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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

AMAXON (primeiro texto critico)

“ Uma coisa são sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela. ”

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


“AMAXON, UMA ODISSÉIA NA CRIAÇÃO PENSADA “
Em memória de Jairo Ferreira

Talvez tenhamos nos transformado nessa máquina horripilante de negação dos sonhos! E no que trituraram todas as singularidades, fomos transformados num exército de múmias, de burocratas, de deslumbrados e idiotas. Uma nova encenação do que seja, não pode ser mais uma condenação a nociva prostituição, achatada à TV. Deve-se ousar na desarmonia, do desnudamento da carne e do abandono na subjetividade. Ora, se o cinemão se realiza sem subjetividade criativa alguma, a nós deve interessar fundamentalmente uma nova linguagem gerada na teatralização de transcendências. Acrescente-se a isso que o país vive do seu esvaziamento a 509 anos, e mais programadamente a 55 anos. Ou seja, desde o golpe militar de 1964. Ora, como purificar artesanalmente esta quantidade infindável de urina e excremento?
“AMAXON” é um esforço poético-radical, para nos fazer pensar na complexidade do processo criativo. Ora, de que nos adianta fazer trabalhos de encomenda? Cinema virou filminho publicitário? O que muda nessa falência global de desencontros? O mundo hoje visto pela TV, é só o lixo como mercadoria de quinta, obviamente espetacularizado. Putas e canastrões são vendidos como profundos e sensíveis. Mas a quê? A “nota”? José Sette vai no sentido contrário de tudo e todos, elaborando com o seu terceiro longa-metragem, uma projeção de palavras a serem pensadas, fazendo um delicado filme que dá representabilidade a um pensamento sombrio expressivo, nessa sua transfiguração da normalidade do processo de criação. Sette vai aos extremos, numa escalada implacável rumo à uma poesia ainda que delicada, difícil para o grande público, todo condicionado a Hollywood e a TV.
“AMAXON” é o hospital-Brasil, em que todos somos condenados. A personagem da escritora reage ao internamento e tratamento, e se debate com uma coragem incrível. A linguagem do filme atravessa uma infinidade de vísceras, infernos e imaginações. A carne-viva exposta, torna-se uma espécie de gozo-trágico. Um filme-dor que nos remete ao teatro de Artaud. Incomodo aqui. Indizível ali. Longe e próximo de todos nós que sobrevivemos ao apocalipse de 1964. Não poderia ser um filme diferente. Foi difícil não apodrecer junto, e continuar sonhando com um Brasil mais justo, humano e para todos. Ainda assim, salvaram-se os poetas e artistas. Vera Barreto como escritora, é uma espécie de vísceras expostas; sendo recolhidas para continuar a ser demasiadamente humana.
Pouco importa que não seja um filme fácil, ou para muito. É cinema! Uma cinema que emerge de toda essa putrefação de 1964 à 2009. Sette trabalha com precisão a sua não-linguagem fácil, pois lhe interessa mais um fluxo poético de contradições gramaticais voltadas para o pensamento-profundo e o cinema autoral. É o velho-jovem cineasta independente que agiganta sua escritora na solidão e na coragem de não ser comum. Que entre só sofrer e morrer, prefere escrever enfrentando os seus muito demônios. Que lê, bebe, fuma... se debatendo entre contradições geradas na TV, por um jornalista que como todos, espetaculariza o caos ameaçando com a onda gigantesca, definitiva. Onda que até é mostrada, mas que não chega pois é apenas uma manipulação da comunicação, do dinheiro e da morte que sempre nos acompanha.
E se a representação do mundo e da política se tornou imbecil, compete a arte transformar todo esse excremento, numa espécie de teatralização de uma “escrita-física” que Vera Barreto faz muito bem, num trabalho raro e exemplar, onde se realiza em sua intimidade frente a insatisfação da obrigação: a do livro de encomenda que precisa ser escrito. E uma vez mais, o conceito de subordinação ao dinheiro como a arte terapia dos tantos e tantos eletrochoques de nossas vidas. É onde os porco se acham mais fortes.
Entre livros e copos de vinho, em sua solidão pensa na grande onda da sua insatisfação. A onda que está fora, está dentro e que desencadeia contradições levando-a nua aos seus próprios limites grandiosos de exposição poética. É uma escritora, mas é também atriz e mulher. E que ao entregar-se as suas pulsões transforma-se em crítica de si mesma, ainda que aguçando o seu desprezo pela “lógica” imperceptível da mercadoria e do consumo. O sistema sabe bem o que faz, e se não tivermos um mínimo de sonhos, seremos transformados em imagens despotencializadas e vazias. A TV não faz isso todos os dias?
Sette não faz um cinema-coisa, a logo ser esquecido ou descartado. Nesse ponto aproxima-se de Tonacci, Sergio Santeiro, Eliseu Visconti, Jorge Mourão e da nova geração. E se “o mundo é apenas engano”, como afirmava François Villon, “AMAXON” o subverte desprezando o patamar qualitativo do sucesso fácil. Arbitrário como postura, investe no estilo insurrecional como ruptura e negação do obscurantismo avançado da domesticada política cultural do governo, seja lá de que Partido for. E não são todos iguais lutando apenas pelo poder? E se a chantagem e o obscurantismo servem ao poder, de nada serve um cinema menos idiota, essencial a representabilidade de uma vanguarda que não conseguiram matar. E que hoje convence muito mais que no passado.
É preciso frisar a importância de um filme feito do nada e que não se reduz a razão que tudo tenta explicar. Nesse sentido reintroduz no cinema brasileiro, complexas subjetivações necessárias ao crescimento de um público menos contaminado por Partidos, por prostíbulos e pela TV, pois transgride permanentemente a ordem como instituição sagrada. A Sette e sua equipe interessa abandonar o manicômio das disciplinas do certo e do errado, sem sacrificar mais nada. Ao seu cinema interessa as diferenças e os deslocamentos possíveis, como acesso a um permanente ultrapassar-se. Sua trajetória é impar no nosso cinema. É um experimentador muito além do buraco negro em que transformaram o cinema brasileiro, e que fez um novo filme de uma lucidez atrozmente insuportável.
Sette torna profundo e feminino o discurso da personagem da escritora, e com suas imagens poderosas desfaz o território pouco ou nada significativo da TV, pois faz Cinema! Dá significação a um novo olhar. Enfim, produz intensidades poéticas. “AMAXON” são pedaços restituídos a um corpo ainda que amordaçado pelo tempo que passa para todos, poderoso e uma vez mais agigantado pois se assume, indo além da representação e da escrita. E a vida que não deveria ser pobre e empobrecida como é, torna-se gozo por parte de todos. Filme infinito ao reinventar a criação simbólica imperfeita. Ainda bem.

LUIZ ROSEMBERG FILHO
RJ, 2009

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