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terça-feira, 29 de maio de 2012


Pela primeira vez no Brasil, a obra de um gênio maldito das artes

Por Paulo Laender*

A Casa Fiat de Cultura apresenta a partir desta terça-feira a maior exposição do pintor italiano Caravaggio já realizada na América do Sul, com seis óleos do artista e 14 pinturas dos chamados Caravaggescos, artistas seguidores do gênio. Por meio da técnica do chiaroscuro, em que o emprego de luzes e sombras gera impressionante dramaticidade às cenas retratadas, Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) revolucionou a arte de seu tempo. Apesar da incontestável herança do gênio italiano para a estética ocidental, jamais houve, na América do Sul, exposição de grande magnitude com as obras do pintor. Em 2012, tal lacuna há de se tornar fato do passado.
 

Evento que integra a programação do Momento Itália-Brasil 2011-2012, “Caravaggio e seus seguidores” reúne obras da Itália, Malta e Inglaterra. Além de pertencentes a coleções particulares, as pinturas provêm de três dos mais prestigiados museus estatais italianos: Galleria Borghese (Roma), Palazzo Barberini (Roma) e Galleria degli Uffizi (Florença).Destaque   Medusa Murtola e Ritratto di Cardinale, que saem da Itália pela primeira vez. De Minas Gerais, a exposição segue, no mês de julho, para o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP).

A idealização da mostra é de Rossella Vodret, uma das principais especialistas em Caravaggio na Itália e chefe da Superintendência Especial para o Patrimônio Histórico, Artístico e Etnoantropológico e para o Pólo Museológico da Cidade de Roma. Na Itália, a curadoria tem participação de Giorgio Leone e, no Brasil, de Fabio Magalhães. Além das obras de  Caravaggio, a exposição apresenta pinturas de Artemisia Gentileschi (1593-1653), Bartolomeo Cavarozzi (1587-1625), Giovanni Baglione (1566-1643), Giovanni Battista Caracciolo (1578-1635), Hendrick van Somer (1615-1684/85), Jusepe di Ribera (1591-1652), Leonello Spada (1576-1622), Mattia Preti (1613-1699), Orazio Borgianni (1574-1616), Orazio Gentileschi (1563-1639), Orazio Riminaldi (1593-1630), Simon Vouet (1590-1649), Tommaso Salini (1575-1625) e Valentin de Boulogne (1591-1632). Trata-se de seguidores do mestre, da segunda metade do séc. XVI e início do séc. XVII.

O mundo visto pela morte

Michelangelo Merisi da Caravaggio, nascido a 28 de setembro de 1573, no burgo de Caravaggio, próximo a Milão, tornou-se, em sua breve e atormentada vida, um dos artistas mais importantes, controversos e enigmáticos da pintura pós-renascentista italiana.

Sua obra, realizada ao final do renascimento, rompe com os princípios daí herdados e revela uma nova e admirável maestria de fundamentos, cores, luzes e dramaticidade na concepção de um realismo humano inédito que contribuiria, decisivamente, para o surgimento da pintura barroca.

Além disso, sua obra viria a influenciar mestres do porte de Velasquez, Zurbaran, na Espanha, Georges de La Tour, na França e atingiria, até mesmo, Rembrandt e sua escola nos países baixos.

Com uma vida marcada pela genialidade, a tragédia e a criminalidade, numa época em que a subserviência dos artistas à sociedade dominante e ao poder do estado/igreja era a única possibilidade de sobrevivência, Caravaggio transformou-se num símbolo da rebeldia e da transgressão face a esta ordem.

Com a riqueza, a audácia de proposições inéditas e um enfoque revolucionário sua obra transformou o universo da pintura vigente, arrancando-a do preciosismo em que já se instalara ao final do renascimento, para uma nova visão que desembocaria no inicio do barroco e das outras escolas que daí evoluíram.

Ao final do século XVI cânones quase absolutos gerados, desenvolvidos e sedimentados durante o apogeu do renascimento, regiam as normas técnicas e conceitos da pintura, como a perspectiva geométrica, a luminosidade exterior, a pureza dos temas, dos personagens e seus modelos.

Esse é o momento do surgimento de Caravaggio que, com sua atuação revolucionária vai buscar, no lado sombrio do seu espírito atormentado, a energia e o fundamento que gerariam a nova concepção e transformariam a pintura para sempre.

Escolhendo modelos entre seus pares, gente da rua, marginais e prostitutas para temas sacros sob encomendas da Igreja. Utilizando um ambiente de estúdio, com paredes e teto pintados de negro e permitindo a luz apenas como um raio controlado e incidente sobre o motivo, Caravaggio monta o suporte sombrio e vai fundo no seu interior dramatizando a composição, jogando com os corpos e criando obras de uma intensidade narrativa e de um realismo inédito até então.

Ignora os fundos de paisagem, o exterior, a natureza, a luz universal, a onipresença do criador e outra qualquer manifestação onírica ( elementos) cânones da herança renascentista que ainda sustentavam a composição pictórica.

Adota o trabalho no ateliê escuro e traz, para o interior, para dentro de si mesmo a formulação de um outro universo, no qual o realismo dos corpos enfocados numa proximidade inquietante, quase palpável, gera o novo estranhamento.

Utiliza a técnica de retratar seus modelos refletidos no espelho evocando transcendência na busca por uma situação, um momento além da realidade usual. Recorta mais do que molda os corpos com a tênue incidência de sua luz dosada em favor de uma linguagem representativa, na qual a perspectiva clássica, velha soberana, já não é mais a regente absoluta na construção da composição.

Seus personagens, observados e anotados pelo reflexo do espelho, possuem uma incomoda e dúbia postura invertida e adquirem uma cristalização próxima a da morte.

Como bem define Giulio Carlo Argan:

“O realismo de Caravaggio nada mais é que uma visão do mundo segundo o pensamento da morte”.

Ao não mostrar a paisagem ao infinito, a exaltação da luz e a grandeza do universo sagrado, nem os feitos do homem, suas arquiteturas e conquistas mas, ao contrário, pintando para dentro, aprisionando num cenário restrito e escuro, constituído apenas pelo mobiliário e complementos imediatamente próximos, a sustentar minimamente seus modelos, sua composição, Caravaggio elege o homem, a emoção humana confinada a este invólucro de pouca luz que seu espírito lhe imprime, contendo-a na sua densidade máxima não lhe permitindo qualquer evasão do perímetro da tela.

Deste inconformismo com o ideal da arte, universalmente aceito até então, e o furor de alcançar o real além de todo método ou esquema herdado, Caravaggio elege os fatores principais que lhe moldam o caráter.

Sua carreira, iniciada de forma fulgurante em Roma e que, precocemente o leva ao topo entre os grandes pintores de sua época, desemboca, na sua maioridade, na realização de grandes obras e na sucessão de transtornos e tragédias gerados pelos excessos de sua vida atribulada, sua marginalidade, seu péssimo humor e seu temperamento belicoso que, frequentemente o envolvem em disputas e duelos lhe infringindo sérios ferimentos, prisões e temporadas de internação hospitalar seguidas de períodos de convalescença.
 

Suas agressões culminaram com um assassinato transformando-o num condenado. Foge de Roma para o sul em direção a Nápoles, então território espanhol. Em busca de redenção para seu crime, vai para a ilha de Malta, onde consegue ser admitido como membro da Santa Ordem dos Cavaleiros Hospitalares de São João. Realiza uma série de pinturas importantes mas uma grave desavença com um oficial de justiça o leva ao cárcere e o faz perder seu título de cavaleiro.
 

Após uma fuga espetacular chega à Sicília e depois Nápoles onde, seus novos inimigos o alcançam infringindo-lhe um espancamento quase mortal. Mais uma vez ele se recupera, volta ao trabalho e inicia, através de cardeais, seus protetores em Roma, uma negociação junto ao Papa por um perdão pelo seu crime. Finalmente, ao divisar a possibilidade deste perdão, reune seus bens e as obras que preparara para presentear seus protetores e toma um barco em direção a Roma.

Numa escala em Port’Ercole, a oeste de Roma, é detido por engano e, após gastar suas economias na compra de sua liberdade percebe que o barco em que viajava já havia zarpado do porto com suas obras e pertences.

Em terra e sem nenhum dinheiro Caravaggio, numa tentativa desesperada, tenta alcançar o barco seguindo à pé, pela praia infestada de malária quando, acometido de febre e esgotamento morre abandonado e de forma indigente.Era o ano de 1610 e Caravaggio tinha 37 anos.

Anoto rapidamente, como passagem, alguns fatos relevantes da vida deste gênio, sem a pretensão de registrar qualquer perfil biográfico, apenas para estabelecer um parâmetro de compreensão do complexo, atribulado e breve percurso da sua existência no intuito de lançar sobre estas linhas uma reflexão a respeito do comportamento do artista.

Por várias vezes, na história da arte, encontramos este confronto ente o artista e a sociedade chegando, como no caso de Caravaggio, a extremos que culminaram na sua própria morte.

Alguns mais, outros menos, vários artistas de relevo tem infrigido normas e estabelecido comportamentos questionáveis, se autodestruindo e tornando-se estigmatizados para sempre.

Voltando ao começo destas linhas, onde localizamos a época e o poder do estado/igreja, determinante na contratação do trabalho artístico e ditador do comportamento dos seus “súditos”, encontramos o cenário para uma leitura amplificada do ser Caravaggio.

Um artista deste porte sempre será um homem cuja visão irá muito além do limite de sua época extrapolando a couraça que a sociedade, habitualmente conservadora, tentará lhe impor.

Podemos desfilar aqui dezenas, centenas até, de nomes e seres sacrificados na fogueira da repressão em sua luta por evolução. O caso de Caravaggio, apesar de mais complexo, foi agravado por seu difícil temperamento, o seu espírito sombrio e sua natureza belicosa, marginal, autodestrutiva. Fatores que, inevitavelmente, o levaram a se chocar com o estabelecido e possivelmente favoreceram o seu final trágico.

Esse ”roman-noir” que, com frequência, encontramos na história das artes, nem sempre tão acentuado como o de Caravaggio, mas terrível e existente, é uma sombra que permanece e aflige os artistas.

Por mais socialmente avançados, abertos e vanguardistas que acreditamos ser na atualidade, ainda registramos desastres desse tipo, basta rever a história recente de pintores, músicos, atores etc. que se perderam nesta trama.

A mostra de Caravaggio e seus Seguidores que a Casa Fiat de Cultura nos apresenta é, sem dúvida, um evento marcante que nos possibilita um contato inédito, em Belo Horizonte, com a grandeza da obra deste artista e, ao mesmo tempo, capaz de nos lembrar dos limites do ser humano perante a genialidade.

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