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sábado, 28 de novembro de 2015

CINEMA

Wilson Grey "Um Filme 100% Brazileiro"

MODERNISMO E CINEMA
 Elizabeth Real


Um filme 100% brasileiro Segundo o diretor José Sette de Barros, em uma entrevista dada à época de lançamento do filme, Um filme 100% brasileiro pode ser considerado como uma síntese de todo o trabalho que havia realizado até aquele momento, quando já completava vinte anos de cinema: “nele está o melhor que eu fiz. Para mim, foi quando tive mais certeza das coisas que eu queria” (BARROS, 1988). De volta de uma temporada na Europa, onde conviveu intensamente com cineastas ligados ao cinema experimental brasileiro (ou Cinema Marginal, como ficou conhecido), entre os quais Júlio Bressane, Neville d’Almeida, Rogério Sganzerla, Eliseu Visconti e Silvio Lanna, o diretor inicia sua carreira em 1973, com o curta-metragem Inside. Em 1976, José Sette realizou seu primeiro longa-metragem, chamado Bandalheira infernal. Para fazer o roteiro de Um filme 100% brasileiro, o diretor baseou-se em uma seleção de textos e poemas escritos por Blaise sobre sua experiência no Brasil. O filme inicia com a vinda do poeta de navio e seu desembarque em pleno carnaval carioca. Segundo o diretor, ele pretendeu transpor para a tela o texto de Cendrars sem modificá- lo a fim de manter intacta sua visão poética sobre as coisas brasileiras. Na estrutura do filme, o diretor se concentra em três textos escritos por Cendrars na segunda parte do livro: sobre o lobisomem de Minas, sobre o “coronel Bento” e sobre Febrônio Índio do Brasil. O filme afasta-se do realismo: Blaise é vivido por mais de um ator e seu defeito físico é propositadamente ignorado (o poeta não possuía o braço direito, mutilado durante a Guerra). Utiliza-se do teatro de bonecos e enfatiza a artificialidade dos cenários pintados por três artistas plásticos que já haviam trabalhado com o diretor em um filme anterior: Fernando Tavares, Oswaldo Medeiros e Paulo Giordano, ligados à Oficina Goeldi, em Belo Horizonte. O diretor procurou trazer para o filme, visualmente, o forte vínculo de Cendrars com as artes plásticas: Em Um Filme 100% Brasileiro, onde eu precisava de novo de uma cenografia forte, não tinha porque não chamar esses mesmos artistas plásticos. Eles trabalharam em cima de todos os artistas que conviveram com Blaise Cendrars. Se você tiver uma visão geral, você vai ver que tem Di Cavalcanti, Anita Malfati, Tarsila do Amaral, lsmael Néri... Todos estão ali, essa miscigenação da arte brasileira nos cenários do filme - este foi o meu interesse fundamental ao colocar aquilo. E também uma homenagem ao cinema expressionista alemão. Em todo o cenário eu tive uma preocupação de criar aquela perspectiva do expressionismo. Então, a arte colocada nos cenários é uma visão expressionista das artes plásticas brasileiras da época em que Cendrars passou aqui (SETTE, 1988). Além do interesse de José Sette pelo Expressionismo alemão, podemos destacar que essa “visão expressionista” realçava uma atmosfera que perpassava o ambiente artístico da época. Anita Malfati, que estudara pintura na Alemanha e nos Estados Unidos, apresentava características expressionistas que causaram espanto durante a Exposição de Pintura Moderna, realizada em 1917. Também Osvaldo Goeldi, que ilustrou muitas obras modernistas, era influenciado pelo Expressionismo. O diretor utiliza-se, ainda, de outras referências que extrapolam o universo modernista. A fala do personagem do diabo, vivido por Wilson Grey, foi retirada de um conto de Machado de Assis, considerado por Sette como um precursor do Modernismo. Vemos, assim, que, da mesma forma que Joaquim Pedro, em O homem do pau brasil, José Sette, em Um filme 100% brasileiro, parte de diversas referências culturais e utiliza, de forma plena, as possibilidades que o cinema oferece como instrumento criativo: sintetiza ideias, manipula imagem e som, apoderando-se de recursos próprios de outras artes, seja o texto poético literário, seja a tradição iconográfica que marcou a visualidade brasileira na primeira metade do século XX. Ao escolher partir do olhar de um estrangeiro, vindo de Paris – centro cultural internacional tão almejado por nossos artistas –, José Sette de certa maneira inverte e ao mesmo tempo reforça a antropofagia que nos caracteriza, que nasce com o Modernismo e revive nos tempos da Tropicália. Conclusão Podemos entender que a retomada do Modernismo, a partir do final dos anos 1960, não foi realizada de forma absoluta, quer dizer, os artistas que buscaram inspiração nesse período da história cultural brasileira pinçaram autores, obras e idéias específicas. Oswald de Andrade surge como a referência principal, não apenas por suas obras, mas também por seu comportamento irreverente que o fez conhecido como o “rebelde” do grupo modernista. O conceito de antropofagia, reavivado pelos tropicalistas, predominou como ponto de interesse do cinema que buscou dialogar com o movimento modernista iniciado na década de 1920. Nos anos 1980, este diálogo dos cineastas passou a se dar a partir de uma dupla referência: não apenas com o movimento do início do século XX, mas com o período tropicalista, que se configurou como outro marco para a cultura brasileira. E isso acontece porque esses filmes discutem também a forma de fazer cinema, tendo como uma preocupação central a criação de novas formas de expressão cinematográfica, descompromissadas com a representação padronizada característica de um tipo de narrativa mais convencional. Como vimos, se no Modernismo não se configurou uma movimentação inovadora em torno do cinema, no Tropicalismo a situação era bem diferente:                                                  Com o tropicalismo, abriu-se um ciclo de experimentação na seara do cinema que se desdobrou em propostas de ruptura em setores distintos: na área do longa-metragem (em filmes ligados ao que se rotulou de “cinema marginal”: Luiz Rosemberg, Andrea Tonacci, Neville d’Almeida, Eliseu Visconti, entre outros); na área do curta-metragem, nas novas linguagens e questionamentos radicais do documentário convencional (XAVIER, 2006, p.8). Joaquim Pedro de Andrade era um cineasta egresso do Cinema Novo. José Sette de Barros tinha proximidade com o Cinema Marginal. Nos anos 1980, as fronteiras entre esses movimentos se esfumaçam. O que fica são os filmes, fontes vivas de referência para o cinema contemporâneo.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Poesia





2 Poemas de Belmiro Braga             

Quem o alheio veste...

Vendo um jumento a dose de importância
Que tem em certas classes o cavalo,
Pôs selim e arqueou com elegância,
Tratando o mais possível de imitá-lo.

Depois foi para a feira, airoso e lindo,
E, na verdade, os outros animais
Saudaram com respeito o recém-vindo,
Atendendo aos bonitos atafaes.

“Vossa Excelência é cavalo, ou coisa assim?”
Perguntaram os brutos ao jumento,
“Se sou cavalo?! Já se vê que sim.”
O vaidoso orneou, profundo e lento.

Ouvindo em vez de rincho aquele zurro,
Os outros conheceram-lhe o disfarce
Por mais que tente disfarçar-se um burro
Tarde ou cedo vem sempre a revelar-se.

Cata-vento

Viva lá, senhor galo cata-vento!
Fale à gente, não seja malcriado!
Lá por ter o poleiro no telhado
Não suponha que está no firmamento!

Como percebe de onde sopra o vento
E sabe do equilíbrio o seu bocado,
Já se imagina bacharel formado,
Julga que tem carradas de talento!

Vaidade! Pedantismo sem mistura!
No fundo, duas tretas, bagatela,
Que só entre patetas figura.

O que você, amigo, não revela
É que antes de ser galo, nessa altura

Foi uma reles tampa de panela!

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM CONTO DE REIS


POUCO AMOR NÃO É AMOR
Nelson Rodrigues

Nem Balbino, nem Arlete confessariam o seguinte: — o amor de ambos nascera no cemitério.
A menina acompanhava o enterro da avó. E o rapaz, que não conhecia a morta, nem a neta, estaria interessado em outro defunto. Parou um momento para espiar a sepultura aberta e o caixão que chegava. E viu Arlete, à beira do túmulo, assoando-se no lencinho amarrotado. Ela adorava a avó e estava fora de si. Fazia um sol brutal — a luz era uma agressão. Balbino postou-se logo atrás da pequena e, sem querer, adotou uma tristeza de falso parente, de falso conhecido. Pouco depois, estava ao lado da moça. Tudo o interessou em Arlete, inclusive a coriza. E foi aí que começou o flerte.
Na saída do cemitério, Balbino juntou-se ao grupo de fami­liares, de amigos. Pararam todos, na porta, para as despedidas. Ninguém ali conhecia aquele rapaz fino, educado, que cumpri­mentava os presentes, um por um. Esquecia-me de dizer que o rapaz estava de luto, não sei por quem.
Ao apertar a mão da menina, deixou-lhe um papelzinho. Ela, ainda chorosa, teve um movimento de espanto, quase de susto.
Ele diz entredentes:
— Meu telefone.
Arlete, meio desconcertada, ia dizer qualquer coisa. Mas já o rapaz se afastava, em passadas largas, como se fugisse. Pois bem: — a pequena (jeitosa de corpo e de rosto) tomou um táxi, com o pai, a mãe e o tio. Fez a viagem para casa com aquilo na cabeça. Chega, diz que vai ao banheiro, e lá, com um senti­mento de culpa, olha o número: — prefixo 29.
Parecia-lhe uma falta de respeito a atitude de Balbino. Pen­sava: — “Num enterro, ora veja!”. Podia ter jogado fora ou ras­gado o papelzinho. Mas guardou, sei lá por quê. Decidiu, po­rém: — Não telefono.
Até o fim do dia, ora chorava pela avó, ora pensava em Bal­bino. Deitou-se cedo, mas só conseguiu pegar no sono alta ma­drugada. De manhã, bem cedinho, estava de pé. Escovou os den­tes, lavou o rosto, imaginando: — “O telefone não deve ser do trabalho, deve ser de casa”. Durante uns dez minutos ficou ma­tutando. Valeria a pena ou não?
Finalmente, com o coração batendo mais forte, discou. Atende uma voz de homem. Começa:
— Foi o senhor que.
Não teve nem tempo de completar. Ele se antecipou, ra­diante:
— Já sei, já sei! É aquela senhorinha de ontem. Muito prazer.
Nervosa, atalha:
— O senhor fez aquilo. Um momento. Fez aquilo em hora e local impróprios. Afinal, o senhor não tinha o direito!
Estava ofegante, quase chorando. Do outro lado da linha, ele se desmanchava:
— Tem toda a razão. Está ouvindo? Toda a razão. Mas não me interprete mal. Com licença. Um minutinho só. Eu seria in­capaz de, entende? O que senti por si foi uma forte simpatia. Pelo amor de Deus, não pense que…
Parou. Ela não sabia o que dizer, o que pensar. E o rapaz, mais seguro, continuou:
— Viu como foi bom eu ter lhe dado o meu telefone? A senhorinha…
Preferia “senhorinha” a “senhorita”. Podia chamá-la de vo­cê, mas uma certa cerimônia, no começo, ajuda. Continuou, com a boca no fone, sentindo que o romance estava nascendo:
— Lhe dei o meu telefone e vou ter a satisfação de saber o seu nome. O meu é Balbino. — E disse, por extenso: — José Marcondes Balbino. Por obséquio, sua graça?
Arlete vacilou. Teve medo de confiar a sua identidade a um desconhecido. Mas refletiu que um nome é pouco, quase nada e que há muitas Arletes por aí. Disse, não sei por quê, comovida:
— Arlete.
O outro repetiu:
— Arlete.
E ela:
— Desiludido?
Exagerou:
— Lindo, lindo. — E insistia: — Bonito nome! Dou-lhe a minha palavra!
Ele não parou mais. Ora a chamava de senhorinha, ora de você ou, ainda, de meu anjo. Contou que era baiano e acres­centou, feliz:
— Por isso é que falo muito.
Como a menina insistisse em tratá-lo por senhor, Balbino arrisca:
— Seria muito sacrifício para você me chamar de você?
Arlete concordou. Era muito meiga e tinha uma facilidade espantosa para se afeiçoar por gente, bichos, móveis. Conver­saram cerca de uma hora. Quando saiu do telefone, a mãe pas­sou-lhe um pito:
— Tua avó foi enterrada ontem e você já está namorando?
Começou a chorar:
— A senhora faz essa idéia de mim? Oh, mamãe? Nunca pensei.
Explicou que era um rapaz que acabava de conhecer. Di­zia que:
— Não há nada, mamãe. Quer que eu jure?
Mas já conhecia toda a vida de Balbino. Tinha vinte e oito anos, era advogado (embora não exercesse a profissão) e vinha tentar a vida no Rio. No dia seguinte, foi ele que ligou. No fim de dez minutos de conversa, a menina não se conteve:
— Você que fala tão bem… Sabe que você fala bem pra chu­chu? Por que você não segue carreira?
Tentou explicar:
— Minha filha, o negócio não é assim, não. O advogado não tem outra saída. Ou é um Clóvis Beviláqua, ou uma besta. Já que não sou um Clóvis Beviláqua, também não quero ser uma besta.
Ela ainda suspirou:
— Uma carreira tão bonita!
Balbino vacila e acaba dizendo:
— Olha. Há outro motivo, compreendeu? O seguinte: — minha vocação é outra.
— Qual?
Fez um mistério:
— Você saberá um dia. Não se incomode.
Os telefonemas diários continuaram. Na missa do sétimo dia, lá compareceu o Balbino. Não sendo parente, não sendo nada, era o mais grave talvez e, ainda por cima, num luto total. Terminada a missa, Arlete fez a apresentação:
— Papai, aquele rapaz que lhe falei.
O velho teve a exclamação:
— Ah, o advogado?
Passou. Dois dias depois, Arlete falava no telefone. E, súbi­to, o pai arranca o aparelho das mãos da pequena: — “Deixa que eu falo”. Disse tudo:
— Ó rapaz! Escuta. Eu sou contra namoro de esquina, de portão. Namoro é dentro de casa. Você não tem boas intenções? O quê? Suas intenções não são boas?
— Claro, claro!
— Então vem pra cá, rapaz! Eu te espero pra tomar um ca­fé contigo.
O velho quando gostava de uma pessoa era de uma efusão brutal. Mais tarde, aparece Balbino, ressabiado. A cordialidade feroz do velho o assustava. Mas o dono da casa o recebeu de braços abertos. O convívio com as Novas Gerações o rejuve­nescia. Fez perguntas:
— O amigo exerce a profissão?
Meio sem jeito, explicou:
— É o seguinte: — estou desiludido com os colegas. Por exemplo: — na Procuradoria do Estado conheço vários que nem sabem o que é vara. Parece piada, mas juro e posso até citar no­mes. Um procurador que não sabe o que é vara!
O velho achou graça:
— Vejo que o amigo gosta de paradoxo. Mas há talento. Você se esquece do Otto Lara Resende? É uma mentalidade! E brilhante!
Balbino, grave, admitiu uma exceção para o Otto, que, se­gundo concordou, falava bem “pra burro”. A conversa durou até alta madrugada. Na saída, o futuro sogro bateu-lhe nas costas:
— Venha sempre, rapaz!
A partir de então, todos os dias, Balbino ia para a casa da namorada. Começou a ser apresentado como “meu noivo”. E toda a rua sabia que Arlete estava de amores com um advogado.
Uma noite, a sogra vira-se para Balbino:
— Está de luto por quem?
O rapaz tomou um susto. Ele próprio não sabia. Estava de luto, eis tudo. E teve de confessar, vermelho, confuso:
— Por ninguém. Eu sou assim mesmo.
Foi bastante honesto com a família. Disse que se casaria quando melhorasse de situação. Fez mistério:
— Estou esperando por uma vaga. — E repetiu, baixando a vista: — Uma vaga.
Não se sabia, nem ele disse, que vaga seria essa. Mas os vi­zinhos, os parentes passaram a falar da “vaga” como de alguém, de uma pessoa. O tempo foi passando. Cinco, seis meses, oito e nada ainda. Já o interpelavam na calçada:
— Mas sai ou não sai essa vaga?
— Estou caprichando.
Até que o pai de Arlete avisou, piscando o olho:
— Estou mexendo também os meus pauzinhos. Tenho re­lações, amizades. — E baixava a voz: — Vem por aí uma bomba.
Uma tarde, Balbino entra e é abraçado, beijado, apalpado por todo mundo. Olha em torno: — “Mas o que é que há?” O sogro adiantou-se, de olho rútilo:
— Rapaz! Arranjei o teu emprego. E sabe onde? Na Procu­radoria! Tu vais ser companheiro do Otto, do Laet, do Genolino. E olha: são Oitocentos pacotes!
Atônito, Balbino olha as caras que o cercavam. Alguém o puxa pelo braço. Desprende-se, num repelão:
— Com licença. Um momento. Meu sogro, há um equívo­co. Eu não pedi nada. Eu estava esperando uma vaga e final­mente.
No seu assombro, o velho balbucia:
— Você recusa?
Explicou:
— Um momento. É que a tal vaga saiu, finalmente. Saiu ho­je. Recebi esta tarde a comunicação.
O sogro aperta a cabeça entre as mãos:
— Quer dizer que… Então eu banquei o palhaço?
O outro perdeu a paciência:
— Escuta, escuta! Direito não é minha vocação. Entende? Não é minha vocação. Não dou para esse troço, juro. E tenho a minha vocação. Ouviu? Ponho a minha vocação acima de tu­do! De tudo!
Esganiçou-se tanto que, afinal, conseguiu intimidar a famí­lia. Pausa. Ele arqueja. Um dos presentes pensa: — “Será que ele é epilético?”. O sogro o olhava, amargurado e mudo. Final­mente, o velho quer saber:
— Que vocação é essa? Pra ser melhor do que procurador do Estado, deve ser de rajá, de Rockefeller. Fala!
O genro ergue a fronte, enche o tórax e parece desafiar o mundo:
— Vocação de coveiro. Arranjei a vaga no São João Batis­ta. Coveiro, sim! É a minha vocação. Coveiro!
Houve, ali, um silêncio maravilhado. Os presentes se en­treolharam. O primeiro a se recuperar foi o velho. Abotoa Balbino:
— Isso é piada? Responde! É piada?
Berrou também:
— É a minha vocação! Todo mundo tem a sua. Eu também tenho a minha. Se Deus quiser, hei de enterrar muita gente boa.
Ia contar que tivera o primeiro aviso de sua predestinação quando, aos sete anos, enterrara um cachorro atropelado. Mas não teve tempo de nada. O velho passa-lhe, por baixo, um rapa tremendo. Caiu para se levantar e cair novamente. Saiu, de lá, a tapas, a pescoções. A sogra berrava da porta:

— Urubu! Urubu!

domingo, 15 de novembro de 2015

LEMBRANÇAS

A contingência e o absoluto
Por Orlando Senna

Assustado com o estado geral das coisas, no mundo onde milhões de pessoas vagam e morrem em terras estrangeiras tentando escapar da fome e da violência, onde uma guerra se espraia mundialmente disfarçada em conflitos regionalizados, como se não fosse uma só, e particularmente no Brasil, país idolatradamente amado que agora causa vergonha e decepção aos brasileiros de bem e do bem por culpa de políticos, servidores públicos e empresários criminosos, me aninhei na imagem e na lembrança de duas pessoas muito importantes na minha vida.
Estava/estou assustado com a crise da espécie humana mas também, ou consequentemente, com vontade de continuar a ser feliz, de preservar minha partícula divina, essa partícula que todo mundo tem, mesmo os que não sabem disso. E por isso me aninhei na minha professora Angelina Campos Felippi Viana e no meu compadre Roberto Pires, o cineasta, que protagonizam neste fim de semana eventos culturais na Bahia. Os convites estão lado a lado na minha telinha: dona Angelina está lançando seu livro Aventureiros & Sonhadores amanhã, sábado, no Centro Cultural Ecoviva em Lençóis, na Chapada Diamantina; hoje, sexta-feira, o Instituto Memória Roberto Pires, mantido por sua família, exibe no XI Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador, o filme restaurado Abrigo Nuclear, realizado por ele em 1981.
Militância
Roberto Pires, além de inventar lentes anamórficas, fazer o primeiro filme longo da Bahia (Redenção, 1958), alimentar a semeadura do Cinema Novo com seus clássicos A grande feira e Tocaia no asfalto, ser o mestre incontestável de sua geração de diretores, fotógrafos e editores no que se refere à tecnologia audiovisual, foi um ambientalista em tempo integral em uma época em que esse assunto não circulava na sociedade nem era uma pauta importante na mídia e na academia. Nos anos 1970 suas preocupações com o destino da humanidade estavam focados na possível escassez de água no planeta, na exaustão das reservas de petróleo e no perigo mortal da utilização da energia nuclear para fins pacíficos. Atenção: seu foco não era a bomba atômica, a guerra nuclear, a proliferação das ogivas nucleares de destruição em massa. Era o lixo das centrais nucleares de produção de eletricidade, resíduos que continuarão radioativos durante milhares de anos.
Abrigo Nuclear, do qual participei como roteirista, é exatamente sobre isso: a superfície da Terra envenenada pela radiação, inabitável para o ser humano. Roberto realizou outros filmes sobre o tema, como Césio 137 e Alternativa energética, mas é no Abrigo onde sua criatividade inquieta e o foco central de sua militância ecológica estão mais presentes, além do seu modus operandi artesanal. Amigos e familiares acreditam em uma possibilidade nunca comprovada que, na sua campanha contra os males da contaminação gerada pelo uso pacífico da energia nuclear, ele mesmo foi contaminado durante as pesquisas e filmagens de Césio 137 e Alternativa enérgica. Nunca desistiu. Testemunhou os acidentes radiológicos de Chernobil e de Goiania (assunto de Césia 137) e já não estava entre nós quando aconteceu a tragédia de Fukushima. Na verdade estava, sempre estará, como modelo de militância em prol da humanidade.
Amor 
Ao aninhar meu pensamento em Roberto e em dona Angelina, o que busco são exemplos do humanismo de que tanto estamos necessitados nesses tempos de bestializacão da espécie. Aos 94 anos de idade, dona Angelina está dando à luz seu livro Aventureiros & Sonhadores, que conta um século da história de sua terra natal, Lençóis, a pequena “capital” da Chapada Diamantina. História prenhe de garimpeiros visionários, guerras intestinas, riqueza e pobreza com detalhes e pontos de vista que só a vivência faz alcançar. A cidade está em festa, muitos nativos espalhados pelo mundo estão se encaminhando para lá, um grupo de teatro ensaia uma leitura do livro em praça pública. Toda essa movimentação porque se trata da professora que ensinou a várias gerações, da mestra de milhares de pessoas e todas essas pessoas se sentem profundamente agradecidas e abençoadas por ter tido a sorte de serem encaminhadas na vida por uma mulher tão amplamente competente, amorosa e entregue à sua missão educadora.
Ela foi minha primeira e mais importante professora, me alfabetizou e me mostrou caminhos, e fiquei profundamente emocionado quando me convidou para fazer um prefácio do seu livro. Cito em seguida trecho do que escrevi, na esperança de que, lendo-o, vocês entendam a minha emoção e o que quero dizer quando uso o conceito humanismo e rezo para que exemplos como ela continuem a nos iluminar, a nos ajudar a criar o nosso, de cada um, sentido da vida. 
“Lembro-me de muitos momentos desse meu aprendizado com a melhor das professoras, das epifanias que ela fazia acontecer no meu espírito infantil. Lembranças que, pelo tempo, vêm à tona com a textura dos sonhos e da imaginação mas que guardam, na essência, a nitidez dos alicerces, das bases e firmamentos que norteiam meu viver. Enquanto escrevo, minha memória insiste em focar um desses momentos emblemáticos, acontecido nos meus cinco ou seis anos de idade. Durante uma das aulas de dona Angelina, meu primo Augusto Senna Maciel, sentado a meu lado e induzido por algum ensinamento ou revelação dela, afirmou o que para mim era um absurdo: Papai Noel não existe. Contestei, discutimos, elevamos a voz, dona Angelina se aproximou, soube da nossa discordância e nos chamou para uma conversa reservada. Na conversa, doce como sempre, deu razão a Augusto, me informou que os verdadeiros Papais Noéis eram nossos pais e avós, eram eles e não um velhinho de barba branca e roupa vermelha que deixavam presentes em nossos sapatos durante a noite de Natal. Diante do meu assombro, da minha possível cara de bezerro desmamado, ela sorriu e ressignificou o assunto: ‘não fique triste, você vai continuar tendo seu Papai Noel, só que agora sabendo que ele não é um só, são vários’. Foi o dia em que dona Angelina me ensinou a relatividade da vida, a condicionalidade, a diferença entre o absoluto e a contingência.” 

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

LITERATURA


O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO
João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!
Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
— Mas não quero ser nada disso.
— Então quer ser vagabundo?
— Quero trabalhar.
— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
— Eu não acho.
— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares…
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.
— É doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.
— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal…
— É da tua má cabeça, meu filho.
— Qual?
— A tua cabeça não regula.
— Quem sabe?
Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.
— Só caso se o senhor tomar juízo.
— Mas que chama você juízo?
— Ser como os mais.
— Então você gosta de mim?
— E por isso é que só caso depois.
Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma “relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão”. Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
— Traz algum relógio?
— Trago a minha cabeça.
— Ah! Desarranjada?
— Dizem-no, pelo menos.
— Em todo o caso, há tempo?
— Desde que nasci.
— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem…
Antenor atalhou:
— E o senhor fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça…
— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
— Regula?
— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo… Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos deixei aqui uma cabeça.
— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.
— Ah! fez Antenor.
— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim…
— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha cabeça?
— Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
— Faça o obséquio de embrulhá-la.
— Não a coloca?
— Não.
— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.
Antenor ficou seco.
— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.