouvido cheirado e comido. Feito com paixão e consciência no fim dos anos setenta do século passado. Biscoito fino para as massas que a burritzia nacional, como sempre, se encarregou de escamotear. É tempo e agora necessário que este autoretrato sócio político suavemente caricato, realista quando visto junto à realidade hoje, venha à tona. De quem devemos exigir isto? De nós mesmos é a resposta. Somos homens ou ratos. É esta a pergunta. Em meio aos sem nada, ainda somos sem tela, continuando a aceitar. O brucutu de ouro. As seqüências se sucedem inventando a invenção da sofisticação formal. Humor rigorosíssimo, a prova dos nove. Os atores gesticulam e se expressam como de verdade as personagens o estariam fazendo. Um jogo de espelhos da realidade verdadeira além do visível. A realidade do pensamento. A câmera filma o pensamento das personagens com concisão e maestria. E ouve os diálogos afiadíssimos e bem afinados sem nenhum ardil. Saindo da boca certa na hora certa. Caimento perfeito dos papéis nos tipos. Chique-Choque. Diz a mulher nua na banheira de espumas: eu sou o controle da imaginação. Dezenas de barrigudos se exercitam ao nascer do sol nas praias do Rio às vésperas da festa do carnaval. Uma constelação de amantes do ofício nos trópicos se apresentam: Luthero Luís, Nelson Dantas, Thelma Reston, Renato Coutinho, Jards Macalé, Adriana de Figueiredo, Pedro de Moraes, Wilson Grey, Marta Luz, Rosemberg, Mara Aché e assim vai. Elejo, por unanimidade de todos os meus sentidos, o plano Panda do Carlos Reichembach e do Jairo Ferreira, o plano em que as duas mulheres nuas e lindas na cama, brincam e se fotografam sem câmera. Seguido de perto pelo em que a mulher com a perna engessada e vestido vermelho troca de calcinhas; e ainda pelo do carro, de onde o palhaço recebe o pagamento de um saboroso boquete. Cenário e figurino. Doutor Chupadinho.
“O melhor conto do livro era a estória do garotinho que não deixava ninguém ver
o seu peixe dourado, só porque o tinha comprado com seu próprio dinheiro.
Achei o máximo. Agora D.B. está em hollywood se prostituindo.
Se há coisa que eu odeie, é cinema.”
J.D.Salinger

Gosto de observar o caminhar das meninas cariocas. Coisas e loisas me atacam. Já estou bem crescidinho. Aprendi a escapar mesmo sem ser ileso. Domingo de praia no Rio, a alma canta com produção da bela endorfina. No final da praia do Leblon um achado: Bill Evans e seu piano mesmo ali presentes. Eu não sou de reclamar. Ninguém me fotografou, tinha o dom da invisibilidade. No fim de tarde, pela primeira vez a visita para uma sessão do filme Djalioh do Ricardo Miranda na casa dos Moreira Salles no alto da Gávea. Senão vejamos: segundo o Ricardo o meu filme é uma adaptação do meu desejo. O que seria a infância naquele espaço amplo e esmagador? Existiria mundo lá fora? Em qual porão daquela plataforma a extraordinária personagem do Santiago se materializava expressão?

Seria no porão do cinema? Pergunto sem querer saber as respostas. Até consegui me esquecer do futebol. De novo nas montanhas, vi ontem de noite junto com o Chico e a Isabel, o som tratado de O Fantasma do Cinema. A espacialização dando o tom da fineza do acabamento. Deflagradora e impressionante a revelação de O Anjo Devasso que se deu em mim e para mim. Tudo isto acontece e a criança sorrindo cresce dormindo azul no berço do quarto ao lado de porta aberta

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