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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Conto de Reis

A PEQUENA ESTÓRIA DA BUNEKA
                                         
 Fabio Carvalho
O cinema é a arte de filmar a morte em seu trabalho.
Jean Cocteau

Desde criança era atraído por aqueles seres diferentes que não tinham casa e moravam na rua. Esse fascínio era também formado pelo medo da impressão que me rondava: talvez pudesse me tornar um deles, medo que só me abandonou há poucos anos, quando percebi definitivamente que não tenho vocação para tamanha liberdade. Assim o mestre Jean Renoir definiu o homem da rua: o único ser humano totalmente livre. Livre do relógio, livre dos compromissos, livre das satisfações, livre das obrigações, livre do retorno e de tudo mais, será? Não sei dizer. O que sei é que muitos, ao contrário do que se imagina, levam a vida assim por opção consciente ou inconsciente. Não mais aceitariam trocar essa forma de existência por um endereço fixo com todas as limitações que este conforto acarreta. Antes de adentrar no assunto que me proponho escrevendo este texto, vou ilustrar o que afirmo acima com o que me contou um senhor meu amigo no café Benza Deus outro dia pela manhã. Ele foi jantar com sua mulher num restaurante muito bom perto do seu escritório. Após se fartarem de beber e comer, ainda restou muita comida, então ele pediu que a embalassem para levar. No caminho até o carro, se lembrou daquele homem que dorme debaixo da marquise na porta do seu trabalho, com quem nunca tinha trocado uma palavra. Teve uma crise filantrópica. Consultou a mulher se poderia dar a quentinha para o homem, prontamente ela concordou, achando que cumpririam uma boa ação pra fechar com chave-de-ouro aquela noite. O homem, que poderia ser mais velho que ele, estava encostado na parede, olhando para o outro lado, fumando uma beata que ninguém sabe de quê. Ele se aproximou e disse, extendendo o embrulho: “ô meu amigo, trouxe essa comida para você, tá quentinha viu?" No que o homem respondeu sem se alterar a virar para ele: “em primeiro lugar não sou seu amigo, em segundo não lhe pedi nada, portanto boa noite e passar bem”.
São diferenças que precisam ser observadas, nem todo morador de rua é mendigo ou pedinte, muito menos recebe donativos. Voltando ao meu nariz, comecei a lembrar das figuras da rua que perpassam meus caminhos pela vida afora. Que beleza esse meu reencontro hoje com meus papéis, minhas palavras vagantes e minha janela do infinito depois de uma curta temporada em Sampa e de um pit-stop nas serras da Mantiqueira, ainda mais, isto acontecendo no exato dia das manifestações contrárias à FIFA que inicia seus trabalhos excusos daqui a pouquinho. A barulhada vista de cima só aumenta. Pois bem, vamos às minhas personagens. Com a cronologia bastante alterada na ordem de aparição, começo por aquele que andava sempre com uma vara de pescar e enrolando os fios de sua enorme barba branca, repetindo aos berros nos momentos de surto, que o mar estava chegando e que isto ele podia afirmar, pois tinha ouvido e aprendido o que os antigos do fundo da terra vieram lhe contar.  Em geral ele era muito calmo e estava sempre com um leve sorriso na boca, como se estivesse se lembrando de alguma coisa boa. Sonhei o Guará fazendo este personagem. Meu Sabiá meu violão. Hoje, treze e treze no relógio, vejo pela janela um urubu voando em círculos bem acima das nuvens, depois em espiral veio descendo e continua, até o momento que eu tive que sair. Saí. Agora amor Doralice meu bem como é que nós vamos fazer? Outra noite transei a lua cheia iluminando o horizonte daquela Sexta-Feira friorenta de Julho. Voltando para muito antes, lembro-me bem da Tereza, uma senhora magra que vagava por vários bairros de BH, vestida com longos vestidos coloridos, com uma cabeleira malhada até os ombros, sempre borrocada por todo rosto enrugado com um batom vermelho sangue, que ela descolava não sei onde. Era muito tranquila e sorridente. Mereceu como reconhecimento pela sua personagem notável um filme de curta-metragem feito pela Andréia Queiroga no fim dos anos oitenta. A cena final, muito bonita, era exatamente ela se pintando, olhando a lente da câmera como um espelho. Tinha também aquela mulher morena com os cabelos escorridos que, durante anos a fio, ficou em pé parada numa esquina da Savassi ao lado do La Casa di Ireni. Contam que ela tinha perdido um filho que sumiu quando retornava da escola, então ela ficou ali esperando ele reaparecer do desaparecimento, em uma parte de outro mundo onde ela esperava. Era uma espécie de História de Adele H., amor para sempre irredutível e paralisado, no caso amor de mãe para com o filho homem, uma Jocasta por assim dizer. O que me interessa no cinema é a abstração, disse o Orson Welles. Finalmente cheguei a um dos grandes personagens da minha infância: Tião Beiçola. Este pra mim um caso à parte. Também já mereceu uma citação em outro curta-metragem mais recente do Gilberto Scarpa. Um breve devaneio levou-me para outro assunto, não posso esquecer o seu olhar, longe dos olhos meus. Naquele tempo na Barroca pouco habitada éramos um bando, quem sabe um cardume. Enquanto corríamos nas ruas de paralelepípedo atrás da bola de plástico branco manchado que o borracheiro da rua de cima encheu com sua bomba de ar, um vento cinza trazia a notícia que ele, o Beiçola, ia passar por ali. Enfim a aventura.  Bólido, nosso grupo trepava no murinho baixo do alpendre da Dona Alzira, em seguida alcançava os galhos altos da Mangueira com mais folhagens e lá, nos achando bem escondidos, virávamos um olho só. Aos cochichos esperávamos aquela figura passar, num misto de medo e excitação. Passados alguns minutos, ele vinha subindo com passos vigorosos pelo meio da rua, onde raramente surgia um carro, parecendo o Popeye, careca com orelhas grandes e um boné virado para trás, coisa pouco comum naquela época.
Tinha uma beiçorra etiópica, como indica seu apelido, invariavelmente com uma baba gosmenta enlaçada, se equilibrando nos movimentos à frente da feição enfurecida. Olhava com olhos lassos para todos os lados procurando avistar alguém, se sabendo observado e excluído, bastante desconfiado, passava como um desfile de Sete de Setembro, solene e achincalhado pelas maledicências da região. As boas e as más línguas contavam que ele, no passado recente, tinha tido um delírio sanguinário canibal: picado, cozinhado e devorado até os ossos um adolescente num ritual satânico. Várias são as versões sobre sua história. Era um Ogro com síndrome e fama. Acho que no fundo ele só queria ter alguém para conversar, mas ninguém estava interessado. Imprima-se a lenda. Mais pra frente, já na Serra, observei o Bréia que, ao contrário do Beiçola, era queridíssimo. Morava em frente uma banca de jornal na curvinha da Rua Amapá. Todos se preocupavam com ele: se tinha comido ou não, se estava com frio, onde ele estava se não estava no seu posto, e assim por diante. Soube que morou por muitos anos em um asilo mantido pela vizinhança e hoje montou sua própria banca de jornal num bairro distante, e vive por lá muito bem, acho que ele já deve estar beirando os oitenta. Em fim um final feliz. Precisemos. O cinema está a caminho de tão simplesmente tornar-se um meio de expressão, isso que foram todas as artes antes dele, isso o que foram em particular a pintura e o romance. Após ter sido sucessivamente uma atração de feira, uma diversão análoga ao teatro de boulevard, ou um meio de conservar imagens da época, ele se torna pouco a pouco, uma linguagem. Escreveu Alexandre Astruc em 1948. Na Serra também havia uma andarilha, agora desaparecida, que era chamada de Tina Turner. Nunca mais recobrei os sentidos depois daqueles momentos loucos quando escrevia sem direção, hoje continuo, mesmo tendo atravessado as montanhas em outra aliteração. A Tina Turner era uma mulata franzina com pernas fortes que deixava à mostra, abaixo das mini saias coloridas que ela trocava a cada dia. Tinha um cabelo alisado, pintado de amarelo até os ombros. Nunca falava nem pedia nada pra ninguém parava em frente vitrines e dava um show, fingia cantar rebolando de verdade, para seu público que era exatamente seu reflexo. Sempre um bom número de transeuntes parava para ver, o que para ela era indiferente. Há algum tempo ninguém sabe o seu paradeiro.  Ela sumiu, partiu, pra nunca mais voltar. Não voltou não. Cantava Tim Maia, acompanhado por um coro feminino. Ainda na minha primeira infância, quando tinha cinco ou seis anos, morava numa casa que o fundo dava para um lote vago com um matagal e muitas árvores. Do lado de dentro da casa o muro tinha um metro e meio mais ou menos, o lote ficava uns quatro metros abaixo. Depois mais a frente fiz várias expedições por lá, envolvendo escaladas e caçadas às ratazanas com espingarda de chumbinho. Pois bem, nesse primeiro período apareceu por lá um homem claro, barbudo e cabeludo, com duas moças maltrapilhas com trouxas nas cabeças e alguns cachorros ao redor. Lá de baixo falou com meu pai que tinha vindo do interior com as duas, que segundo ele, eram a sua esposa e a irmã dela, elas teriam perdido os pais. Ele explicou que estava pretendendo passar um tempo acampado por ali, porque tinha sido roubado na rodoviária e precisava fazer uns biscates para arrumar um dinheiro, até poder descolar um barraco para eles se acomodarem. Meu pai disse que tudo bem, o lote nem era dele e só pediu para eles não fazerem barulho à noite, nem deixarem que pegasse fogo na mata do lote, o que poderia causar um grave acidente. Eles foram ficando por ali, lá em casa desenvolvemos um sistema de corda, que descíamos com comida que minha mãe separava da nossa, três vezes ao dia, para eles. Era uma pensão completa. Todo dia, no final da manhã, antes de ir para a escola eu ficava dependurado no muro conversando com ele, que era muito falador e engraçado, ao contrário das meninas que praticamente nem os olhos levantavam para minha direção lá em cima. Uma manhã de domingo, cedo, ainda clareando, acordei todo molhado de xixi, o que às vezes me acontecia, e ouvi meu cachorro perdigueiro gemendo muito lá no quintal. Ninguém ainda tinha se levantado, então resolvi ir lá ver o que estava acontecendo. Meu cachorro estava em pé sobre duas patas, com as outras duas apoiadas no canto do muro balançando o rabo, só que não era ele que gemia. Trepei no muro e olhando na direção do som, por entre as folhagens, pude ver os três completamente nus deitados sobre um lençol quadriculado engalfinhando-se num balé esquisito. Um ménage a trois ou uma suruba, como se diz por aqui. Prendi a respiração para que não fosse percebido e assisti aquela cena dantesca para minha tenra idade até o final. Fiquei por anos sem me lembrar disso, agora essas imagens me voltaram como se as tivesse visto ontem. Acho que no dia seguinte eles desapareceram, não sei bem o que houve, mas acredito que a vizinhança deve ter corrido com eles dali, provavelmente não fui só eu que ouvi aqueles gemidos. Parto direto para estória da Buneka, simplesmente por preguiça de continuar desfiando minha coleção de personagens da rua. Pois bem, ela é mulata, com o cabelo sarará, cheio para cima e ralo para baixo, magrela como um caniço, reta como um homem. Nenhuma curva na sua compleição física. Mesmo quando grávida, que sempre acontecia, sua barriga ficava pontiaguda como triangulo e nunca redonda. Muitos falam que formato assim nasce homem, como o improvável acontece, ela teve meninas também. Nem sabe quantos filhos já pariu, acha que no total foram treze, e treze é Galo. Muito bem conversada e simpática para muitos, está sempre precisando de uma ajudinha para comprar o leitinho de cada dia, para tanto com seu sorriso 1001 conquistou os mais diversos colaboradores pelo bairro, que depois do susto da primeira visão, se compadeciam da sua figura desprovida de atrativos.  Dizem que prestava certos favores para comerciantes e moradores: quando as turminhas de usuários de crack, conhecidos por noiados, se instalavam nas imediações das suas propriedades, na madrugada munida de pedras ou algum pedaço de pau ela botava todos para correr, limpando a área, recebendo seus merecidos vinte reais. Assim ia levando a vida até que por um período desapareceu. Começaram as especulações. Alguns afirmavam que ela tinha sido morta em seguida desovada num local próximo ao Hospital da Baleia, que era conhecido para esse fim, outros que ela estava passando uma temporada no xadrez, ou ainda, tinha sido recolhida em um desses albergues para indigentes. As versões do seu assassinato eram várias. A mais frequente era que ela tinha sido enfiada dentro de um carro na Rua Oriente, junto com seu atual comparsa, e levada para a tal desova. Seus sequestradores seriam conhecidos matadores de aluguel. Surgiram requintadas narrativas de como este assassinato teria sido feito. Sereno dos meus olhos já correu. O mais criativo me deu muito a imaginar. Disseram que ela teria sido decapitada em seguida toda separada em partes e, como a Elisa Samudio do caso Bruno, jogada para os cães comerem. Eu ficava pensando no seu rosto triste, no momento em que percebeu o que fariam com ela. Senti muito esta suposta morte. Passados uns dois meses a voz da rua só falava que ela tinha voltado, e que estava até gordinha. Realmente logo a reencontrei, dei os dois reais de praxe, e ela me deu um anel para eu dar para minha “namorada”. A vida na Serra voltou ao normal.   

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