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terça-feira, 2 de outubro de 2012



GALO DOIDO CAMPEÃO E A CANETA ALADA

Fabio Carvalho


Amo a linguagem, a maravilhosa linguagem, o delírio da linguagem:
nada é mais raro que a linguagem da paixão nesse mundo onde vivemos, com
medo de sermos pegos de surpresa; que remete, é preciso crer, à sorte do Éden,
quando Adão e Eva se apercebem nus diante da invenção da folha de vinha.
Luis Aragon

A hora do sim é o descuido do não. Cantou o poeta. Ô Márcio, seu restaurante está cheio de pernilongos. Vaticinou o Manga-Rosa. No cruzamento das mesas, Totonho como sempre xingava tudo e a todos, e ainda proferia muitos impropérios para o além como uma metralhadora. Imediatamente retruquei em pensamento: vamos aguardar as muriçocas. Todavia não há nada que esteja tão bom que não pode ser melhorado. Como a concentração no jogo era total, ninguém se manifestou para o mudar o tom, muito menos eu. Depois de passado mais um ataque, pedi uma caneta. O Walison perguntou para quê. Como também estava concentrado, respondi que era para jogar na cabeça de alguém ali presente naquele nobre recinto. Bela a música que ouço de dentro. Ele entendeu que eu falava sério e me perguntou se não preferia jogar uma garrafa. Sem pestanejar com o olho fixado na tela plana de 42 polegadas , bradei que minha arma era uma pena e também as flores. A paciência se esgotou. A Hebe Camargo havia sido colega na escola primária da minha avó Maria Dinorah em Taubaté. Os Miné sempre foram de pavio curto. Na curta seqüência vinha o estopim. Pensei nos gerânios do pequeno canteiro no prédio na Rua Vitório Marçola. Breve devaneio. Um filme de animação de cinco minutos de duração feito a partir de cinco fotos chamado O Bárbaro e a Gueixa. Uma apropriada citação do sofisticadíssimo John Huston. Neste momento ele me trouxe uma magnífica caneta preta com detalhes na cor gris cravejados em alto relevo numa anatômica aspereza. Com ferina ironia perguntei se não me era devido algum tipo de papel. Sem ainda nada entender continuou sorrindo para mim. Não desconcentrei. Fui até o balcão e de passagem enfiei a mão no bolso do jaleco verde musgo do Márcio, que sem reclamar permitiu que eu pegasse um bloquinho de notas perfeito para o que me sentia compelido a fazer. Munido daquele bem desenhado instrumento de escrever, conquistei uma fugidia descontração. Olhei para o lado direito quando voltei para minha destinada mesa naquele primeiro tempo, e vi de perfil, sentados lado a lado, o Joaquim e o Xará mordendo cada um a metade de um enorme torresmo de barriga partido ao meio.  Minha mão deslizava pelas palavras com tamanha rapidez que achei que aquela caneta tinha asas e que a mão não era mais a minha. A desconheci. Numa piscada enchi o bloquinho de cabo a rabo, na frente e no verso. Para que eu não sei. Chegamos aos trinta e cinco minutos num inquestionável e lacônico zero a zero. O Galo não jogava nada. O jogo acontecia no estádio do Canindé na Marginal Tietê, o técnico da Portuguesa era o barrigudo frangueiro Geninho. O Victor salva mais uma neste instante. A situação piorava enquanto Dida pegava o cruzamento esperto com curva do mameluco R49. Passei pelos achismos e pelas certezas, mesmo sem escolher estou em ligação direta com as dúvidas e as dívidas. Tristão e Isolda. Ontem reencontrei a nêspera. Acho que não a via desde a minha infância, ela que também é prima do pêssego e da ameixa. Bastante adocicada com gosto de quintal. A memória foi escorrendo e se esvaindo no ralo do box, junto com a água morna do chuveiro elétrico durante o banho da madrugada de domingo depois da festa a fantasia. A consciência deste escorrimento sem saber o porquê, revelou o sonho da Isabel em pesadelo. Estamos em Outubro embora a ambiência com frio e céu azul transmutava para Abril. Amo a luminosidade do sol com frio. A escrita automática à mão não acontecia há muito. Findo o jogo, por volta de quinze para as nove, o Magrão me convida a conhecer seu estúdio de tatuagem situado na rua de cima. Na subida da calçada uma mulher dormia embrulhada em panos e jornais velhos, sem marquise alguma para proteção do sereno. Surpreendente uma casa/estúdio onde moram homens, tão bem organizada e limpa. Deve ser porque lidam com agulhas e fagulhas. A visita rendeu um salutar apertão em meus parafusos fundamentais. Levava no bolso da calça a caneta que ganhei na pescaria no início da noite. Subi de volta sem errar o caminho para a Rua do Ouro 777. Onde por hora mora a verdade com novas conexões.

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