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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

ENGOLIDO PELO ARPOADOR
 Fabio Carvalho
Lá fora amor, uma rosa nasceu. As portas deverão permanecer abertas durante o horário de funcionamento, era o que estava escrito em uma placa ao lado do balcão do bar de três portas. Perguntei ao português que mordia os fartos bigodes brancos com os dentes implantados do canto da boca: isso quer dizer que você não pode funcionar fechado, para um evento qualquer? Ele respondeu secamente: são as portas que abrem ou fecham e não eu. Continuou depois de uma longa pausa, sem tirar os olhos do dinheiro que contava: exigência dos bombeiros.  Noutro dia fui visitar o May Flowers, um pequeno e escondido botequim no coração de Copacabana, que há anos luz me fora apresentado pelo Otávio Terceiro. Amancio, o dono do pedaço, colocou uma mesa para mim ao lado da banca de jornal de frente para o bar com a calçada no meio, fiquei por ali tomando um tempo. Todas e todos passavam em profusão pra lá e pra cá desfocando o primeiro plano, já que o ponto é a dois quarteirões do metrô e na outra direção, a mesma distância da praia. Bem na minha frente nitidamente, dois senhores bem idosos se reencontraram, cumprimentaram-se de uma maneira muito efusiva, com carinhos, abraços apertados, beijos na testa e nas mãos, olhos molhados de lembranças e palavras amorosas. Tamanha afetividade me levou às lágrimas contidas nos óculos escuros. Que coisa bela é a amizade. Em seguida, mostraram o relógio de pulso um para o outro, explicando o motivo da pressa e cada um seguiu seu caminho. Desta vez, por um erro crasso de logística, não fui ao bomBardeio, na mítica Prado Junior território do David Neves. Na madrugada na mesa do bar, é só o tempo lá fora. Fui ao BeloBar e para minha tristeza o estabelecimento na minha hora boa, já não é atendido pelos meus antigos convivas.  Quase tudo muda.

Continuei a via sacra. A mulher cuspiu a maçã é o título do diáfano curta que a Las Casas nos apresentou enquanto filmávamos com o auxílio luxuoso da luz natural e de um mono-pé a sonora imagem da minha Maria Madalena revolucionária, no filme que um dia consigo fazer: Ana Maria Magalhães. Novamente o elegante bandolim do Madeira com outros instrumentos comparsas me levou a novas lágrimas executando Papo de Anjo na porta do meio da esquina de dentro para fora. Foi perdido o maior pensamento na mudança do encaminhamento para o Word e vice-versa ao contrário. Mudei a ordem dos fatores com maior autonomia, afinal sem alguma autonomia a essa altura você não é nada, e eu voltando ao nada da verdade, nem te digo. Tive um sonho tão real essa noite que achei que era mentira. Continuando anatomicamente, depois que cheguei na esplendorosa criação do Farnese de Andrade, mineiro catador dos pedaços científicos jogados como lixo da praia de Botafogo, inventando a própria expressão do objeto, assim sem saber sabendo, voltei a verter lágrimas indisfarçáveis sem possibilidades de contenção. Arqueologia existencial. Só ali, estava dentro de um carrossel de emoções requintadas. A beleza me fez voltar a ser o velho bebê chorão que sempre consegui ser sem a menor intenção, hoje com bem mais experimentações arriscadas e todos os mais variados medos. A beleza e que beleza tarda e não falha, às vezes. Depois já nas montanhas em frente à drogaria Araújo, encontro com o Zé Lourinho carregando duas sacolas de plástico lotadas de remédios. Com olhos melancólicos ele disse: pois é, quando a despesa da farmácia fica maior do que a do bar, é sinal que as coisas estão piorando. Dia treze de Maio, dia da Nossa Senhora. Conceição eu me lembro muito bem. Na sequência vejo o Cabeça, que junto ao Biscoito são os deliverys mais espertos da Serra, sentado em frente ao Bar da Árvore com o braço esquerdo imobilizado cheio de pinos, a perna metida numa bota azul para fratura e do queixo até a testa coberto de hematomas. Diante do meu choque, antes que eu perguntasse, ele foi logo explicando o sucedido, parece que estava sentado ali para isto. Com dificuldade porque sua boca estava torta e metade dos dentes quebrados, ele contou: estava na comunidade descendo a rua de pedra ao lado do Torneirão, aí quando fui entrar naquela curvinha para a esquerda tinha uma areia jogada no canto, a moto derrapou e eu caí exatamente no vão da rua nos fundos da casa do Mancha que fica lá embaixo onde estava tendo um churrasco, só fui parar quebrando a mesa espalhando arroz  pra todo lado e  fiquei neste estado. Ele mesmo riu, então também tive que rir.
Tenho que falar dos dois filmes que vi durante o momento do intervalo ou do recreio, quando não me submeti às regras da sala de aula. Que saudades da professorinha que me ensinou o beabá. Um museu imaginário. Voltei a autobiografia, geralmente de onde todos nós começamos. É uma luta para barbarizar um país mau civilizado, a consciência é difícil de alcançar. Voltemos ao inicio, coisa de maluco, eu sei meu bem.
Tudo está passando tão rápido, que hoje já é amanhã e como se sabe cada dia é um dia a menos. Cantando aos acordes do meu violão é que mando depressa ir-se embora a saudade que mora no meu coração. Na parada esperta do Tonel da Pinga, sentado ao fundo na mesa mais nobre do estabelecimento que é um beco, pude observar o negão de quase dois metros, cabelo rastafári e macacão de entregador de gás, se aproximar do balcão e sorrindo pedir ao Derley que antes chamava Shirlei, uma dose dupla da amarela. Depois de servido levantou o Lagoinha cheio e olhando através da sua transparência em direção à rua, disse melodiosamente: a vida é bela como uma moça na janela esperando o broto dela. De uma talagada matou a aqua-vita brasileira, pagou, agradeceu e foi embora. Finalmente o frio chegou. No dia seguinte, passando em frente a um botequim na Barata Ribeiro com República do Peru, vejo uma placa com os seguintes dizeres: bebo para esquecer, mas nem assim.
Em Belo Horizonte noto o Moraes Moreira de chapéu de palha dirigindo  um carro vermelho pela Rua Dos Guajajaras. Talvez fosse um chapéu Panamá. Só vou pra casa quando o dia clarear. Se por acaso um grande amor eu arranjar não vou pra casa não vou não vou. Tarde fria, sinto um frio na alma. Só você não vem minha calma.

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