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segunda-feira, 30 de março de 2015

ARTIGO

O poder da papelada    
Por Orlando Senna

As primeiras utilizações da palavra burocracia aconteceram no século XVIII, na França, quando alguém teve a ideia de juntar a palavra francesa “bureau”, que significa escritório, mesa, escrivaninha (e posteriormente também repartição pública) ao sufixo “cracia”, derivado do grego kratos, que significa poder. O poder do escritório, o poder do funcionário público. Já naqueles idos de 1700 a conotação da nova palavra era negativa, relacionada à ineficiência do funcionalismo estatal na monarquia absoluta e desperdício de recursos. Na verdade o excesso de leis e regras e a utilização da parafernália legal por funcionários desonestos é bem mais antiga do que a palavra, remontando ao início do Império Romano.
Podemos supor a presença das garras burocráticas no episódio da crucificação de Cristo, no jogo de empurra-empurra entre o poder judeu (Herodes) e o poder romano que dominava a região da Palestina (Pôncio Pilatos). Com o correr do tempo os burocratas tentaram justificar e enaltecer a burocracia como essencialmente necessária à estrutura jurídica do Estado, à organização dos procedimentos da administração, afirmando que, por ser difusa e manipulada por muita gente, a prática garantia a “impessoalidade” no trato da coisa pública. Uma falácia que ainda encontra defensores na atualidade.
O jurista alemão Max Weber, considerado o pai da sociologia moderna e um dos mais argutos estudiosos do assunto, chamou a atenção para o fato de que o princípio básico da administração burocrática é a hierarquia, é o controle que os funcionários superiores exercem sobre os inferiores. Um controle que permite a classificação de documentos em várias categorias de acesso e, em consequência, o conhecimento de alguns desses documentos apenas por poucos funcionários. Esse mecanismo é praticado, desde muito tempo, também nas empresas privadas. É o que está acontecendo neste momento no Brasil, no escândalo dos desvios de dinheiro e propinas na Petrobrás e em grandes empreiteiras, envolvendo funcionários, políticos e empresários.
E não só no Brasil, já que a chaga burocrática, geradora de corrupção, espalha-se pelo Ocidente e Oriente, na rede bancária mundial, em regimes autoritários e regimes democráticos. As vítimas são os cidadãos honestos, enganados e roubados pelas artimanhas das papeladas, driblados pelos atalhos e labirintos legais inventados pelos cidadãos corruptos (que nem deveriam merecer o título de cidadão). Na década passada muita gente acreditava que a informática, com a sua possível transparência e comunicação objetiva, poderia ser uma inimiga ativa da burocracia e de sua filha dileta, a corrupção. Até o momento essa ação de barragem, esse movimento civilizatório, não aconteceu, a não ser na sua utilização como veículo de comunicação para organizar manifestações contra a prática criminosa. Mas ainda pode acontecer, não sei como já que a cibernética também atua como veículo de crimes e enganações.
A menção a labirintos legais me leva às vítimas da burocracia e a Kafka e seu romance O processo, de 1920, e também à sua transposição para o cinema por Orson Welles em 1962, narrando as profundas angústias e o surrealismo perverso pelos quais passa um homem comum e honesto. Joseph K, esse é seu nome, é preso e sofre um longo e tortuoso e misterioso processo por um crime que ele não sabe qual foi. A genialidade de Kafka e de Welles criam uma atmosfera de desorientação, ambiguidade e absurdo que oprimem Joseph K até os limites da confusão mental. No Brasil, neste momento de bilhões e bilhões de reais roubados através da burocracia, me sinto como o personagem kafkiano, em meio a outros 200 milhões de Josephs Ks.

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